versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.6 Rio de Janeiro jun. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015206.13442014
The notification of the occurrence or suspicion of violence is mandatory for health professionals and is a key tool for epidemiological surveillance and the definition of public policies for prevention and intervention. However, professionals feel unprepared for this assignment, which renders underreporting prevalent. To address this issue, the objective is to identify the means available to the professional to submit notification as well as ensure due process follow-up. For this purpose, research and document analysis was conducted in Brazilian legislation, ordinances, and government programs, codes of ethics and consultation of the literature in databases on the subject over a period of five years to establish a brief comparative analysis with other countries. The conclusion drawn is that while some measures are inapplicable, knowledge about the appropriate process for the notification and routing to specific organs will enable healthcare professionals to make the appropriate decisions for the protection and safety of the victim, besides the measures in order to change this situation of violence in the country.
Key words: Violence; Notification; Processes; Surveillance; Prevention and intervention
A alta incidência da violência, tanto em nível nacional quanto mundial, e seu impacto na vida das pessoas e coletividades fizeram com que esta questão se transformasse numa prioridade da saúde pública mundial, pois pela sua complexidade envolve a conscientização e a participação efetiva de toda a sociedade1. Este aspecto se reflete nos serviços de saúde, constituindo-se num enorme desafio para os profissionais quando são convocados a darem mais atenção ao tema da violência, fenômeno social crescente e indicador da instalação de uma ‘sociedade de risco’2. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) a violência é reconhecida como: “O uso intencional de força física ou poder, real ou em ameaça contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação”3.
O Ministério da Saúde prevê, através da Portaria nº 104, a obrigatoriedade da notificação compulsória, que compreende a comunicação de casos novos de doenças e agravos, incluindo a violência4. A notificação sendo obrigatória constitui-se num instrumento fundamental para o conhecimento do perfil da violência, possibilitando a realização de ações para a prevenção do problema. Trazendo à tona não somente o benefício aos casos singulares, como também sendo o meio de controle epidemiológico5,6.
Apesar dos avanços no sentido de garantir a obrigatoriedade da notificação, ainda se trata de um fenômeno invisível na rotina dos profissionais de saúde. A subnotificação está relacionada à falta de informações técnicas e científicas do assunto. Além disso, existem vários entraves à notificação no Brasil, como escassez de regulamentos que firmem os procedimentos técnicos, ausência de mecanismos legais de proteção aos profissionais encarregados de notificar, falha na identificação da violência no serviço de saúde e a quebra de sigilo profıssional5,7,8.
O desafio está no reconhecimento da violência como um tema interdisciplinar, onde a notificação transforma-se num passo primordial e numa estratégia eficiente de organização, possibilitando construir uma rede para o seu controle a partir do âmbito municipal ou estadual, em comunicação com outros órgãos6,8,9.
Nesse contexto, o presente estudo visa contribuir com os profissionais de saúde, enfatizando a necessidade do reconhecimento e da obrigatoriedade da notificação da violência, e dos meios disponíveis para a sua realização; como também, proporcionando o conhecimento do processo de encaminhamento e das medidas de proteção adequadas às vítimas.
Trata-se de um estudo exploratório, realizado por meio de análise documental das principais leis, portarias e programas governamentais que visam o combate à violência, assim como a segurança e proteção da vítima, num total de vinte documentos contidos na Legislação Brasileira, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, em sites e publicações institucionais do Ministério da Saúde, Organização Mundial de Saúde e Organização Panamericana de Saúde, além do conhecimento da devida postura do profissional diante da questão nos Códigos de Ética da: Enfermagem, Medicina, Odontologia e Psicologia.
Foi realizada pesquisa bibliográfica sobre o tema, em artigos científicos, publicados no Brasil, no período de 2010 a 2014, na base de dados de textos completos na SciELO (Cientific Library Online); a escolha desse período, deu-se em função de se obter opiniões mais atuais dos profissionais de saúde sobre a questão. Para o levantamento foram utilizados os seguintes descritores: Violência and Notificação – 32 artigos; Violência and Notificação and Crianças e Adolescentes – 14 artigos; Violência and Notificação and Mulheres – 4 artigos; Violência and Notificação and Homens – 2 artigos; Violência and Notificação and Idosos – 4 artigos; Violência and Subnotificação – 1 artigo, Notificação da Violência and Profissionais de Saúde – 10 artigos; Notificação da Violência and Capacitação dos Profissionais – 3 artigos. Foram incluídos na análise, os trabalhos que abrangiam a questão da violência, da notificação e do papel do profissional de saúde nesta situação. Dos 70 artigos encontrados na 1ª fase de seleção, 21 foram selecionados após a aplicação do critério de inclusão.
