Compartilhar

Desafios de uma parceria para o desenvolvimento de produtos: o caso de um tratamento para malária

Desafios de uma parceria para o desenvolvimento de produtos: o caso de um tratamento para malária

Autores:

Vera Lucia Luiza,
Gabriela Costa Chaves,
Tayná Marques Torres Barboza,
Luciana de Paula Barros Gonçalves,
Eric G. Stobbaerts

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.7 Rio de Janeiro jul. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017227.04042017

Introdução

Em 2001, a Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais de Médicos Sem Fronteiras (MSF) e o Grupo de Trabalho em Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DND working group) publicaram um estudo com um mapeamento dos esforços de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) para as chamadas doenças tropicais negligenciadas e o diagnóstico foi muito claro: havia pouco ou nenhum esforço em P&D para essas doenças empreendido pelas empresas farmacêuticas1. Foi evidenciado que a inovação no setor farmacêutico estava orientada pelo potencial de mercado, deixando uma lacuna importante para as necessidades em saúde dos países em desenvolvimento.

A falta de inovação para as doenças negligenciadas também foi reconhecida e priorizada pelos países membros da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2003, foi aprovada resolução2 na Assembléia Mundial de Saúde estabelecendo uma Comissão que pudesse buscar o equilíbrio entre direitos de propriedade intelectual, inovação e saúde pública. O relatório desta Comissão3 também sinalizou que o sistema de propriedade intelectual estabelecido pelo acordo TRIPS da Organização Mundial do Comércio não estimulava os esforços de inovação para as doenças que afetavam predominantemente os países em desenvolvimento (chamadas de doenças do tipo III).

Nos últimos dez anos, uma das respostas dada às lacunas de P&D para algumas necessidades em saúde de países em desenvolvimento tem sido o estabelecimento de Parcerias para Desenvolvimento de Produtos (PDP)4. Essas PDP envolvem em sua maioria instituições sem fins lucrativos que gerenciam um portfólio de projetos tanto nas fases de descoberta como de desenvolvimento para doenças específicas. Elas articulam diferentes instituições, tanto públicas como privadas, para a implementação desses projetos. A Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), criada em 2003, é uma PDP.

Em relação à malária, umas das doenças negligenciadas3, o início dos anos 2000 foi marcado por uma série de mudanças no contexto internacional da adoção das “terapias combinadas envolvendo derivados da artemisinina” (ACT) para o seu tratamento5,6. Apenas a associação de artemeter+lumefantrina estava disponível na forma de combinação em dose fixa (FDC) (marcas Coartem® e Riamet® da Novartis Pharma AG)6.

Estima-se que em 2000 tenham ocorrido 227 milhões de casos de malária no mundo, com transmissão contínua em 106 países7. Esforços internacionais e nacionais visaram reduzir a incidência e a taxa de mortalidade por malária, com resultados significativos, com 64 países próximos de atingir a meta (2000-2015) de reversão da incidência fixada pelos Objetivos do Milênio (ODM)8.

A mudança da orientação do tratamento da malária para os ACT se inseriu num contexto de reconhecimento global da epidemia e do estabelecimento de grandes doadores, que tiveram um papel importante na ampliação do acesso ao tratamento (Parceria Roll Back Malaria9, o Fundo Global de Combate ao HIV/Aids, Tuberculose e Malária10, a Unitaid11).

Em 2002, foi estabelecido o consórcio FACT (Terapias de Combinação em Dose Fixa Baseadas em Artesunato – do inglês Fixed-Dose Artesunate Combination Therapy) pelo MSF para o desenvolvimento de terapias combinadas (FDC) para tratamento da malária. Na estratégia da OMS de 20015 para retardar o cenário de desenvolvimento de resistência a antimaláricos, a combinação de dose fixa do Artesunato (AS) + Mefloquina (MQ) foi avaliada como a mais adequada para América Latina e Ásia.

No Brasil, a parceria com o laboratório público Farmanguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foi estabelecida no âmbito do projeto FACT, que teve como objetivo o desenvolvimento do ASMQ-FDC12.

Foram identificados na literatura poucos estudos que buscassem aprofundar o caso do desenvolvimento do ASMQ-FDC13,14. Este artigo objetiva analisar o processo de desenvolvimento da combinação em dose fixa de artesunato e mefloquina no Brasil à luz de dimensões do acesso a medicamentos, de maneira a registrar acertos e lições aprendidas.

Método

Tratou-se de estudo de caso do desenvolvimento do ASMQ-FDC, abordagem escolhida visando compreensão dos fenômenos envolvidos15, privilegiando a explicação e não a quantificação16.

O modelo lógico de acesso a medicamentos proposto por Frost e Reich17 e a avaliação de programas de saúde18 foram referenciais centrais no desenho do estudo e na análise.

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com atores-chave envolvidos nas diferentes etapas do desenvolvimento do ASMQ-FDC. Complementarmente, foram analisados documentos fornecidos pelos entrevistados.

Após a indicação inicial de entrevistados pela DNDi, a expansão dessa amostra intencional foi realizada por meio de bola de neve19.

Eles estão identificados segundo sua vinculação institucional (A = DNDi; B = Farmanguinhos; C = Fiocruz (exceto Farmanguinhos); D = Agência internacional (OPAS;OMS;UNITAID); E = CIPLA; F = Ministério Saúde Brasil/Governo Brasileiro; e G = MSF) e seu papel no projeto de desenvolvimento do ASMQ-FDC [Tomador de decisão (DM): importante na definição da agenda, porém pouco controle sobre a definição das alternativas e do resultado final; Implementador/operacional (IO); papel na implementação do processo de desenvolvimento (até registro sanitário); Implementador/adoção (IA): papel na implementação no processo de desenvolvimento (após registro sanitário), sobretudo sujeitos fora da parceira DNDi-Farmanguinhos]. A despeito da maioria absoluta dos entrevistados ter autorizado sua citação nominal, optamos por apresentar as opiniões segundo essas categorias, por entender ser mais importante seu papel no processo do que a identificação individual.

Foram realizadas 25 entrevistas entre janeiro e abril de 2015, conduzidas individualmente por três das autoras, a maioria presencial, seis por skype e duas enviadas por escrito, atendendo solicitação dos entrevistados.

As entrevistas foram transcritas e submetidas à análise de conteúdo temática, sendo as categorias de anáise as dimensões do modelo lógico de acesso a medicamentos adotado (Quadro 1), buscando identificar elementos relacionados aos obstáculos e alcances em cada uma delas. As etapas envolveram a definição do modelo lógico, familiarização com o material de campo, indexação dos achados, mapeamento e interpretação.

