versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.5 Rio de Janeiro 2019 Epub 20-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00073619
Ao publicar um Espaço Temático sobre o desastre da Vale, em Brumadinho, Minas Gerais, Brasil, os Cadernos de Saúde Pública cumprem um relevante papel, convidando à reflexão acadêmica o mais grave desastre socioambiental do país e um dos maiores do mundo. Por meio de três artigos, os leitores da revista têm a oportunidade de examinar o conhecimento atual possível sobre razões e efeitos do ocorrido. Em contribuições bem tecidas e com base em evidências disponíveis pouco após a ocorrência do desastre, Milanez et al. 1 desvendam a dinâmica da captura do Estado pelo setor extrativista e seus tentáculos na política ambiental; Freitas et al. 2 colocam em cena a saúde coletiva e a organização dos serviços para examinar as conexões entre os desastres da Samarco e da Vale; e Noal et al. 3 trazem o relevante tema dos impactos do desastre na saúde mental de um grande número de atingidos e da atenção psicossocial mobilizada na fase inicial da resposta.
De início, deve ser enfatizado que a ocorrência da tragédia de Brumadinho é inaceitável e injustificável, levando, não sem razão, a sentimentos de consternação, indignação e revolta pelos atingidos, ou seja, por todos nós que ainda mantemos um mínimo de noção civilizatória. Porém, talvez o sentimento mais preocupante seja o de impotência: como pode ter acontecido o rompimento de Feijão, após o rompimento de Fundão, em Mariana, Minas Gerais, há pouco mais de três anos? E amplificando a ordem de grandeza dos óbitos, da casa das dezenas para a das centenas, e de atingidos, a depender de como são definidos.
“Nem Deus nem Newton devem ser culpados” 4, ou seja, os desastres na mineração têm responsáveis individuais e institucionais: pessoas, empresas e entidades governamentais. Agentes que provocam crimes e que violam grande número de direitos humanos de um enorme contingente populacional.
Em uma situação de perplexidade como a que o desastre da Vale provoca, a primeira e óbvia pergunta que ocorre é: Como foi possível Feijão depois de ter ocorrido Fundão? Dela derivam várias outras perguntas, talvez óbvias, mas que precisam ser sempre repetidas, pois apontam para lições parcialmente respondidas - e não convertidas em políticas públicas - ou mesmo para outras não respondidas. Algumas delas seriam:
Não é necessário ser especialista em engenharia geotécnica para perceber que a técnica de barragens com alteamento a montante para a disposição de rejeitos, na qual o barramento é parcialmente apoiado no rejeito não consolidado disposto no reservatório, é nitidamente menos segura, embora mais econômica, que as demais técnicas. O risco adicional tem sido abundantemente observado no meio técnico 5 e já tinha sido explicitamente advertido por antiga norma brasileira (“não se recomenda o alteamento de barragem pelo método a montante”) 6.
A discussão mais contemporânea é quanto ao uso ou não de barragem de rejeitos: “O novo modelo tecnológico de barragem (sic) mais seguro prevê a deposição dos rejeitos, depois de seco, compactados em pilhas, acabando com as barragens de lamas. O custo é maior para as mineradoras. Mas, certamente, centenas de vezes inferior ao se comparar com os ressarcimentos de bilhões de reais definidos para Mariana e previstos para Brumadinho” 7. A existência de diferentes alternativas para a disposição de rejeitos é reconhecida pela literatura técnica e disseminada pelo próprio Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), que em 2016 já advertia que: “embora seja o mais utilizado pela maioria das mineradoras, o método de montante apresenta um baixo controle construtivo, tornando-se crítico principalmente em relação à segurança” (Araújo, 2006, apud Instituto Brasileiro de Mineração 8, p. 19).
Fica a óbvia pergunta: qual é a racionalidade das empresas em adotarem um método de disposição de rejeitos claramente de alto risco e que pode levar a perdas econômicas com seu colapso? Mesmo a racionalidade mais rudimentar de otimização de lucros pouco explica a cegueira com as perdas econômicas advindas das inúmeras pressões para indenizações e remediações, sem se mencionar as perdas oriundas da dilapidação da imagem junto ao mundo empresarial.
Como desdobramento desse claro paradoxo, importantes avanços felizmente ocorreram após o rompimento de Feijão, em Brumadinho. A Agência Nacional de Mineração publicou resolução proibindo “a utilização do método de construção ou alteamento de barragens de mineração denominado ‘a montante’ em todo o território nacional” 9, e a mesma determinação consta de lei estadual sancionada em Minas Gerais, a Lei nº 23.291/2019, conforme exposto por Milanez et al. 1.