Para estabelecer uma análise comparativa concisa, e embasar a abordagem por meio do conhecimento do conteúdo, na visão atual de outros países, foi realizada uma pesquisa na base de dados da Pubmed, através do descritor “Notification and Violence”, sendo encontrados 14 artigos internacionais, dentro da perspectiva do estudo, porém apenas três corresponderam ao critério da seleção por apresentar também a posição do profissional diante da questão.
A análise dos documentos oficiais e artigos pautaram-se no seguinte roteiro investigativo: violência e notificação contra crianças e adolescentes, mulheres, homens e idosos; descrição das formas de notificação; principais diretrizes para a sua realização; envolvimento dos profissionais nesse processo e a utilização das fichas de notificação.
No final, foram identificados: 19 documentos - entre leis, portarias, programas governamentais e Códigos de ética (Quadro 1); 21 artigos nacionais e 3 internacionais (Quadro 2), formando um total de quarenta e três títulos, sobre o tema em discussão.
Quadro 1 Relação dos documentos analisados.
Ano | Documentos | Conteúdo |
---|---|---|
2002 | Org. Mundial da Saúde | Relatório Mundial sobre violência e saúde. |
1990 | Lei n° 8069 | Estatuto da Criança e do Adolescente. |
2003 | Lei n° 10.741 | Estatuto do Idoso. |
2006 | Lei n° 11.340 | Lei Maria da Penha. |
2014 | Lei n° 13.010 | Lei da Palmada. |
2003 | Lei n° 10.778 | Estabelece a Notifıcação Compulsória. |
2011 | Portaria n° 104 | Define as terminologias adotadas na legislação nacional. |
2001 | Portaria n° 1968/GM | Dispõe sobre a notificação de maus tratos contra crianças na rede SUS. |
2002 | Ministério da Saúde | Guia de notifıcação de maus tratos contra crianças e adolescentes. |
2005 | Ministério da Saúde | Aspectos jurídicos do atendimento às vítimas de violência sexual. |
2007 | Ministério da Justiça | Orientações para criação e funcionamento do Conselho Municipal da criança e do adolescente e Conselho Tutelar. |
2009 | Ministério da Saúde | Manual para atendimento às vítimas da violência na rede pública. |
2009 | Ministério da Saúde | Guia de Vigilância Epidemiológica |
2011 | Ministério da Saúde | Ficha de Notifıcação |
2011 | Programa VIVA | Instrutivo da notificação da violência doméstica, sexual e outras violências. |
2000 | Conselho de Enfermagem | Código de Ética dos profıssionais de Enfermagem |
2005 | Conselho de Psicologia | Código de Ética dos profıssionais de Psicologia |
2010 | Conselho de Medicina | Código de Ética Médica |
2010 | Conselho de Odontologia | Código de Ética dos profıssionais de Odontologia |
Fonte: Pesquisa realizada pelos autores em abril/maio 2014.