Quadro 1 Dimensões e atividades do acesso do acesso a medicamentos segundo o modelo lógico proposto por Frost e Reich. 

Atividades de acesso Descrição
Arquitetura: estruturas organizacionais e relações estabelecidas com o objetivo de coordenação e gestão das atividades de disponibilidade, acessibilidade e adoção.
Disponibilidade: envolve a logística de produção, compra, transporte, armazenamento, distribuição e entrega de uma nova tecnologia de saúde para garantir que ela atinja as mãos (ou a boca) do usuário final.
Produção transformação de matérias-primas em produtos acabados para uso ou venda.
Programação estimação da quantidade de um produto a ser adquirido e utilizado, e a que preço.
Aquisição processo de obtenção de tecnologias de saúde por fornecedores privados ou públicos, e inclui todas as decisões relacionadas às quantidades específicas, os preços pagos, bem como a qualidade das tecnologias de saúde recebidas.
Distribuição processo de transferência de tecnologias através de canais públicos ou privados, ou um mix público-privado.
Provisão ponto da cadeia de suprimento no qual a tecnologia é fisicamente transferida para sua destinação ao usuário final por canais privados ou públicos.
Capacidade aquisitiva: implica garantir que as tecnologias de saúde e os serviços relacionados não sejam muito caros para as pessoas que deles necessitam.
Capacidade aquisitiva por governos e NGOs Acessibilidade aquisitiva da tecnologia pelas unidades de compras dos governos nacionais nos países em desenvolvimento e por ONGs.
Capacidade aquisitiva para o usuário final Acessibilidade aquisitiva da tecnologia pelos usuários finais
Adoção: envolve a aceitação ensejando a criação de demanda por uma nova tecnologia de saúde pelas organizações globais, atores governamentais, fornecedores e distribuidores, prescritores e pacientes individuais.
Adoção global aceitação da tecnologia pelos organismos internacionais como a OMS, UNICEF, UNAIDS, UNFPA e, e de especialistas técnicos.
Adoção nacional aceitação da tecnologia pelos formuladores de políticas nos ministérios de países em desenvolvimento, envolvendo compromisso político, aprovação regulatória e adoção de protocolos de tratamento.
Adoção pelo provedor e prescritor aceitação da tecnologia pelo provedor e prescrição adequada.
Adoção pelo usuário final e uso apropriado aceitação da tecnologia pelo paciente ou consumidor, o que inclui seu uso adequado.

Fonte: Frost and Reich17.

Tendo em vista que este trabalho enfocou principalmente a perspectiva do fornecedor (supply-side) e a capacidade aquisitiva é um aspecto que necessariamente deve contemplar o consumidor (demand-side), esta dimensão não foi abordada.

Os documentos incorporados estão indicados com os seguintes códigos:

  • DOC1: 1. Model Contract (Confidential): Cost reimbursement for research and technological development projects, 2003.

  • DOC2: Confidential. Amendment to Model Contract: Cost reimbursement for research and technological development projects, 2003.

  • DOC3: Organização Panamericana de Saúde, Escritório Brasil. OPAS/OMS no Brasil, Membro do Comitê Técnico Assessor para Malária, 2012.

  • DOC4: International Federation for Tropical Medicine (IFTM). XVIII International Congress for Tropical Medicine and Malaria and XLVIII Congresso of the Brazilian Society of Tropical Medicine, 2012.

Após pré-análise do material, foi realizada em 10 de junho de 2015, na Fiocruz, oficina que objetivou tanto o retorno dos achados aos interessados, como sua validação. Essa oficina incluiu, ademais dos entrevistados, especialistas em análise de políticas públicas, em avaliação em saúde e tomadores de decisão da Fiocruz e da DNDi.

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da ENSP/Fiocruz e aprovado em dezembro de 2014.

Resultados

Arquitetura

A Arquitetura é aqui compreendida como envolvendo desde os acordos para estabelecimento da parceria DNDi-Farmanguinhos até a condução das estratégias de acesso no período pós-registro (2008-2014). As principais etapas são sumarizadas na Figura 1.

Legenda: BR = Brasil; ASMQ = Artesunato + Mefloquina; FDC = Fixed Dose Combination; OMS = Organização Mundial da Saúde; BPF = Boas Práticas Farmacêuticas; PQ = Pré-qualificação; FAR = Farmanguinhos; CTD = Common Technical Dossier ; OPAS = Organização Pan-Americana da Saúde; Anvisa = Agência Nacional de Vigilância Sanitária

Figura 1 Etapas do desenvolvimento, pré e pós registo e etapas da adoção da associação em dose fixa do artesunato mefloquina (ASMQ-FDC), 2002-2014. 

A aproximação entre MSF e Farmanguinhos ocorreu por causa da produção local pública de medicamentos antirretrovirais (ARV) não patenteados (A-DM-1; A-DM-2; B-DM-2). A inserção de Farmanguinhos na discussão sobre medicamentos para doenças negligenciadas se intensificou no âmbito do DND Working Group (B-DM-2).

Definida a prioridade de FDC para malária, havia o diagnóstico da existência de poucos grupos de pesquisa dispostos a investir neste desenvolvimento (A-IO-1).

O Special Programme for Research and Training in Tropical Diseases da OMS (TDR/OMS) realizou a coordenação técnica na fase inicial do projeto FACT com o MSF. Inciado em 2002, o projeto envolveu diferentes parceiros internacionais [Université Victor Segalen (Bordeaux II); Wellcome Trust-Mahidol; University-Oxford; University Sains Malasia; Mahidol University (Tailândia); Organização Mundial da Saúde; Centre National de Recherche et de Formation sur le Paludisme] (DOC1). A partir de janeiro de 2005, MSF passou a coordenação do projeto à recém-criada ‘Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas’ (DOC2).

Farmanguinhos nele se envolveu aportando, entre outros aspectos, a equipe técnica para o desenvolvimento de formulação farmacêutica (B-DM-1). A parceria DNDi-Farmanguinhos se mostrou promissora devido à alta conformidade do projeto com a ideologia das instituições e parceiros envolvidos (A-DM-2; A-IO-1). Tratava-se de um contexto de contestação do sistema de monopólio e de patente, sendo este reconhecido como incentivos insuficientes para assegurar o desenvolvimento de medicamentos para doenças negligenciadas (A-DM-2).

A Fiocruz posteriormente se tornou um dos parceiros fundadores da DNDi em 2003, tendo assento no seu Conselho (A-DM-1; A-DM-2; C-DM-1; C-DM-1; B-DM-2; B-IO-1).

