versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X
Cad. saúde colet. vol.27 no.2 Rio de Janeiro abr./jun. 2019 Epub 10-Jul-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201900020068
Blood, its components and derivatives are essential for the functioning of hematological and transfusion care in modern health systems.
To identify some of the difficulties, challenges, and strategies experienced in public blood banks currently, based on regional perspectives in Spain and Brazil.
Interviews with eleven managers/professionals from blood banks of the Autonomous Communities of Madrid, Extremadura and Catalonia (Spain) and the State of Bahia (Brazil) were conducted.
Two groups of difficulties were identified: availability of structure and resources; and recruitment and loyalty of donors. Challenges: to recruit and retain new donors, especially young people; to maintain sufficient stock of rare blood types and have blood products available; to deal with emerging pathologies arising from migration and globalization; to ensure the rational use of blood; to manage services with limited autonomy over financial resources; to deal with different stakeholders. The following strategic lines stood out: the use of several resources to raise awareness and loyalty of donors; the concentration of technology and procedures in coordinating centers; the implantation of public plasmapheresis programs and the utilization of different means to establish relations with different actors.
Respecting the regional peculiarities, the results can be used for the reflection and implementation of various actions aimed at blood donation and self-sufficiency in other regions of the world.
Keywords: blood; blood banks; blood donors; Spain; Brazil
O sangue e os diversos componentes e derivados do tecido sanguíneo humano têm se convertido em um elemento imprescindível para a Saúde Pública e para o funcionamento cotidiano da atenção hematológica e transfusional nos sistemas de saúde modernos. O Brasil e a Espanha assumiram, através da Lei 10.205/20011 e do Real Decreto 1088/20052, respectivamente, a autossuficiência baseada nas doações altruístas, a garantia da segurança transfusional e a operacionalização de serviços com infraestrutura adequada como objetivos e finalidades das ações e política de saúde voltada para o sangue. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a importância do estabelecimento de um sistema nacional de sangue com serviços bem organizados e políticas eficazes, sendo baseadas em disposições legislativas e regulamentos que assegurem a disposição do sangue e hemoderivados em quantidades suficientes para responderàs necessidades em tempo oportuno3.
No entanto, diversos fatores podem ameaçar o suprimento regular, seguro e adequado de sangue4. Recomenda-se que todo o sangue doado seja analisado para a detecção de infecções antes do seu uso, devendo ser submetido a testes de HIV, hepatite B e C e sífilis. Contudo, ainda existem países que não podem analisar a presença de uma ou mais dessas infecções em todo o sangue doado3,5. Segundo a OMS, existem diferenças marcantes no nível de acesso ao sangue entre países de alta e baixa renda, sendo que essa taxa é de 32,1 doações por 1.000 pessoas nos primeiros; cabendo registrar que em algumas dezenas de países, há menos de 10 doações por mil pessoas3. Segundo dados estatísticos, na Espanha, em 2016, o índice de doação foi de 36,62 por 1000 habitantes6, enquanto, no Brasil, em 2015, tal índice correspondeu a 18,20 por 1000 hab.7.
Portanto, as dificuldades e os desafios fazem parte do cotidiano dos gestores e profissionais que trabalham nos serviços de hemoterapia e demais serviços de saúde, requerendo desses o desenvolvimento e utilização de estratégias para assegurar a assistência hemoterápica.
Nesse sentido, este estudo tem por objetivo identificar algumas das dificuldades, dos desafios e das estratégias que os serviços de hemoterapia públicos experimentam no momento atual, a partir de perspectivas regionais na Espanha e no Brasil, para contribuir na reflexão e na implementação de variadas práticas e ações voltadas para a doação e para a autossuficiência de sangue e seus produtos.
Estudo de abordagem qualitativa8 e de natureza descritivo-exploratória, que toma por base os achados produzidos a partir de entrevistas realizadas para o estudo de pós-doutoramento intitulado “Gestão e planejamento em saúde no contexto da regionalização: uma análise a partir da implementação das ações e política do sangue no Sistema Único de Saúde (Brasil) e Sistema Nacional de Salud (Espanha)”, desenvolvido na Universidad Complutense de Madrid.
A fim de identificar dificuldades, desafios e estratégias para a implementação das ações de saúde voltadas para a área do sangue, foram realizadas 11 entrevistas com gestores e profissionais. Foram entrevistados: 08 gestores/profissionais (identificados por: E1, E2... E8) dos Centros de Transfusão, Serviços de Extração e Unidades de Extração, denominações de serviços de hemoterapia das Comunidades Autônomas (CCAA – territórios regionais da Espanha, podendo equivaler aos estados), sendo três serviços de Madri, dois de Extremadura e um da Catalunha, na Espanha (os respectivos Centros de Transfusão das três CCAA foram contemplados); e 03 gestores/profissionais (B1, B2, B3) de dois dos serviços de hemoterapia – Hemocentro Coordenador (HC) e Unidade de Coleta e Transfusão (UCT) –, no Estado de Bahia (Brasil).