Quadro 2 Relação dos artigos analisados
Ano | Autores | Artigos | Conteúdos |
---|---|---|---|
2012 | Almeida AHV et al. | Nacional | Responsabilidade dos profıssionais na notificação dos casos de violência contra crianças e adolescentes |
2012 | Assis SG | Nacional | Notifıcações de violências domésticas |
2012 | Cecilio LP et al. | Nacional | Violência interpessoal |
2011 | Cruz SH et al. | Nacional | Vitimização por violência urbana |
2011 | Dantas-Berger S, Giffin KM. | Nacional | Violência na gravidez e práticas profıssionais |
2011 | Deslandes S. | Nacional | Indicadores das ações municipais para a notifıcação. |
2011 | Garbin CAS et al. | Nacional | Violência contra crianças e registros. |
2013 | Kind L et al. | Nacional | Subnotifıcação e invisibilidade da violência contra mulheres |
2011 | Kiss LB, Schraiber LB. | Nacional | Violência contra mulheres no discurso dos profıssionais |
2011 | Lima JS, Deslandes SF. | Nacional | A notifıcação compulsória do abuso sexual contra crianças e adolescentes. |
2010 | Luna GLM et al. | Nacional | Notifıcação de maus tratos contra crianças e adolescentes |
2012 | Mascarenhas MD et al. | Nacional | Violência contra pessoa idosa |
2011 | Meneghel SN et al | Nacional | Rotas críticas de mulheres em situação de violência |
2010 | Minayo MCS | Nacional | Violência na agenda da saúde |
2010 | Monteiro FO. | Nacional | Identifıcação e notifıcação da violência contra crianças e adolescentes |
2013 | Moreira GAR et al. | Nacional | Conhecimento dos profıssionais sobre maus-tratos contra crianças e adolescentes |
2010 | Santos ER et al. | Nacional | Atendimento aos agravos e violências contra idosos. |
2012 | Schraiber LB et al. | Nacional | Assistência a mulheres em situação de violência |
2013 | Veloso MMX et al. | Nacional | Notifıcação da violência |
2013 | Vieira LJES et al. | Nacional | Violência contra a mulher notifıcada em serviços sentinela |
2011 | Villela WV et al. | Nacional | Atendimento a mulheres que sofrem de violência |
2013 | Hegarty K et al. | Internacional | Aconselhamentos e cuidados básicos às mulheres vítimas de violência |
2013 | Mathur S, Chopra R. | Internacional | O papel do dentista na identifıcação e combate da violência contra crianças |
2013 | Zapata-Giraldo FF. | Internacional | Violência contra mulher por parceiro íntimo |
Fonte: Pesquisa realizada pelos autores na base de dados do SciELO e PubMed em abril/maio 2014.
Por meio da interpretação analítica da legislação, das portarias e dos programas governamentais, além dos códigos de ética, buscou-se evidenciar os aspectos relevantes para a notificação da violência pelos profıssionais de saúde, assim como os dispositivos legais e éticos implicados na situação.
Existem no Brasil várias leis, portarias e dispositivos com concepções abrangentes e disposições jurídicas que amparam pessoas vítimas de violência, sendo importante que o poder público se estabeleça como zelador desses direitos no sentido de garantir o seu cumprimento.
Todo o material analisado foi distribuído e discutido em cinco tópicos, de acordo com os critérios definidos na metodologia: Violência e grupos vulneráveis; A notificação da violência; profıssionais e notificação da violência; Fluxo da notificação e órgãos de acolhimento e Breve análise do uso da notificação em outros países.
Discute-se no primeiro tópico a violência contra crianças e adolescentes, mulheres, homens e idosos, e suas respectivas notificações. No segundo, a forma de registro da ocorrência da violência e a importância de sua utilização. No terceiro, as experiências e atitudes dos profıssionais de saúde, em setores de atendimento e suas notificações ou subnotificações. No quarto, as normas e as diretrizes para o encaminhamento da notificação da violência e no quinto, conferese uma pequena análise dos registros da violência em outros países, comparando com o Brasil.
Nos estudos incluídos nesse tópico transparecem as discussões da sociedade contemporânea voltadas para os diversos tipos de violência, suas consequências, condições de atendimento e proteção.
A violência na maioria dos estudos é vista como um grande problema social que atinge toda a sociedade, prejudicando crianças, adolescentes, mulheres, homens e idosos; sendo responsável pelo adoecimento, mutilações e mortes causadas por ações realizadas por indivíduos ou grupos, provocando danos físicos, emocionais e/ou espirituais a eles próprios ou a outros; além de gerar despesas para os serviços públicos10–12.
Nas últimas décadas, a sociedade brasileira tem se preocupado com o direito e a proteção dos grupos vulneráveis, como idosos, mulheres, homens, crianças e adolescentes; sem considerar o Estatuto da Criança e do Adolescente13, em vigência há mais de vinte anos; tanto o Estatuto do Idoso14, quanto a Lei Maria da Penha15, foram instituídos nos anos 2000. Recentemente, em 27/06/2014, foi aprovada a Lei da Palmada16, que pune os castigos que causem sofrimentos físicos em crianças.