Os componentes previstos no acordo financiado pela União Europeia (UE), que previa três anos de duração a partir de seu início em julho de 2002, abrangiam desde a definição da nova formulação e ampliação (scale-up) da produção, desenvolvimento de dados de segurança, eficácia, biodisponibilidade, realização de estudos não clínicos e clínicos, avaliação de estabilidade, até a obtenção do registro sanitário das novas formulações (DOC1). Não foi identificado no acordo um plano sobre como o acesso a esses medicamentos seria viabilizado após a obtenção dos registros sanitários.

O projeto era absolutamente prioritário na DNDi (A-DM-1; A-DM-2; A-IO-1; A-IO-2; A-IO-3), sobretudo no seu início (A-DM-1; A-IO-2; A-IO-3). Ele catalizou a criação da DNDi. No início, recebeu muita atenção, bastante recursos e a cooperação da diretoria de Farmanguinhos, o que facilitou todas as oportunidades para que o projeto acontecesse (A-DM-1).

Foram apontadas oscilações no grau de prioridade do projeto dentro de Farmanguinhos ao longo do tempo e das diferentes gestões, tendo em vista os demais projetos em andamento (C-DM-1, B-DM-1, A-IO-1, B-DM-4; B-IO-1). Um dos motivos para isso seria uma cultura organizacional voltada ao atendimento das necessidades brasileiras (C-DM-1). Não houve consenso sobre essas variações, mas houve percepções de que ele tenha sido considerado como altamente prioritário por um grupo de implementadores ao longo de toda sua duração (C-DM-2).

A maioria dos entrevistados reconheceu os esforços para promover a clareza de objetivos e papéis dentro do projeto, mas sinalizou problemas. Entre eles foram mencionadas as interações com o amplo espectro de parceiros internacionais, envolvendo diferentes culturas organizacionais, mudanças internas na equipe (principalmente em Farmanguinhos), incorporação dos novos processos de trabalho e heterogeneidade de apreensão das etapas dentro das equipes operacionais.

A forma como seria tratado o patenteamento do produto, o excesso de tempo entre o desenvolvimento e a oferta do produto (B-DM-2, B-IO-3, A-DM-2) e as oscilações de prioridade do projeto dentro de Farmanguinhos foram mencionados como momentos de tensão.

As etapas posteriores à obtenção do registro sanitário pela Anvisa incluíram: a transferência de tecnologia (TT) para a empresa indiana Cipla (para abastecer o contexto asiático); a incorporação do ASMQ FDC no protocolo de tratamento no Ministério da Saúde do Brasil em 2010; o início do processo de pré-qualificação na OMS; e a inclusão do produto para compra pelo Fundo Estratégico da OPAS (Figura 1).

Na fase de Adoção, foram identificados como momentos de tensão: a pouca experiência de Farmanguinhos em aspectos relacionados à exportação e questões regulatórias internacionais; a renegociação do contrato DNDi-Farmanguinhos em 2009; a negociação e a implementação do acordo de transferência de tecnologia para a Cipla (A-IO-2, A-IO-3, A-IO-4, B-DM-3, B-DM-4, B-IO-2,C-DM-1); e o abastecimento da Venezuela pela Cipla em 2014 quando esta seria uma região a ser abastecida por Farmanguinhos.

A maioria dos entrevistados se mostrou favorável à ideia de parcerias futuras considerando os mesmos atores, desde que considerados cuidados como a maior horizontalização das decisões, melhores negociações prévias, acordos mais claros e melhor prospecção do mercado consumidor da tecnologia envolvida.

Houve dissenso quanto ao marcador de sucesso do projeto (obtenção do produto? adoção pelo usuário final? exportação? boas práticas de fabricação?), que foi amadurecendo ao longo do desenvolvimento. Quando o projeto foi dado como concluído, ações fundamentais para o acesso pelos usuários estavam inconclusas ou sequer haviam sido previstas (A-DM-1).

Disponibilidade

As questões com implicações na disponibilidade podem ser melhor compreendidas em dois períodos distintos, o pré (lançamento da inovação) e o pós (determinantes do suprimento da tecnologia) obtenção do registro sanitário no Brasil.

A principal questão do período pré-registro (2002 a 2008) foi o atraso na sua obtenção.

A interrupção no fornecimento de um dos insumos farmacêuticos ativos (IFA), a mefloquina; o longo tempo para a concessão de registro pela Anvisa; a mudança do local de fabricação de Farmanguinhos e problemas logísiticos, foram os principais explicadores para o atraso do registro identificados a partir das falas.

No início do projeto, foi decidido que seria escolhido apenas um fornecedor de mefloquina, com uma rota de produção industrial bastante dependente das características do IFA. À época, buscou-se assegurar processos de produção simples e passíveis de TT para outros países em desenvolvimento (B-IO-2).

O fornecedor interrompeu a produção da mefloquina sem qualquer comunicação prévia à Farmanguinhos ou à DNDi. Isto implicou na necessidade de refazer muitas das etapas do processo de desenvolvimento com o novo fornecedor de IFA, em um esforço técnico, regulatório e logístico (B-IO-1, B-IO-2, B-IO-3, A-IO-2, B-IO-4, A-IO-3, A-IO-4).

O período de submissão do registro na Anvisa coincidiu com reestruturações internas e remanejamento de pessoal (B-IO-2; B-IO-3). Assim, a despeito das tentativas de contato constante com o órgão regulador ao longo da aplicação para o registro, novas exigências foram requeridas e o processo levou um ano e oito meses, em lugar dos 3 a 6 esperados.

O local de fabricação de Farmanguinhos mudou para uma nova planta. Isto exigiu adaptações para a fabricação e pelo menos seis meses adicionais de trabalho para a transferência e qualificação das instalações (A-IO-4). Desafios relacionados à infraestrutura, à cadeia de suprimento e à terceirização do trabalho em Farmanguinhos também foram apontados como gargalos no processo de produção (B-DM-3, B-IO-2, C-DM-2).

O período considerado no pós-registro, 2008-2014, também foi sujeito a importantes desafios e envolveu esforços de enfrentamento.

O primeiro deles refere-se à disponibilidade e ao preço da mefloquina, assim como à dependência de produtores internacionais (B-IO-3, A-DM-2, B-IO-4, B-DM-3, B-DM-2). O suprimento deste IFA por empresas farmoquímicas brasileiras foi uma das opções apontadas nas entrevistas para a sustentabilidade da produção.

Um segundo ponto levantado foi que o custo do tratamento seria uma barreira para o acesso, mas essa hipótese foi contestada durante a oficina por representantes do Ministério da Saúde (MS).