A Resolução n o 143/201210 estabelece critérios para a classificação de barragens segundo as variáveis categoria de riscos e dano potencial. Para ambas as classificações, os critérios são baseados em um sistema de pontuação, com o somatório de atributos da barragem, ao qual são conferidos valores, tais como sua altura e comprimento, existência de Plano de Segurança e seu estado de conservação. O somatório enquadra a barragem na categoria alto, médio ou baixo risco ou dano.
Ambas as barragens, Fundão em Mariana e Feijão em Brumadinho, eram classificadas com a mais baixa categoria de risco. Esses dois casos, por si só, são suficientes para demonstrar a absoluta inadequação dos critérios. De fato, um critério tecnocrático, que associa de forma quantitativa diferentes características das barragens não consegue verdadeiramente captar os riscos de rompimento, pois desconsidera que em alguns casos um dos fatores, que pode ser tão preponderante e suficiente para condenar a estrutura, se dilui com outros menos significativos.
Se essa metodologia não foi alterada depois da tragédia da Samarco, portanto, não conseguindo chamar a atenção para o risco das barragens existentes, como a de Brumadinho, espera-se que haja uma urgente revisão desses procedimentos, o que foi enfatizado por relatores de direitos humanos das Nações Unidas: “Conclamamos o governo brasileiro a priorizar as avaliações de segurança das barragens existentes e a retificar os processos atuais de licenciamento e inspeção de segurança para evitar a recorrência desse trágico incidente. Além disso, conclamamos o governo a não autorizar nenhuma nova barragem de rejeitos nem permitir qualquer atividade que possa afetar a integridade das barragens existentes, até que a segurança esteja garantida” 11.
Nesse aspecto, é muito simbólica a votação para a autorização do descomissionamento da barragem B1 da mina Córrego do Feijão, pelo Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM), em 11 de dezembro de 2018. A autorização foi aprovada por oito votos favoráveis (Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Ensino Superior - SEDECTES, Conselho Regional de Engenharia e Agronomia - CREA, Sindicato das Indústrias Extrativistas de Minas Gerais - SINDIEXTRA, IBRAM, Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais - CODEMIG, Secretaria de Estado de Casa Civil e de Relações Institucionais - SECCRI, Federação das Associações Comerciais e Empresariais do Estado de Minas Gerais - FEDERAMINAS e Secretaria de Estado de Governo - SeGov, ou seja, órgãos do governo do estado, entidades empresariais e o conselho de engenharia), duas abstenções (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA e Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET) e um voto contrário (FONASC, o Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas). Em sua declaração de voto, a representante do FONASC afirmou que “é muito violento continuar testemunhando essa situação de irresponsabilidade, de insanidade em decisões ambientais” e que “está tudo errado e é extremamente grave o que aconteceu aqui nessa votação desse projeto” 12.
Esse tipo de fragilidade no processo de licenciamento ambiental, o controle dos órgãos decisores pelas empresas interessadas e a captura do estado por esses interesses têm sido objeto de muitas constatações e denúncias, conforme o próprio artigo de Milanez et al. 1 e outro trabalho acadêmico 13.
Outro ângulo de análise que merece destaque é a falta de accountability dos membros dos colegiados, tanto do ponto de vista da noção de representação e legitimidade quanto da responsabilização pela tomada da decisão.
A banalização do processo de automonitoramento das empresas, particularmente as minerárias, é outra face dos processos de licenciamento sem independência e autonomia. Adotados sob um questionável argumento da transferência de custos para o potencial causador da poluição, o automonitoramento sem auditoria por parte do estado parte de um pressuposto de que todos os agentes no processo têm genuína e exclusiva intenção de zelar pela qualidade ambiental e pela saúde humana. Evidentemente, tal não é o caso em um ambiente econômico competitivo e a partir da busca pela maximização de lucros, própria desses setores empresariais.
Um estudo sobre o monitoramento da qualidade da água na bacia do Rio Itabirito revelou fragilidades nesse processo, sobretudo na ação do órgão ambiental e na credibilidade dos resultados. A estrutura subdimensionada e com perda de qualificação dos órgãos estaduais também vem impedindo uma adequada avaliação dos relatórios 14.