Na reformulação da lista de doenças de notificação compulsória, em 2011, o Ministério da Saúde definiu como agravo “qualquer dano à integridade física, mental e social dos indivíduos provocado por circunstâncias nocivas, como acidentes, intoxicações, abuso de drogas e lesões auto ou heteroinfligidas”, incluindo a “violência doméstica, sexual e/outras violências” entre os agravos a serem notificados obrigatoriamente pelos profıssionais de saúde4.
Alguns estudos demonstraram que existem em muitos atendimentos a subnotificação, pela falta de monitoramento e de orientação para um registro contínuo, padronizado e adequado sobre acidentes e violência17–19. Mesmo havendo um aumento dessas ocorrências, esta situação se repete quando as vítimas da violência são crianças, mulheres, homossexuais, idosos, doentes, pobres e moradores de rua, o que leva a interpretar que existem pessoas não reconhecidas como cidadãos e que carecem de direitos20,21.
A notificação compulsória da violência contra crianças e adolescentes, vista de forma consensual na literatura, deve ser compreendida como um instrumento de garantia de direitos e de proteção social, permitindo aos profıssionais de saúde, de educação, da assistência social, dos Conselhos Tutelares e da justiça adotarem medidas adequadas6,8,18.
O fenômeno da violência contra a mulher reflete as desigualdades de gêneros na sociedade e manifesta-se como um problema de saúde pública pela magnitude de sua prevalência, gravidade e recorrência, assim como pelas consequências negativas na qualidade de vida das vítimas10,17,22. Segundo a Lei nº 11.340/200615, os tipos de violência contra a mulher se manifestam nas formas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Vários autores constatam que os fatores sociais contribuem para a ocorrência dos casos15,19.
Apesar do avanço nos atendimentos dos casos de violência, muitas dificuldades ainda persistem no que diz respeito, tanto a qualidade da assistência oferecida, quanto a articulação dos serviços entre si. Os diversos setores de prestação de serviços como: saúde, serviço social, policial e jurídico são integrantes de uma rede pouco inter-relacionada2,21,22.
O profıssional de saúde deve lembrar que notificação não é denúncia, no caso de crianças vítimas de violência, a mera suspeita deve ser notificada, não só à vigilância sanitária, como também ao conselho tutelar; o mesmo se aplica aos idosos, nesse caso devendo ser notificados e encaminhados à autoridade policial, Ministério Público ou Conselho do Idoso. Para mulheres não é necessário notificar a suspeita, sendo compulsória apenas quando o fato for confirmado. E, nos casos em que a vítima seja homem, embora não especificado na lei, fıca implícito que também devem ser notificados os casos confirmados, uma vez que toda violência interpessoal é objeto da norma23.
A organização institucional pode constituirse num grande diferencial para o enfrentamento da violência, pois, se adequadamente comprometida com a defesa e a segurança dos cidadãos, poderá fomentar e dar sustentação ao processo como um todo e ao envolvimento dos profıssionais, bem como propiciar a estes um preparo adequado18,24,25.
Os títulos aqui catalogados apresentam em comum a discussão dos aspectos que envolvem o diagnóstico e reconhecimento da violência e sua devida notificação. A ficha de notificação é uma ferramenta utilizada como vigilância epidemiológica na área de saúde26. A ausência de um sistema de registro dos casos de violência em saúde constitui-se numa enorme limitação em termos de informação27.
A fıcha de notificação possui questões que estão subdivididas em campos, englobando dados de identificação, dados detalhados da ocorrência, dados sobre evolução e encaminhamento, no setor de saúde e fora dele, além da circunstância da lesão definida pelo CID 10 (Código Internacional de Doenças)27.
A notifıcação da violência segue os mesmos princípios de qualquer notificação compulsória de agravos já utilizada na saúde pública, o seu trâmite deverá iniciar na unidade de saúde notificadora para os órgãos competentes, para as providências legais e cabíveis. As principais vantagens da notificação são: possibilitar a viabilização de um sistema de registro com informações mais fidedignas; verificar se o atendimento às vítimas está sendo incorporado às rotinas institucionais27.