A demanda irregular pelo medicamento também foi destacada como um fator que gerou dificuldades na programação da produção por Farmanguinhos. A falta de clareza do MS sobre a demanda e o padrão de ocorrência da doenças em surtos foram justificativas apontadas para a dificuldade de planejamento prévio para a produção. Houve situações de estoque imobilizado em Farmanguinhos sem demanda pelo MS. Uma das saídas de escoamento foi a doação para a Venezuela em 2013.

Outro desafio mencionado foram as dificuldades no manejo do processo de exportação, visto que Farmanguinhos tem como principal atividade o abastecimento do Sistema Único de Saúde. Soma-se o fato de que há uma ampla diversidade de mecanismos de importação e falta de registro sanitário do produto nos países. Algumas das soluções buscadas foram a possibilidade de compra pelo Fundo Estratégico da OPAS e a implementação do processo de pré-qualificação do produto pela OMS. Alguns casos de doações também forem vistos como alternativas às ordens de compra recebidas, a fim de atender a demanda internacional de forma oportuna.

No período 2008 a 2015, um total de 1.373.671 tratamentos foram fornecidos no mundo (Quadro 2) por Farmanguinhos e pela Cipla, sendo que o primeiro foi responsável por 72% dessa quantitade.

Quadro 2 Tratamento adquiridos de ASMQ-FDC (cartelas) segundo país e fornecedor no período 2008-2015. 

País Tratamentos adquiridos 2008-2012 Tratamentos adquiridos 2013 Tratamentos adquiridos 2014 Tratamentos adquiridos 2015
Brasil 260.000 incluindo estudos clínicos & doações (Farmanguinhos)
533.340 adquiridos pelo Ministério da Saúde* (Farmanguinhos) 4.500 adquiridos pelo Ministério da Saúde* (Farmanguinhos)
India 77 pacientes 2007-2008 para estudo clínico (Farmanguinhos) 23.000 (Cipla) 5.000 (Cipla) Sem vendas Sem vendas
Camboja 45 pacientes em 2010 para estudo clinico (Farmanguinhos) Doação de 30.000 treatmentos (Farmanguinhos) 480 tratamentos para estudo clínico (Cipla)
Tailândia-Miamar 169 pacientes em 2008-2009 para estudo clínico (Farmanguinhos) 2.500 para estudos clínicos (Cipla)
Venezuela 3.660 (Farmanguinhos) 378.610 (Cipla) 160.050 (Farmanguinhos)
Bolívia 1.700 doação (Farmanguinhos)
Nigeria 540 tratamentos (Cipla)
Total 817.171 388.970 4.500 163.030
Total do período 1.373.671 (72% das quantidades fornecidas por Farmanguinhos e 28% pela Cipla)

* Dado coletado pela Lei de Acesso a Informação no Brasil.

Outro argumento para a baixa disponibilidade do ASMQ-FDC refere-se às mudanças do panorama da malária no Brasil e no mundo, por exemplo, em função da redução significativa dos casos de malária por P. falciparum. Outro explicador é a disponibilidade de outros FDCs para malária como alternativas terapêuticas.

Adoção

A partir de 2005, a OMS recomendou a adoção e o desenvolvimento de FDC para o tratamento de malária por P.falciparum não complicada10.

A 2ª edição do Protocolo de Tratamento para Malária20, publicado em 2010, manteve a recomendação pelo uso de ACT para o tratamento de malária falciparum não complicada, orientando uma das seguintes opções: artemeter + lumefantrina (AL; Coartemâ), artesunato + amodiaquina, artesunato + mefloquina (ASMQ), artesunato + sulfadoxina-pirimetamina e dehidroartemisinina + piperaquina, este último incorporado na referida edição. A orientação era que a opção terapêutica considerasse o perfil de resistência à mefloquina nos diferentes contextos.

Outro indicador da adoção global refere-se à Lista Modelo da OMS de Medicamentos Essenciais (LME). O ASMQ-FDC foi incluído na 18ª edição da LME, a partir de 2013, resultante de uma submissão feita pela DNDi em 201221. O AL-FDC já fazia parte de LME anteriores.

Uma última vertente de esforço para adoção global e nacional do medicamento refere-se aos diferentes estudos clínicos realizados até o presente. Entre 1992 e 2011 foram realizados 91 estudos clínicos abertos e randomizados em 22 países, envolvendo a associação de AS+MQ, com administração dos fármacos isolados ou em FDC21 . A FDC do ASMQ esteve presente em estudos realizados na Tailândia, Myanmar e Brasil. Na região da América Latina, foram realizados 10 estudos em cinco países (Peru, Bolívia, Equador, Colômbia e Brasil).

Embora o registro sanitário e a inclusão nos protocolos nacionais de tratamento sejam indicadores da adoção em nível nacional, optou-se por considerá-los na ‘adoção global’ para mostrar o panorama mundial do uso do ASMQ em FDC. Até 2012, o AS+MQ era recomendado nos protocolos nacionais para malária não complicada por P. falciparum nos seguintes países21: Camboja, Malásia, Tailândia e Myanmar como opções de 1ª linha e no Vietnã como esquema de resgate, Peru, Venezuela, Bolívia como primeira linha, no Brasil para região extra-amazônica e na Nicarágua como opção de 2ª linha.

Até a conclusão da pesquisa, o ASMQ FDC estava registrado nos seguintes países: Brasil (2008), Índia (2011), Myanmar (2012), Malásia (2012), Vietnã (2013), Tanzânia (2013), Níger (2014) e Burkina Faso (2014).

Conforme apresentado anteriormente, foi mencionado como fragilidade por vários entrevistados a falta de experiência de Farmanguinhos em realizar registros sanitários e fazer exportações, comprometendo a adoção global. Todavia, a transferência tecnológica a um parceiro com experiência em exportação contribuiu para que o produto fosse pré-qualificado na OMS em 2012 e registrado em alguns países da Ásia e África.

Apesar dessa fragilidade identificada em Farmanguinhos, foi reconhecido também que o Projeto FACT em sua concepção original não previu uma estratégia abrangente para o registro nos diferentes países ou parcerias que contribuíssem para sua utilização (A-DM-1, DOC1).

Como sugestões para a adoção do ASMQ-FDC, alguns entrevistados sinalizaram a possibilidade de indicação no contexto africano para malária não complicada por P. falciparum e a potencial indicação para malária causada por P. vivax.