O mesmo princípio, mas ainda mais grave, refere-se ao automonitoramento da segurança das estruturas. Na investigação pelo Ministério Público de Minas Gerais sobre o colapso da barragem da Vale em Brumadinho, foram encontrados e-mails entre técnicos da empresa e da consultoria alemã responsável pela emissão de laudos de estabilidade da barragem, “em que funcionários da TÜV SÜD mencionam expressamente uma espécie de chantagem da Vale para que se comprovasse a segurança da represa de rejeitos, apesar do que os números aferidos pela vistoria apontavam” 15.
Portanto, além de uma situação de fragilização da fiscalização e controle, atividades típicas de Estado, e transferência da função de monitoramento para os próprios interessados, há um ambiente institucional que possibilita às empresas fraudarem ou induzirem a fraudes laudos sobre riscos de barragem.
As negociações em torno da reparação dos danos do desastre da Samarco, incluindo indenizações e multas, envolveram um sem número de atores e de etapas, resultando em um desfecho duvidoso. Tem sido amplamente apontada “a tática de utilizar o tempo para apagar os rastros da tragédia” 16 (p. 81).
Já a solução institucional adotada para lidar com a remediação - a criação da Fundação Renova - contrariou a proposta inicial de criação de uma fundação pública de direito privado, que assegurasse sua gestão pública sem perder a necessária agilidade para receber recursos financeiros e efetuar despesas. A solução finalmente adotada levou a que os recursos ficassem “sob total controle da empresa” 17 e com “deplorável falta de transparência e de participação das vítimas no processo de negociação” 18. Além disso, conferiu à empresa autonomia na celebração de acordos extrajudiciais e na definição de quem é ou não “atingido”, conforme apontado por Milanez et al. 1.
Portanto, a obsessão pela minimização de custos prossegue após a ocorrência dos desastres, frequentemente com o beneplácito do aparelho de Estado.
Obviamente, são perguntas sem respostas, pelo absurdo das situações. Do ponto de vista criminal, entende-se que há uma clara responsabilização: “quando você faz algo sabendo que aquilo pode produzir um risco é um dolo eventual e tem a mesma gravidade de você atropelar ao dirigir bêbado” (depoimento de Flávio Batista, Universidade de São Paulo) 19. Entretanto, o julgamento e a condenação dos culpados seguem o ritmo moroso.
Desastres da magnitude dos que ocorreram resultam em efeitos complexos, de difícil identificação e mensuração, e que se alteram no tempo. Freitas et al. 2 e Noal et al. 3 apontam adequadamente o conjunto de efeitos potenciais, seja na saúde mental dos mais diretamente atingidos, seja no que decorre da mobilização dos rejeitos pós-rompimento das barragens, afetando água, solo, ar e ecossistemas, incluindo ciclo de vetores, hospedeiros e reservatórios. Mas, se nós, pesquisadores, temos noções dos riscos potenciais, parece que ainda não temos respostas adequadas sobre como estes vêm ameaçando a realidade e nem dispomos de meios para comunicar estes riscos às populações e movimentos sociais.
Um tema emblemático nesse sentido é o resultado da deterioração da qualidade da água sobre a saúde de pessoas que vivem próximas aos cursos de água, e daquelas que têm seu abastecimento coletivo dependente das águas dos rios comprometidos. O monitoramento das águas do Rio Doce, por exemplo, ainda mostra concentrações muito elevadas de diversas substâncias perigosas, três anos após a ocorrência do desastre da Samarco, envolvendo não apenas sólidos, mas vários metais 20. Efeitos crônicos da exposição a valores muito elevados de substâncias químicas nocivas à saúde são pouco conhecidos, sendo que os valores limites de substâncias na água são estabelecidos com base em consumos durante o ciclo da vida humana. A comunidade científica ainda está por oferecer melhores respostas à comunidade atingida a esse respeito.
A predição sobre os efeitos da tragédia de Brumadinho obviamente pode se beneficiar dos estudos já desenvolvidos no Rio Doce, mas deve levar em conta suas especificidades, como a diferente mobilidade dos rejeitos, a diferente capacidade de diluição do Paraopeba, o efeito da represa de Três Marias na atenuação da poluição e as incertezas do impacto no Rio São Francisco.
À guisa de conclusão, se este texto levanta um conjunto de perguntas que ainda pairam no ar, relativas ao contexto da mineração brasileira e às consequências dos desastres mais recentes, pode-se afirmar que há algo de muito grave neste campo e que deve ser traduzido em uma agenda para a saúde coletiva comprometida com a saúde e o bem-estar da população ameaçada pela operação da mineração no Brasil.