No Brasil, o registro de situações de violência familiar é fragmentado, o que provoca prejuízo para uma rotina clara e eficaz, ocasionando deficiências nos procedimentos a serem seguidos pelos profıssionais e instituições24,25,28. Além disso, há carência de políticas públicas eficazes que viabilizem a criação e, principalmente, a manutenção de programas preventivos e de tratamento, necessários para promover o aprimoramento e evolução de técnicas para o enfrentamento dessa problemática22,25.
O aumento da violência no Brasil contribuiu, a partir da última década, para o desenvolvimento de estudos e programas voltados para o combate e prevenção dessas agressões. Em 2006, o Mistério da Saúde implantou o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), configurado em dois aspectos: VIVA Contínuo – relativo à vigilância de violência doméstica, sexual e/ou outras violências interpessoais e autoprovocadas; e VIVA Sentinela – relativo à vigilância de violências e acidentes e emergências hospitalares; como recurso para avaliar de forma mais ampla o impacto da violência no país29.
Embora seja clara quanto à obrigatoriedade de notificar, a legislação brasileira não dispõe de uma boa orientação aos profıssionais. Nesse sentido, torna-se necessário o treinamento e a articulação entre os profıssionais de saúde, assistentes sociais, advogados, psicólogos, profıssionais da educação, dentre outros, para um trabalho interdisciplinar na prevenção e combate da violência8,18,28.
A notifıcação da violência amplia a ‘visibilidade’ dos fenômenos e processos sociais complexos, reforçando as atitudes dos profıssionais de saúde, tanto para o reconhecimento das condições sociais, de direitos humanos e de justiça social envolvidos, quanto para avançarem na identificação e tratamento dos agravos físicos, psíquicos e sexuais decorrentes da violência17,20,28.
Se para viver em sociedade precisa-se obedecer a regras e normas, no exercício da profissão não é diferente. Nesse contexto, além do dever de observância das regras gerais aplicadas a todos os cidadãos, o profissional deve atuar de acordo com as orientações normativas específicas e inerentes à função que exerce.
Esses mandamentos emanados por normas, gerais ou específicas, impostas pelo Estado e estabelecidos por atos normativos dos Órgãos de Fiscalização Profissional, são de cumprimento obrigatório. Isto significa que o seu descumprimento pode acarretar sanções de natureza jurídica e ético-disciplinar30–33.
O sistema adotado pelo Código de Ética das profissões no campo da saúde fundamenta-se na responsabilidade deôntica, isto é, em um conjunto de deveres e obrigações. A grande maioria dos códigos não traz explicitamente a notificação da violência como um dever do profissional, no entanto, cita a responsabilidade em promover a saúde e a qualidade de vida, respeitando os direitos humanos30–33.
A responsabilidade jurídica do profissional de saúde com relação ao preenchimento da ficha de notificação encontra-se na Lei Federal nº 10.788, que em seu artigo 5º preconiza: “A inobservância das obrigações estabelecidas nesta Lei constitui infração da legislação referente à saúde pública, sem prejuízo das sanções penais cabíveis”23. Pela interpretação deste artigo pode-se dizer que além do previsto na parte penal, o profissional de saúde também ficaria sujeito às penas previstas no seu Código de exercício profıssional.
A subnotificação nos casos de violência é um problema grave, sobretudo quando sabe-se que as ações e políticas públicas para o enfrentamento da questão, têm como base os dados epidemiológicos. Ao se revelar como uma realidade pouco ou mal conhecida, essa situação acaba por configurar-se invisível, operando, em nível estrutural, como mais uma forma de violência17.
As principais causas da subnotificação vão desde a falta de capacitação dos profıssionais e ameaças que sofrem dos autores das violências, até às questões estruturais, relacionadas com a atuação insatisfatória dos órgãos competentes, nos serviços de retaguarda e no cumprimento de medidas protetivas, adequadas às vítimas5,7,8,34.
Estes não são os únicos desafios para o enfrentamento da violência, as políticas e planos desenvolvidos por Estados e Municípios, deveriam contemplar as características específicas dessas violências, em cada localidade, como também, promover a integração dos mecanismos de registros dessas ocorrências, possibilitando o desenvolvimento e consolidação das ações que forem implementadas35.