A primeira iniciativa de sustenção da adoção no nível brasileiro foi a realização de um estudo de intervenção (fase IV), no Acre, para avaliação da efetividade do ASMQ FDC, contando com representantes do Programa Nacional de Controle da Malária (PNCM), DNDi, Farmanguinhos, OPAS, universidades e Secretaria Estadual de Saúde do Acre. Este estudo ocorreu entre julho de 2004 e dezembro de 2008, e a intervenção envolvendo o ASMQ-FDC abrangeu o período de julho de 2006 a dezembro de 2008 em três municípios do Acre. Cerca de 24 mil pacientes receberam ASMQ FDC e os resultados apontaram para uma redução da taxa de incidência dos casos de malária por P. falciparum em todas as faixas etárias, bem como nenhum relato de evento adverso grave22. O estudo no Acre foi sinalizado como alcance positivo da implementação da parceria para o desenvolvimento do ASMQ FDC (F-IA-1; F-IA2; F-IA-3; F-DM-2; B-IO-1; A-IO-2; D-IA-2).

Em 2010, o protocolo nacional de tratamento da malária foi atualizado23, incorporando também o ASMQ-FDC, junto com primaquina, como mais uma opção de primeira escolha para o tratamento da malária por P. falciparum além do artemeter+lumefantrina e primaquina.

No mesmo ano, o ASMQ-FDC foi incorporado na 7a Edição24 e a AL-FDC na 9a Edição, em 201425, da Rename. Assim, enquanto o AL-FDC foi incluído no PNCM em 2006 e apenas em 2014 na Rename, o ASMQ-FDC foi incluído em ambos no mesmo ano, 2010.

Em 2012, o Comitê Técnico Científico Assessor do Programa Nacional de Controle de Malária recomendou a substituição do ASMQ-FDC pelo AL-FDC como primeira opção na região do Acre26. O AL-FDC passou a ser a primeira opção para a região amazônica, que responde por 99,5% dos casos, enquanto o ASMQ-FDC foi indicado para região extra-amazônica (F-IA-1; F-IA-2, F-IA3, A-OI2).

Foi sinalizado que a justificativa para a recomendação pelo Comitê Técnico tinha sido baseada nas evidências de resistência à mefloquina (B-DM-3; B-IO-3; A-IO-2; A-DM-1; B-IO-1; F-IA-3; F-IA-1; F-IA-2). Alguns também sugeriram que a opção pelo outro ACT-FDC pode ter sido influenciada pelo preço (A-DM-1; B-IO-3), mas durante a oficina presencial este argumento foi contestado, o que pode ser verificado pelas compras do Ministério da Saúde (Tabelas 1 e 2).

Tabela 1 Total de cartelas, preço por tratamento e valor total da compra e fornecedor de artemeter + lumefantrina pelo Ministério da Saúde. Brasil, 2006-2014. 

ARTEMETER + LUMEFANTRINA (blister) 2006 2007

NOVARTIS NOVARTIS

Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$) Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$)

20MG+120MG C/06 14880 2,03 30272,32 10080 1,57 15840,96
20MG+120MG C/12 14880 3,74 55597,88 14400 3,14 45259,91
20MG+120MG C/18 124320 7,09 880896,22 132240 6,15 813923,76
20MG+120MG C/24 115200 7,19 828677,68 121200 6,29 761875,03
Total 269280 1795444,10 277920 1636899,66

ARTEMETER + LUMEFANTRINA (blister) 2008 2009

NOVARTIS CIPLA

Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$) Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$)

20MG+120MG C/06 18720 1,36 25458,82 12000 1,26 15093,60
20MG+120MG C/12 34560 2,72 94002,28 18000 2,49 44733,01
20MG+120MG C/18 159450 5,15 820398,16 87990 4,35 382420,54
20MG+120MG C/24 124890 5,44 679394,97 69990 4,54 317620,23
Total 337620 1619254,22 187980 759867,38

ARTEMETER + LUMEFANTRINA (blister) 2010 2012

CIPLA OPAS

Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$) Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$)

20MG+120MG C/06 12300 1,48 18148,61 25200 1,00 25255,10
20MG+120MG C/12 20160 2,35 47319,57 32400 1,52 49252,08
20MG+120MG C/18 109860 3,87 424674,40 144810 2,87 415342,19
20MG+120MG C/24 89640 4,01 359588,12 112650 2,97 334626,17
Total 231960 849730,71 315060 824475,54

ARTEMETER + LUMEFANTRINA (blister) 2013 2014

OPAS OPAS

Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$) Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$)

20MG+120MG C/06 16140 1,09 17629,74 30 1,03 30,80
20MG+120MG C/12 20340 1,67 34042,44 30 1,57 47,19
20MG+120MG C/18 103920 2,83 293709,79 120 2,64 316,36
20MG+120MG C/24 83460 2,90 242390,03 90 2,73 245,64
Total 223860 587772,00 270 639,99

Fonte: calculado a partir de dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, corrigidos pelo IPCA de 2014.

Tabela 2 Total de cartelas, preço por tratamento e valor total da compra e fornecedor de artesunato + mefloquina pelo Ministério da Saúde. Brasil, 2009-2014. 

ARTESUNATO + MEFLOQUINA (blister) 2009

FIOCRUZ

Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$)

100+220MG C/03 31.590 0,79 25.046,21
100+220MG C/06 126.420 0,79 100.232,37
25+55MG C/03 18.000 0,20 3.526,06
25+55MG C/06 36.000 0,20 7.052,12
Total 212.010 135.856,76

ARTESUNATO + MEFLOQUINA (blister) 2010

FIOCRUZ

Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$)

100+220MG C/03 4.830 0,75 3.615,78
100+220MG C/06 34.800 0,75 26.051,61
25+55MG C/03 30.000 0,18 5.548,83
25+55MG C/06 72.000 0,18 13.317,19
Total 141.630 48.533,42

ARTESUNATO + MEFLOQUINA (blister) 2011

FIOCRUZ

Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$)

100+220MG C/03 5.030 2,11 10.607,06
100+220MG C/06 31.590 4,22 133.231,40
25+55MG C/03 23.020 0,52 11.993,82
25+55MG C/06 23.370 1,04 24.352,33
Total 83.010 180.184,61

ARTESUNATO + MEFLOQUINA (blister) 2012

FIOCRUZ

Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$)

100+220MG C/03 20.560 1,99 40.963,80
100+220MG C/06 36.180 3,98 144.170,24
25+55MG C/03 20.230 0,49 9.958,59
25+55MG C/06 19.720 0,98 19.415,08
Total 96.690 214.507,71

ARTESUNATO + MEFLOQUINA (blister) 2014

FIOCRUZ

Total cartelas Preço por tratamento (R$) Valor total (R$)

100+220MG C/03 1.000 1,77 1.767,90
100+220MG C/06 1.500 3,54 5.303,70
25+55MG C/03 1.000 0,44 435,00
25+55MG C/06 1.000 0,87 873,60
Total 4.500 8.380,20

Fonte: calculado a partir de dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, corrigidos pelo IPCA de 2014.