As entrevistas, cujo roteiro incluía questões relacionadas à gestão e ao desenvolvimento das ações na área, inclusive, os seus desafios, foram realizadas no período de dezembro de 2016 a junho de 2017. Os resultados evidenciados a partir de tais relatos remetem às diferentes localidades aqui referidas como contextos ou realidades regionais, tendo em vista que as ações de hemoterapia desenvolvidas buscam alcançar municípios e territórios de uma região ou estado.
Os relatos foram transcritos na íntegra e procedeu-se à leitura, buscando identificar os “temas/unidades de significação” relacionados aos objetivos da pesquisa. Assim, após categorização seguiu-se para o tratamento dos resultados e a síntese interpretativa, caracterizando o uso da técnica de análise de conteúdo temática9.
Neste estudo, as categorias temáticas que emergiram da análise relacionaram-se: às dificuldades quanto à estrutura (contexto e elementos estáveis: recursos materiais, humanos e organizacionais) e ao processo (elementos constitutivos das práticas e do movimento para o planejamento e realização das ações)10; aos desafios (ato de instigar alguém para que realize alguma coisa que exija superação e enfrentamento, normalmente, além de suas competências ou habilidades)11; e as estratégias (“modelo ou plano que integra objetivos, políticas e ações de forma coesa”)12, que se constituem como meios e caminhos para dar respostas às dificuldades e aos desafios (Figura 1).
Foram respeitados os aspectos éticos concernentes à legislação de cada país. No Brasil, em acordo com a Resolução nº. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde13, e conforme parecer n. 1.466.768, CAAE n. 47155315.4.0000.5030, do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. E, na Espanha, o estudo foi realizado em consonância com as recomendações da Lei 15/1999 de 13 de dezembro, de “Protección de Datos de Carácter Personal”14. Todos os entrevistados assinaram termo de consentimento para participação.
Os resultados a seguir apresentados referem-se a algumas das dificuldades, desafios e linhas estratégicas identificadas a partir dos relatos de gestores e profissionais de serviços de hemoterapia de diferentes realidades regionais, portanto, devem ser consideradas as peculiaridades dessas, assim como os aspectos comuns.
Nos relatos dos entrevistados destacam-se dois grandes grupos de dificuldades: o primero está relacionado com a disposição de estrutura e recursos; e o segundo com o recrutamento e fidelização dos doadores. Ambos podem interferir e determinar a complexidade de estrutura e de processo das ações e dos serviços voltados para a autossuficiência de sangue e seus produtos.
Os entrevistados assinalaram diferentes questões relacionadas com a disposição de estrutura e recursos e com as condições dos serviços para a oferta de ações e procedimentos. Os problemas relacionados com o financiamento e a gestão do orçamento, com a insuficiência de recursos humanos em certas realidades, ou com outras questões organizativas, foram assinalados em ambos os contextos nacionais, ainda que com diferente ênfase. Na Espanha, a ênfase foi dada à crise econômica, enquanto na realidade brasileira os entrevistados deram destaque às deficiências e à insuficiência de serviços, por exemplo: o espaco físico reduzido das unidades, a “adaptação” de alguns serviços e a falta de recursos terapêuticos em realidades municipais. A insuficiência de serviços é caracterizada, por exemplo, pelo baixo quantitativo de unidades móveis disponíveis na realidade brasileira estudada. Outras dificuldades relacionadas à estrutura e aos recursos, por exemplo, a disposição de sistemas de informação unificados, foi referida para as CCAA de Madri e Extremadura.
No que tange à adesão e fidelização de doadores, os entrevistados consideraram que segue sendo uma dificuldade a enfrentar. No contexto da Bahia, a extensão geográfica e a dispersão dos serviços no estado, assim como outros aspectos organizativos, econômicos e culturais, condicionam taxas de doação ainda distantes do ideal recomendado pela OMS. Na Espanha, em que a maioria dos territórios regionais conta com taxas de doação que garantem a autossuficiência, os entrevistados referiram outros problemas atuais emergentes, tais como: a mudança do perfil da população (E1, E2), caracterizada pelo envelhecimento que desabilita doadores; a migração e a globalização, que interferem no perfil epidemiológico e nas necessidades por serviços de saúde (E7, E8); e a determinação de critérios restritivos temporários para a doação por conta de doenças emergentes (E6, E8).