Como instrumento eficaz de política pública, a notificação insere-se como uma das estratégias primordiais do Ministério da Saúde, no âmbito das ações contra a violência, contribuindo para o seu dimensionamento e assegurando a implementação de políticas públicas de vigilância e assistência às vítimas. Uma atuação preventiva no sentido de combater a violência é altamente relevante, pois além de minimizar as ocorrências, evita a perda da qualidade de vida e dos gastos elevados nos serviços de atendimento,8,9,36,37.
Estudos realizados em vários locais do Brasil revelam as dificuldades encontradas pelos profıssionais para efetuar a notificação, segundo os pesquisadores, existem problemas na rede de serviços, nas regulamentações técnicas e nos mecanismos legais de proteção aos profıssionais encarregados de notificar. A ausência de respaldo da instituição, em caso de notificação, para com o profissional, gera insegurança e descrédito nas redes de apoio, pois estas encontram-se desarticuladas24,28.
Torna-se relevante o incremento de programas de formação continuada para os profıssionais de saúde, no sentido de prepará-los para o entendimento do fenômeno da violência em sua complexidade e para o esclarecimento das noções legais, superando suas resistências e ultrapassando aspectos e abordagens fisiopatológicas da questão. Pois, a notificação coloca para fora dos limites do serviço de saúde o problema ali detectado e convoca parcerias, cuja ação tem se mostrado imprescindível nesta área25,28.
A inexistência de um sistema nacional que integre os dados das várias áreas envolvidas na proteção das vítimas da violência é o principal entrave para que o Brasil combata as violações dos direitos dessas pessoas. A intersetorialidade das ações e a formação de redes para o atendimento das vítimas da violência constituem-se como indispensáveis para a condução de ações de prevenção e promoção da saúde e da qualidade de vida35.
Neste tópico estão as diretrizes e normas legais para encaminhamento da notificação da violência, complementados com alguns estudos sobre o tema.
A compreensão das características epidemiológicas da violência é o primeiro passo para definir a atuação e ampliar as possibilidades de prevenção. Quando for diagnosticada a violência, o profissional deverá acionar as instâncias competentes, para reverter a situação e garantir a integridade e os direitos da vítima8,11.
Geralmente, a violência reincide por falta de ações adequadas das instituições recorridas, sendo este caminho nomeado como “rota crítica” por pesquisadores da Organização Panamericana de Saúde, e está repleto de desencontros, desestímulos e falta de acesso a advogados, delegacias e outras instituições21. Os serviços de saúde têm o dever de acolher e apoiar, ao invés de ser mais um obstáculo para as vítimas.
O conhecimento dos serviços disponíveis é imprescindível para que os profıssionais tenham uma postura adequada no atendimento às vítimas das agressões. A Organização Mundial da Saúde3 estabeleceu os padrões de violência, distribuindo em três categorias: violência dirigida a si mesmo ou autoinfligida; violência interpessoal e violência coletiva. Os atos de violência são caracterizados de acordo com a natureza das agressões, que podem ser: física, sexual, psicológica e de negligência ou privação, podendo ocorrer em cada uma das categorias, com exceção da violência autoinfligida. A notificação de cada situação deve seguir uma trajetória específica, isto é, de acordo com o caso diagnosticado pelo profissional de saúde12 (Figura 1).
Após o acolhimento da vítima, o profissional de saúde deverá preencher a Ficha de Notificação em duas vias, encaminhá-las ao Serviço Social ou ao Programa de Prevenção e Atendimento às Vítimas de Violência - PAV, da Unidade de Saúde, conforme as legislações: Estatuto da Criança e do Adolescente13- Lei nº 8.069; Notificação da Violência contra Mulher23- Lei nº 10.778 e Estatuto do Idoso14- Lei Federal nº 10.741. Cabe ao Serviço Social a responsabilidade pelo encaminhamento da notificação ao Sistema de Vigilância Epidemiológica38, Conselho Tutelar ou demais órgãos competentes39,40.
Os casos envolvendo criança ou adolescente deverão ser notificados ao Conselho Tutelar do local de moradia da vítima. Na falta deste, encaminhar para a Vara da Infância e Juventude. Em situações de abuso sexual, violência física grave e negligência severa, notificar à Delegacia Especial de Proteção à Criança e ao Adolescente – DPCA ou à Delegacia de Polícia mais próxima da Unidade de Saúde41,42.