A decisão pela substituição da opção de ACT como primeira linha foi considerada do tipo top-down, vinda do MS para os estados, sem envolver a participação dos mesmos na discussão e provocando mudanças significativas nas práticas ora implementadas nos serviços de saúde (F-IA-2).

Um dos possíveis efeitos da decisão de substituição de ACT na região amazônica foi a ausência de demanda de ASMQ-FDC a Farmanguinhos em 2013 pelo MS, tendo sido solicitada quantidade pífia em 2014 (1000 tratamento para cada faixa etária) (B-DM-3; B-IO-2), comprometendo estratégias de programação para a produção e a entrega do produto.

Uma das possibilidades mencionadas para os problemas da adoção nacional foi que a interlocução dos representantes do projeto de desenvolvimento do ASMQ-FDC (DNDi/Farmanguinhos) com os diferentes atores envolvidos no enfrentamento da malária foi insuficiente ao longo do percurso do projeto (F-IA-1; F-IA-3; B-IO-3; A-IO-2; A-DM-1; A-DM-2). Houve controvérsias quanto a este aspecto, que foi discutido na oficina, já que o estudo do Acre representou forte e importante interação entre os atores. Por outro lado, os parceiros do projeto não teriam participado de processos de incorporação de tecnologia no MS. Como parte dos esforços de aproximação com o Comitê Técnico Assessor do PNCM, a DNDi organizou uma reunião durante um congresso internacional de malária, em setembro de 2012, no Rio de Janeiro, no intuito de contra-argumentar a justificativa da resistência à mefloquina (A-DM-1; B-IO-2).

Algumas oportunidades para uma potencial reconsideração do ASMQ-FDC sinalizadas foram: possível indicação para casos de malária por P. vivax (A-DM-1; B-IO-3; B-IO-1; F-IA-1); revisão do protocolo da terapêutica da malária no país (F-IA-1); possibilidade do ASMQ ser backup para os casos de resistência à primeira opção de ACT (AL-FDC) (F-DM-2); e vantagens para adesão ao tratamento devido ao baixo número de tomadas diárias.

Discussão

Este estudo tratou da análise de um caso que representou o primeiro produto de uma parceria para o desenvolvimento de produtos para doenças negligenciadas. Considera-se que a principal contribuição desta análise se dá pela busca de uma perspectiva com foco no usuário final, considerando também as outras cadeias intervenientes na viabilidade do produto chegar até estes usuários.

Em que pesem as barreiras enfrentadas, identificou-se avanços importantes no que se refere ao desenvolvimento do produto, que foi concluído, registrado no Brasil e outros países, certificado internacionalmente com a existência de mais de um produtor. No entanto, o produto, sobretudo o de fabricação por Farmanguinhos, é atualmente pouco utilizado. Várias questões concorreram para isso. No contexto externo, cabe menção ao fato de que se trata de um produto cuja indicação concorre com outros ACT-FDC (ASAQ e A+L) e tem havido queda pronunciada dos casos de P. falciparum no mundo8. No contexto interno, houve os desafios do desenvolvimento que resultaram em atraso no registro, além das dificuldades de Farmanguinhos na exportação para seus mercados alvo.

A arquitetura do projeto FACT se deu no bojo de um conjunto de esforços que visava o desenvolvimento e a produção de medicamentos para doenças negligenciadas. São importantes caracterísitcas conformarem um mercado de doenças de alta carga, porém predominante em populações pobres, portanto de baixo poder aquisitivo para ser capaz de interessar as grandes indústrias inovadoras.

O projeto FACT teve como meta alcançar o desenvolvimento de produtos para doenças negligenciadas a partir de uma abordagem diferenciada, garantindo princípios importantes como o envolvimento dos países endêmicos no desenvolvimento, financiamento sustentável para todas as etapas, oferta assegurada e a preços acessíveis14,27. É também um princípio central a muliplicidade de fontes de produção. Estes princípios foram importantes pontos de convergência com o parceiro Fiocruz, participante ativo de várias arenas em comum com o MSF na defesa pelo acesso aos medicamentos28. Tal harmonia de princípios se expressou também no fato da Fiocruz ser membro fundador da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), evento desencadeado pelo projeto de desenvolvimento do ASMQ-FDC dentro do FACT.

O FACT buscou prever todas essas situações. A malária é uma doença de importância epidemiológica no Brasil, sobretudo na região Amazônica. O país era responsável em 2002, época do início do FACT, por 40% dos casos de malária das Américas29. Embora já houvesse evidências de avanços na redução de casos e de mortalidade por conta da implantação do Plano de Intensificação das Ações de Controle da Malária na Amazônia Legal em 2000, esses valores ainda estavam aquém das metas estipuladas30. Na região das Américas o P. falciparum era responsável por 25% dos casos29.

A escolha do país para a parceria com o MSF se deu pela convergência de princípios entre os atores e instituições envolvidas, e pela existência de instituição com alguma experiência no desenvolvimento de produtos.

O projeto do ASMQ não envolveu pedido de proteção patentária. Ainda que este aspecto estivesse pactuado desde o início do projeto, houve menção de perspectivas diferentes quanto a isso ao longo do projeto. No entanto, em que pese a importância do alcance inovativo produzido no âmbito de uma PDP, não há clareza de que o produto obteria proteção patentária por tratar-se de associação de dois compostos antigos31.

Adicionalmente, foi assegurada a transferência do parceiro público para o parceiro privado, indiano. Este foi um aspecto importante, que tem como finalidade propiciar a oferta do produto em caso de problemas com um dos produtores, além de potencialmente assegurar alguma competição de preços.

De forma geral, os entrevistados concordaram com a adequada escolha tanto da doença quanto do produto para uma primeira iniciativa de P&D neste modelo, adjetivado de low hanging fruits, por envolver a combinação de drogas antigas e já aplicadas em associação para a malaria, só que em preparações distintas. No entanto, isto não foi suficiente para eliminar um conjunto de problemas e angústias enfrentados ao longo do processo que, afinal, se mostrou bem-sucedido.