Em geral, os desafios referem-se às situações ou às circunstâncias que demandam intervenção, no entanto, exigem competências e/ou recursos que nem sempre estão disponíveis. Nas entrevistas foram identificados os seguintes desafios em ordem decrescente de citação: envolver e fidelizar novos doadores, sobretudo jovens; manter estoque suficiente de sangue de tipos raros e dispor de hemoderivados; lidar com patologias emergentes decorrentes do processo de migração e globalização; assegurar o uso racional do sangue; gerir os serviços com restrição sobre os recursos financeiros; e lidar com distintos atores, inclusive, nas relações público-privada.
O desafio de envolver e fidelizar novos doadores, sobretudo jovens, foi revelado na Espanha a partir da contextualização feita pelos entrevistados sobre as mudanças demográficas e onde a população de doadores fidelizados é cada vez mais envelhecida. O desafio consiste em envolver os doadores de menos de 40 anos. As taxas de doação dos doadores mais jovens (18-30 anos) vinham diminuindo até 2012, mas desde então voltaram a subir, o que faz com que o desafio seja, em particular, o coletivo de potenciais doadores entre 30 e 40 anos, que são os que menos doam e que têm menor fidelidade em suas doações. Captar doadores mais jovens e promover a doação repetida supõe ademais, segundo os entrevistados, uma “aposta de futuro, porque a gente entre 30 e 40 anos terá muitos anos para doar” (E2).
Sobre o desafio de manter estoque suficiente de sangue de tipos raros e dispor de hemoderivados, foi revelado nos seguintes relatos: “conseguir ter um hemocomponente em tempo hábil” (B3); manter “estoques de sangue dos tipos raros” (E1); “utilizar estratégias diferentes para atender à necessidade, por exemplo, do tipo O negativo” (E8) e, também, o desafio de “dar conta de toda rede grande de serviços” de saúde (B1), como na realidade da Bahia.
Um desafio particular do momento atual tem relação, segundo vários entrevistados, com patologias emergentes decorrentes do processo de migração e globalização. Relatos apontaram inaptidão temporária gerada pelas doenças de comportamento sazonal e pelas doenças e vírus que, por efeito da globalização, apresentam-se como ameaças à segurança do sangue, por exemplo, o Zikavírus, o vírus Chikungunya ou o vírus do Nilo Ocidental.
Quanto a assegurar o uso racional de sangue e hemocomponentes, foi apontado como um desafio, especialmente, tendo em vista que é “um produto que não pode ser comprado” (B3). O necessário fomento por “transfundir menos” constitui um dos objetivos da Comissão de “Ahorro” (economia/uso racional) (E3) em Madri, e também a revisão de processos de trabalho quanto à qualidade das técnicas, de modo a evitar perdas (E5).
Sobre gerir os serviços com restrição sobre os recursos financeiros, tal desafio pode ser evidenciado sob diversas formas. Na realidade brasileira, foram citados exemplos que ajudam a explicar os limites dos recursos e as dificuldades que esses impõem: “procedimentos realizados com transfusão hoje são R$ 8,00, não paga a equipe que você vai usar na transfusão” (B1). Na Espanha, ao contrário do que apontou um dos entrevistados da Catalunha, a limitação da gestão financeira foi referida para a realidade de Extremadura. Na trama dessa restrição do recurso, destaca-se a sujeição aos ditames da indústria farmacêutica, apontada por uma das entrevistadas da Espanha (E1).
Um último desafio referido foi o de lidar com atores de distintos espaços e instâncias, inclusive, públicas e privadas. Nesse sentido, cabe destaque, dentre tais atores: os entes/gestores públicos e profissionais dos serviços; o serviço complementar privado (B1), na Bahia; a “Cruz Roja”/Cruz Vermelha, na CCAA de Madri (E4); a indústria farmacêutica para fornecimento de hemoderivados e investimento em pesquisas (E1, E8); associações (comuns às realidades) ou “hermandades de donantes de sangre” (CCAA de Extremadura e Catalunha), dentre outros.
Os gestores dos centros e dos serviços de doação de sangue enfrentam as dificuldades e os desafios expostos, adaptando suas estratégias às novas situações. No conjunto das linhas estratégicas de futuro citadas, tiveram destaque as seguintes: o uso de diversos recursos para sensibilização e fidelização de doadores; a concentração tecnológica e de procedimentos nos centros coordenadores; a implantação de programas públicos de plasmaférese; e a utilização de diferentes meios para estabelecer as relações com os distintos atores.