Os casos de violência contra o idoso deverão ser encaminhados para a Delegacia de Polícia mais próxima do Centro de Saúde e para o Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS. Se a violência for contra a mulher, o profissional deverá orientá-la a realizar a Notificação na Delegacia de Polícia ou DEAM.
A notificação a depender do caso seguirá para a instituição competente, como: Vigilância Epidemiológica, Autoridade Policial, Instituto Médico Legal e Hospitais Públicos, Conselho de Idoso, Conselho Tutelar e Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, a partir daí, serão dados os direcionamentos inerentes a cada situação:
Vigilância Epidemiológica: independente da notificação da violência, todos os casos deverão ser cadastrados nesse sistema, para obter a dimensão do problema e subsidiar ações para seu enfrentamento, com base no direito à saúde e à vida38.
Autoridade Policial: Delegacias de Polícia e Especializadas no atendimento à criança e ao adolescente, à mulher, ao homem e ao idoso. Onde são realizadas as ações de prevenção, apuração, investigação e enquadramento legal, como o Boletim de Ocorrência, instauração do inquérito e a solicitação ao juiz das medidas protetivas de urgência.
Instituto Médico Legal (IML): realiza exames de corpo de delito e outras perícias como: exame de lesões corporais; de constatação: de embriaguez ou intoxicação por substância de qualquer natureza; de violência sexual; de sanidade mental, de idade, de doença sexualmente transmissível, e todas as demais perícias que interessem à Justiça.
Hospitais Públicos: oferecem atendimentos e serviços a qualquer cidadão vítima de violência, desde o acolhimento até a coleta de vestígios da violência sofrida.
Conselho do Idoso: presta atendimento a pessoas com idade de 60 anos em diante, orientando e conduzindo as denúncias e notificações, para a resolução dos problemas de discriminação e violação dos direitos da pessoa idosa, atuando em parceria com órgãos governamentais e não governamentais.
Conselho Tutelar: Define as medidas de proteção para crianças e adolescentes, garante os seus direitos e direciona para os órgãos competentes39.
Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM): efetua ações de prevenção, apuração, investigação e enquadramento legal, dentre estas estão: registro de Boletim de Ocorrência, instauração do inquérito e solicitação ao juiz das medidas protetivas de urgência, em situações de violência contra as mulheres.
Nos casos em que as vítimas necessitem de auxílio ou acolhimento recorre-se aos seguintes órgãos: Ministério Público, Centro de Referência de Assistência Social, Centro de Referência Especializado de Assistência Social, Centro de Referência da Mulher em situação de violência, Vara da Infância e da Juventude, Programa Sentinela e Núcleo de Defensoria especializada no atendimento à mulher40:
Ministério Público: defende os direitos sociais e individuais indisponíveis aos cidadãos (direito à vida, dignidade, liberdade, etc.), atuando nos casos com base na Constituição e nas leis federais.
Centro de Referência da Mulher em situação de violência: oferece atendimento e acompanhamento psicológico, social, jurídico, além de orientação e informação às mulheres em situação de violência sobre os diferentes serviços disponíveis, para prevenção, apoio e assistência.
Centro de Referência de Assistência Social (CRAS): efetua serviços de proteção social básica, organiza e coordena a rede de serviços socioassistenciais. É a principal porta de entrada dos usuários à rede de proteção do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS): efetua serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos nas diversas situações de violação de direitos.
Vara da Infância e da Juventude: toma providências quando os direitos da criança forem ameaçados ou violados; sendo reconhecida a situação de risco do menor, pode destituir o poder familiar, como previsto no art.148 da Lei 8.069/9013.
Programa Sentinela: presta assistência, por meio de um conjunto articulado de ações, a crianças e adolescentes vitimados pela violência com ênfase no abuso e exploração sexual, além de criar condições para o resgate e a garantia dos seus direitos.
Núcleo de Defensoria especializada no atendimento à mulher (NUDEM): presta atendimento jurídico à mulher de baixa renda em situação de violência, orientando-a e defendendo-a em juízo, em todas as instâncias.
Torna-se imprescindível que o profissional de saúde tenha conhecimento amplo e consistente sobre a problemática da violência, para cumprir com o seu compromisso ético e legal. Portanto, ele deve comunicar oficialmente aos órgãos pertinentes, os casos suspeitos ou confirmados de violência contra as crianças, adolescentes, adultos ou idosos, com vistas à prevenção do problema, acompanhamento e proteção das vítimas.