Foi também um desafio o processo de condução de um projeto multisítio, com parceiros localizados em cinco continentes, e que combinava diferentes culturas organizacionais, o que é um reconhecido aspecto de influência para a inovação, podendo tanto comportar-se como barreira como propulsor32. A capacidade de manejar o projeto neste ambientte foi seguramente um dos grandes aprendizados para as insituições envolvidas, com potencial impacto positivo em projetos subsequentes, uma vez que este modelo de trabalho é cada vez mais um padrão no mundo moderno. O modelo DNDi de inovação considera, entre outros, o aspecto virtual de desenvolvimento de produtos, transversal a todas as iniciativas desenvolvidas pela organização14.

A disponibilidade, como já se disse, foi abordada em dois grandes momento. No pré-registro, o atraso em sua obtenção foi relatado como decorrente de problemas de diferentes naturezas, algumas inerentes à insituição, como problemas com os contratos de mão de obra terceirizada ou mudança do parque produtivo de Farmanguinhos. Quanto ao ambiente externo são exemplos de questões a interrupção no fornecimento da mefloquina e as mudanças processuais na Anvisa à época do pedido de registro. Pode-se dizer que ambos aspectos são de difícil alteração no curto prazo, tanto por ser parte das regras institucionais, quanto por serem inerentes ao ambiente externo, de baixa governabilidade pelos atores do projeto.

As dificuldades de lidar com os mecanismos de exportação podem ser atribuídas tanto à baixa experiência de Farmanguinhos em lidar com os tramites necessários, quanto à estrutura legal a que está submetida enquanto instituição pública brasileira. A experiência do ASMQ pode ser vista como um impulsionador de Farmanguinhos para lidar com os canais existentes de distribuição. A ausência de registro sanitário em outros países da região das Américas, mercado alvo para Farmanguinhos, foi contornada com a inclusão no Fundo Estratégico da OPAS e no processo de pré-qualificação da OMS. Este último encontrava-se em processo bastante avançado no momento do fechamento do texto, com a chance iminente de ser o primeiro produto da América Latina a obter esta certificação33.

A adoção no nível global foi fruto da discussão que precedeu à decisão do desenvolvimento do protudo, que partiu de sua reconhecida importância na abordagem à malaria falciparum. Já no caso da adoção pelos países, representando tanto por sua incorporação nos protocolos de tratamento, nas listas de medicamentos essenciais e no tipo de recomendação de uso, a adoção foi bastante variável, apontanto para a necessidade de contemplar este aspecto na arquitetura de projetos futuros.

No Brasil, a diferença entre os produtos previstos na Rename e aqueles adotados pelo PNCM apontam para uma inconsistência das próprias orientações do MS. Nesse sentido, interpreta-se que o ASMQ-FDC tenha sido incorporado no protocolo terapêutico nacional em 2010 como consequência dessas iniciativas (estudo do Acre e obtenção do registro). Há várias percepções relativas à recomendação do AL-FDC em detrimento do ASMQ-FDC feita pelo Comitê Técnico brasileiro. Embora ele tivesse caráter recomendatório e não decisório, uma das perspectivas é que o PNCM adotava todas as recomendações feitas pelo Comitê, tendo ele, portanto, um papel também na orientação sobre a incorporação de tecnologias. Este argumento é compreensível, na medida em que dentro do Comitê havia representação do próprio MS34.

É compreensível e louvável a autonomia de decisão do PNCM. A questão é a baixa transparência deste processo decisório, uma vez que os dossiês de revisão de evidência ou o registro das reuniões onde o tema foi discutido, se existentes não foram de fácil acesso.

A retirada do ASMQ-FDC das recomendações de primeira linha do tratamento da malária por P. falciparum na região amazônica, num momento estratégico de implementação das iniciativas de acesso, reflete a importância da articulação entre os diferentes entes governamentais neste processo.

No que concerne ao modelo avaliativo utilizado, considera-se que foram atendidos os princípios da participação. A demanda para o estudo partiu de um dos parceiros, a DNDi. O projeto consistiu numa construção coletiva e que buscou um desenho adequado ao seu objetivo. Os dados foram compartilhados numa oficina de trabalho bastante participativa que promoveu a interação de atores relevantes nas diferentes dimensões do acesso ao medicamento em questão. Os entrevistados tiveram acesso em primeira mão ao relatório produzido sobre o estudo, que sumariza as lições aprendidas em cada dimensão estudada do acesso aos medicamentos assim como elenca recomendações formuladas a partir da oficina e pela equipe do estudo.

Em que pesem limitações sinalizadas35 para o modelo de acesso a medicamentos escolhido17, optou-se por adotá-lo por já ter sido utilizado, com método parecido e em situação equivalente, em iniciativas de promoção de acesso que envolveram desde a P&D de tecnologias específicas até a adoção pelos usuários. Ademais, foi considerado relevante incorporar a Produção como atividade da disponibilidade.

O caso estudado envolveu uma série de parceiros de diferentes nacionalidades e contextos ao longo de seu processo de desenvolvimento. Ainda, os entrevistados tinham diferentes graus de interação prévia com os entrevistadores. Assim, há a possibilidade heterogênea de que alguns atores se sentissem mais confortáveis do que outros em apontar aspectos negativos ou obstáculos identificados ao longo do processo.

A avaliação envolveu atores internos e externos ao tema principal, com diferentes graus de interação entre si e com diversos entrevistados ao longo de suas histórias profissionais, o que pode ter influenciado, de maneira não previsível, as respostas no momento da entrevista.

Considerações finais

O lançamento do ASMQ-FDC num momento posterior ao previamente planejado e as dificuldades de Farmanguinhos no processo de desenvolvimento do produto são aspectos reconhecidos nesta pesquisa e portadores de lições para o futuro. No entanto, esses aspectos não explicam sozinhos a baixa demanda do medicamento após seu lançamento em 2008. A baixa demanda do ASMQ-FDC se insere num contexto mais abrangente envolvendo vários aspectos que são anteriores a 2008, o que sugere que os desafios encontrados para a ampliação do acesso deste medicamento talvez estivessem presentes mesmo se o produto tivesse sido lançado no prazo previsto.

São inegáveis os alcances do projeto, com a obtenção do produto, com sua pré-qualificação pela OMS em fase avançada. São também alcances importantes o aprendizado organizacional promovido, o fortalecimento de alianças institucionais e a incorporação do advocacy das doenças negligenciadas pelos atores envolvidos. No entanto, aspectos como a melhor preparação do ambientes institucional, o monitoramento dos indicadores epidemiológicos das doenças alvo para melhor prospecção da demanda, assim como o monitoramento das externalidades para antecipar, tanto quanto possível, potenciais efeitos adversos, devem ser considerados na arquitetura de projetos futuros desta natureza. Ficou bastante claro que o percurso da P&D até a adoção pelo usuário final, fator fundamental para a consumação do acesso, requer planejamento, monitoramento e gestão que garantam o sistêmico desenvolvimento das etapas e permitam minimizar os desafios impostos pelo ambiente externo.