Os serviços de hemoterapia aplicam uma diversidade de meios e recursos para fomentar a doação de sangue. Destacaram-se, especialmente: atitudes de reconhecimento e oferta de lanche; envio dos resultados de exames laboratoriais realizados na coleta para doação; uso de meios de comunicação de massa e meios informatizados para profissionais e público em geral (ex.: “Hemoliga”, aplicativo para celular ou tablet que informa aos usuários a próxima doação e a necessidade conforme o estoque, e “informativo mensal do Hemoba”, na Bahia; telas das estações de metrô e chamadas/notas em programa de TV, em Madri; página web em Madri e na Catalunha). Também foi citado o uso de “base de dados de doadores”, em especial, para os tipos raros.
Para a chamada de jovens, as redes sociais têm sido uma aposta, com o uso do Twitter em Madri e de outros aplicativos/meios nas demais realidades regionais. Determinadas estratégias envolvem outros atores, por exemplo, nos casos de Extremadura e da Catalunha foram citadas a articulação com as “Hermandades de Donantes” (entidade sem fins lucrativos, voltada para promoção da doação de sangue). A realização de ações em contextos educativos também foi assinalada. Em Madri e em Extremadura, foi feita referência aos programas de “aprendizagem-serviço” em colégios e institutos, assim como o recebimento de visitas de grupos de escolares nos serviços de hemoterapia. As parcerias com universidades, empresas ou, no caso da Bahia, igrejas, também foram citadas.
A concentração tecnológica e realização de testes no Hemocentro e Centros de Transfusão constitui-se estratégia utilizada nas realidades regionais estudadas para otimização dos recursos, argumentada pelo princípio da economia de escala. Ademais na realidade de Madri, foi reforçada a importância da concentração tecnológica de produção de terapias (E1). Na Catalunha, além da prova de sorologia para a Hepatite C, também é feito o PCR (reação em cadeia da polimerase), por recomendações da Comissão de Hemoterapia. A utilização de um protocolo geral para o uso racional do sangue, especialmente nos hospitais, constitui-se uma estratégia para administrar de forma eficiente os recursos sanitários escassos e estabelecer prioridades na tomada de decisões.
No caso da Espanha, os gestores dos serviços de hemoterapia estão começando a desenvolver estratégias para melhorar a disponibilidade em hemoderivados. A implantação de programa de plasmaférese (coleta de plasma em que se utiliza o método de aférese para obtenção da matéria-prima de hemoderivados) foi revelada como estratégia de futuro para a região de Madri; e, no caso da Catalunha, essa estratégia já está sendo implementada (E7, E8).
A fim de estabelecer a articulação com os diversos atores, em especial para as relações público-privada, estratégias diferentes têm sido utilizadas nas realidades regionais. Na Bahia, os contratos e os convênios com serviços de hemoterapia privados são firmados para atendimento complementar à demanda de sangue e hemocomponentes pelos serviços de saúde. Em Madri, desde 2013, um convênio também formaliza a relação entre a “Cruz Roja” e a “Consejería de Sanidad” (órgão/departamento regional, por CCAA, da área de saúde), atribuindo à primeira a responsabilidade e coleta em unidades móveis nas diversas localidades da CCAA. A oferta de atividades formativas para qualificação de profissionais de serviços privados tem sido uma estratégia utilizada. Em geral, os entrevistados dão conta de uma maior abertura à participação de atores privados.
Quanto à articulação com os gestores públicos, os encontros e as reuniões, bem como a manutenção dos contatos/comunicação no cotidiano dos serviços, também foram estratégias citadas para todas as realidades estudadas. Na Bahia, as relações com os entes públicos e demais atores são mantidas através de encontros e de reuniões realizadas estrategicamente, por exemplo, com a gestão estadual da saúde, a Diretoria de Assistência Farmacêutica, os gestores locais/municipais e a associação baiana de pessoas com Doença Falciforme, como importantes para assegurar a oferta contínua de medicamentos (B2) e a garantia do direito dos pacientes (B1). A criação de comissões locais a partir dos Comitês transfusionais foi citada como estratégia utilizada para promover o uso racional do sangue em hospitais de Madri e manter o contato próximo e acessível aos profissionais da área. As relações com associações, organizações e outros atores da sociedade civil (como as “Hermandades de Donantes de Sangre” nos contextos rurais de Extremadura e as “Associaciones de Donantes” em Catalunha) também mostram grande importância.