Os estudos desse grupo relatam experiências de notificação da violência em outros países, procurando estabelecer uma comparação com os padrões usuais no Brasil.
Segundo Lima e Deslandes18, nos Estados Unidos, a notificação da violência acontece há mais de 30 anos, os profıssionais de saúde e de outras áreas da política social são os principais responsáveis legais por notificar. Ficando estabelecido o prazo de até 48 horas para iniciar a investigação sobre a veracidade da notificação, por meio das agências de proteção, com o prazo máximo de seis meses para a conclusão. São aplicadas punições, civis ou criminais, para os cidadãos que deixam de notificar uma situação de violência8,9.
Ainda, segundo os autores18, numa pesquisa realizada em trinta países, observou-se que apenas a metade das nações desenvolvidas e um terço dos países em desenvolvimento dispunham de registros centralizados; em países como Estados Unidos, França e Alemanha, a coleta de dados é fragmentada e com escassa comparabilidade.
A legislação sobre a violência no Brasil tem como referência o modelo americano, quanto à obrigatoriedade de notificar, à necessidade de encaminhamento da notificação a um organismo designado em lei e à punição para o profissional que não notificar. No entanto, os registros ficam comprometidos em decorrência do medo de retaliações, dificuldade ou constrangimentos de preencher a ficha, sobrecarga no cotidiano do serviço e dificuldade em lidar com os casos, entre outros18,41.
Os artigos internacionais selecionados abordam temas relativos a violência contra crianças e mulheres. Foi constatado em estudo que na Índia, existe uma alta frequência de agressões contra crianças, principalmente, lesões faciais associadas aos maus tratos, com graves consequências físicas e psíquicas. Os cirurgiões-dentistas são os profıssionais que têm maiores condições de detectar essas violências e a notificação é obrigatória, contribuindo para uma melhor assistência e proteção às vítimas43.
Por meio de pesquisa realizada em banco de dados do sistema de vigilância epidemiológica, em Quindio, na Colômbia, sobre os fatores de risco para a violência praticada em mulheres por parceiros, verificou-se que a ocorrência da maioria das agressões foi contra mulheres jovens, principalmente, de natureza física e sexual, motivada pelo consumo do álcool e outras drogas, com consequências graves, tanto físicas quanto psicológicas. Por ser esse fenômeno, social e urbano, cada vez mais reincidente, os autores indicam a necessidades intervenções para minimizar a situação44.
Alguns autores evidenciam os benefícios em atendimentos na atenção básica, com intervenções e aconselhamentos para mulheres agredidas por parceiros íntimos. Trabalho realizado em Victoria, na Austrália, onde médicos foram treinados para este atendimento, para a realização das notificações e para as sessões de aconselhamento. Como resultado, obtiveram menor índice de depressão e melhor qualidade de vida das vitimadas45.
Diversos estudos relatam situações de violência e alertam quanto à necessidade de pesquisas mais aprofundadas, que norteiem ações mais eficazes, para conter a situação e garantir a segurança das vítimas. Dentre essas ações destacam a capacitação dos profıssionais de saúde, como fator preponderante para diagnosticar a violência, notificar e conduzir adequadamente os casos43,44,45.
A conscientização da importância da notificação, a quebra de paradigmas e o treinamento contínuo no diagnóstico de situações de violência, trazem subsídios para a construção de políticas públicas em saúde mais eficazes, contribuindo para a solução de um expressivo problema da sociedade.
A violência apresenta-se como grave ameaça à vida da população, sendo oportuno destacar que, por meio da notificação, cria-se um elo entre a área da saúde e o sistema legal, delineando-se a formação de uma rede multiprofissional e interinstitucional de atuação, fundamental para uma intervenção menos burocrática e mais eficiente dos casos.
Espera-se que este estudo contribua para um melhor entendimento sobre a questão da violência, confirmando a importância da notificação e a possibilidade de uma assistência consubstanciada na responsabilidade dos profıssionais, no intuito de se obter resultados satisfatórios que reduzam esses problemas e evitem sequelas nas pessoas vitimadas.