REFERÊNCIAS

1. Medecins Sans Frontieres (MSF). Fatal Imbalance. The Crisis in Research and Development for Drugs for Neglected Diseases. Genebra: DND-MSF; 2001.
2. World Health Assembly. Resolution WHA56.27. Intellectual property rights, innovation and public health. Geneva: World Health Organization; 2003.
3. Commission on Intellectual Property Rights and Public Health Innovation (CIPIH). Public health, innovation and intellectual property rights report of the Commission on Intellectual Property Rights, Innovation and Public Health. Geneva: World Health Organization; 2006.
4. Grace C, Britain G. Product Development Partnerships (PDPs): Lessons from PDPs established to develop new health technologies for neglected diseases. London: Department for International Development, Human Development Resource Centre; 2010.
5. World Health Organization (WHO). Antimalarial Drug Combination Therapy. Report of a WHO Technical Consultation. Geneva: WHO; 2001.
6. World Health Organization (WHO). Global supply of artemether-lumefantrine before, during, and after the Memorandum of Understanding between WHO and Novartis. Geneva: WHO; 2011.
7. Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDi).. ASMQ to treat Malaria [Internet]. 2014. [cited 2015 Aug 13]. Available from:
8. World Health Organization (WHO). World Malaria Report 2014. Geneva: WHO; 2014.
9. Roll Back Malaria (RBM) Partnership [Internet]. 2015. [cited 2015 Aug 13]. Available from:
10. Balkan S, Corty J-F. Malaria: Introducing ACT from Asia to Africa. In: Jean-Hervé Bradol, Claudine Vidal, editors. Medical Innovations in Humanitarian Situations The Work of Médecins Sans Frontières. Médecins Sans Frontières; 2011. p. 155-177.
11. UNITAID. UNITAID - Innovation for Global Health [Internet]. UNITAID; 2006 [cited 2015 Aug 17]. Available from:
12. DNDi América Latina. ASMQ - Combinação em dose fixa de artesunato+mefloquina [Internet]. 2014. [cited 2015 Aug 17]. Available from:
13. Kameda K. Needs-Driven Versus Market-Driven Pharmaceutical Innovation: The Consortium for the Development of a New Medicine against Malaria in Brazil. Developing World Bioethics 2014; 14(2):101-108.
14. Wells S, Diap G, Kiechel J-R. The story of artesunate-mefloquine (ASMQ), innovative partnerships in drug development: case study. Mal J 2013; 12(68):1-10.
15. Yin RK. Case study research: design and methods. London: SAGE Publications Limited; 2009.
16. Garbarino S, Holland J. Quantitative and Qualitative Methods in Impact Evaluation and Measuring Results. Birmingham: GSDRC, DIFD; 2009.
17. Frost LJ, Reich MR. Access : how do good health technologies get to poor people in poor countries? Cambridge: Harvard Center for Population and Development Studies; 2008. (Harvard series on population and international health).
18. Wynn BO, Dutta A, Nelson MI. Challenges in programa evaluation of health interventions in developing countries. Arlington: RAND Corporation; 2005.
19. Mack N, Woodsong C, MacQueen KM, Guest G, Namey E. Qualitative Research methods: A Data Collector’s Field Guide. Module 1: Qualitative Research Methods Overview. Research Triangle Park: USAID; 2005.
20. World Health Organization (WHO). Guidelines for the treatment of malaria. 2nd ed. Geneva: WHO; 2010.
21. Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDi). Proposal for the Inclusion of artesunate and mefloquine (ASMQ) fixed dose combination (FDC) tablets 25/55 mg and 100/220mg as a treatment for uncomplicated Falciparum malaria in the WHO Model List of Essential Medicines. Genebra: DNDi; 2012.
22. Santelli AC, Ribeiro I, Daher A, Boulos M, Marchesini PB, Santos RL, Lucena MB, Magalhães I, Leon AP, Junger W, Ladislau JL. Effect of artesunate-mefloquine fixed-dose combination in malaria transmission in amazon basin communities. Malar J 2012; 11:286.
23. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Guia prático de tratamento da malária no Brasil. Brasília: MS; 2010.
24. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Assistência Farmacêutica. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, Rename, 2010. 7ª ed. Brasília: MS; 2010.
25. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais: Rename 2014. 9ª ed. Brasília: MS; 2014.
26. Organização PanAmericana da Saúde, escritório Brasil. OPAS/OMS no Brasil, Membro do Comitê Técnico Assessor para Malária [Internet]. 2012 [cited 2015 Apr 15]. Available from:
27. Iniciativa para Doenças Negligenciadas (DNDi). Documento de Posição da DNDi - Transformando Sucessos Individuais em Mudanças Sustentáveis para Garantir a Inovação em Saúde para Pacientes Negligenciados: Por que é necessária uma convenção sobre P&D essencial em saúde? Genebra: DNDi; 2012.
28. Souza AM. O Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectural Relacionados ao Comércio (TRIPS): implicações e possibilidades para a saúde pública no Brasil. Brasília: IPEA; 2011.
29. Global Partnership to Roll Back Malaria, World Health Organization, UNICEF. World malaria report 2005. Geneva: World Health Organization: UNICEF; 2005.
30. Loiola CCP, Silva C, Tauil PL. Controle da malária no Brasil: 1965 a 2001. Rev Panam Salud Publica 2002;11(4):235-244.
31. Correa CM. Guidelines for the examination of pharmaceutical patents: developing a public health perspective. Châtelaine: ICTSD; 2007.
32. Naranjo-Valencia JC, Jiménez-Jiménez D, Sanz-Valle R. Studying the links between organizational culture, innovation, and performance in Spanish companies. Revista Latinoamericana de Psicología 2016; 48(1):30-41.
33. Farmanguinhos. Medicamento contra a malária produzido por Farmanguinhos será avaliado pela OMS [Internet]. Fiocruz. 2016 [cited 2016 Oct 17]. Available from:
34. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Portaria nº 195, de 30 de setembro de 2010. Institui o Comitê Técnico Assessor do Programa Nacional de Controle da Malária (PNCM), que possui caráter consultivo, com a finalidade de assessorar a Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), nos aspectos relativos ao controle da Malária. Diário Oficial da União 2010, 1 out.
35. Bigdeli M, Jacobs B, Tomson G, Laing R, Ghaffar A, Dujardin B, Van Damme W. Access to medicines from a health system perspective. Health Policy Plan 2012; 28(7):692-704.