A estrutura do sistema com recursos e tecnologias disponíveis, bem como a disposição da população para o ato de doação de sangue e de fidelização, foram reafirmadas por este estudo como esteios para a autossuficiência e, portanto, para a sustentação do sistema de saúde que, de modo crescente, demanda por sangue, hemocomponentes e hemoderivados, dadas as variantes do contexto sociodemográfico e do contexto epidemiológico que caracterizam as realidades, não somente brasileira e espanhola.
Assim, linhas estratégicas diferentes têm sido utilizadas para enfrentar as dificuldades e os desafios que os entrevistados apontaram, tanto para o chamamento e a sensibilização da população, sobretudo jovens, como para a organização dos serviços com registro de doadores e seus respectivos tipos sanguíneos, concentração de testes laboratoriais de qualificação do sangue de doadores (sorológicos, imuno-hematológicos), procedimentos de coleta e processamento de hemocomponentes e articulação com múltiplos atores de diferentes instâncias e espaços.
Como resumo, a Figura 2 mostra os elementos identificados a partir deste estudo e que caracterizam o cotidiano da gestão das ações de saúde na área do sangue, salvaguardadas as diferenças entre as realidades regionais estudadas.
Variados fatores ajudam a explicar as dificuldades identificadas neste estudo. Desde aqueles inerentes à disposição de meios, recursos, estrutura e logística, até aqueles relacionados ao contexto de mudança do perfil sociodemográfico, com o envelhecimento da população, globalização e migração que influenciam na variação dos índices de recrutamento e de fidelização dos doadores. Sobre a dificuldade de recrutamento, adesão e fidelização, é possível utilizar a referência aos fatores extrínsecos aos doadores para explicar, em parte, tal dificuldade. Nesse sentido, cabe a tese de que o “sistema de aquisições”15 constituído pela disponibilidade logística, estrutura e organização dos serviços, bem como sua distribuição territorial de modo a aproximar tais serviços da população, podem se constituir em importante condição que influencia nos dados de doação, a depender dos contextos regionais; além disso, o “processo informacional e a confiança em relação ao sistema” podem influenciar na fidelização de doadores16,17. Por outro lado, os fatores intrínsecos (dos potenciais doadores) como as variáveis socioculturais complementam a explicação sobre tal dificuldade16,18-20.
No escopo dos limites orçamentários para as ações de saúde na área de sangue, esse foi apontado como um grande desafio, cabendo destacar, em aspectos gerais, que nos últimos anos países como Brasil e Espanha, que adotaram o modelo de sistema de saúde universal, têm sofrido redução de investimentos sociais, justificado, em parte, pela crise econômica. A capacidade financeira somada aos aspectos geográficos, dentre outros, têm influência direta sobre as dificuldades e os desafios para a operacionalização das ações de saúde, inclusive, constituindo-se como importante barreira para o acesso a medicamentos e para a adesão ao tratamento21, por exemplo, de doenças hematológicas. Portanto, diante dos limites de recursos financeiros e para sua otimização, a concentração tecnológica e de procedimentos de testes nos serviços de hemoterapia/centros coordenadores tem sido adotada nas realidades regionais. Baseado na “economia de escala”, os serviços que devem ser concentrados “são aqueles para os quais os recursos são mais escassos, sejam humanos e/ou físicos, e em relação aos quais a distância tem menor impacto sobre o acesso”22; e, ao contrário, os “recursos menos escassos devem ser desconcentrados”23. Assim, propostas de regionalização e concentração de certos serviços têm sido implantadas em alguns países. A proposta de configuração das redes de atenção à saúde23 e redes temáticas24 com desenhos institucionais que combinam elementos de concentração e de dispersão têm ganhado os espaços de discussão.
Outra linha estratégica que, ao mesmo tempo, se revela como desafio para os gestores do sistema e dos serviços de hemoterapia é a relação com diversos atores, inclusive na relação público-privada, justificada pela necessidade de responder às dificuldades aqui apresentadas. A aliança público-privada subordinada às necessidades do sistema de saúde25 constitui-se um dos desafios para a consolidação dos sistemas universais de saúde, ao mesmo tempo em que tem sido utilizada estrategicamente para suprir as restrições, por exemplo, de oferta de serviços e de procedimentos na rede pública. Ademais, a relação entre empresas e atores privados, com organizações e atores da sociedade civil, parece hoje crucial para o fomento à doação.
Ainda que os resultados deste estudo tenham apresentado realidades territoriais/regionais de dois países, de contexto latino e europeu respectivamente, as dificuldades e os desafios não parecem ser específicos a esses, de modo que as reflexões aqui apresentadas podem inspirar novas ações e práticas para a implantação e operacionalização de ações na área de sangue nos diversos países do mundo.