versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.3 Rio de Janeiro mar. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015213.21392015
No Brasil, a história das secas é marcada por seguidas tragédias sociais, sanitárias e de saúde. A seca de 1877-1879 foi um marco, com estimativa de 500 mil mortos (houve conjuntamente uma epidemia de varíola) e 3 milhões de pessoas deslocadas (retirantes). Na seca de 1914-1915, a estimativa foi de 100 mil mortos1. Foi entre estes dois episódios que Arthur Neiva e Belisário Penna2, do Instituto Oswaldo Cruz, realizaram, em 1912 (com o relatório concluído em 1915, ano de grave seca, e publicado em 1916), uma viagem científica nas zonas flageladas, por requisição da Inspetoria de Obras Contra a Seca, criada em 1909, identificando um conjunto de doenças que relacionavam as precárias condições de vida e saúde nos sertões, combinada com a falta de atenção à saúde. Utilizando os termos adotados no relatório, aparece um conjunto de doenças relacionadas à seca e às condições de vida no sertão, como por exemplo, disfajia espasmódica, vexame do coração, malária (decorrente da construção de grandes açudes), tuberculose, difteria, disenteria, enfermidades de olhos (principalmente nas crianças até 12 anos) e tifo, entre outras2.
Das secas ocorridas desde o final do século XIX e ao longo do século XX, há registros de vários surtos e epidemias de doenças como: cegueira diurna (hemeralopia), tracoma, cólera, diarreia, disenteria, tifo, paratifo, febre amarela, varíola, peste bubônica, leishmaniose e gripe. Os que migraram para a região amazônica, forçados ou fugindo da seca, adoeceram de lepra, tuberculose, malária e beribéri. Foram registrados também, suicídios de chefes de famílias em diversas secas por não suportarem a situação. Por fim, pragas de cobras cascavel e ratos, contribuíram para envenenamentos e outras doenças1,3. Além das doenças e óbitos diretamente relacionados à seca nas regiões onde ocorreram há também os efeitos indiretos, como lepra, tuberculose, malária e beribéri que afetaram muitos dos que migraram para a região amazônica forçados ou fugindo do desastre. Estima que 3 milhões de pessoas morreram entre as secas de 1825 e 1983 ocorridas no Brasil1.
Apesar do Brasil historicamente vivenciar desastres relacionados à seca, os quais ocorrem com maior frequência e de forma crônica, não encontramos, desde o relato de Neiva e Penna (1916) publicações sobre a relação entre este tipo de evento/situação e a saúde coletiva4. Diante deste quadro, o objetivo deste trabalho é apresentar uma revisão da literatura científica publicada em artigos sobre a relação seca e saúde coletiva. Esta revisão é considerada oportuna, uma vez que a seca como desastre natural deve ser considerada uma preocupação atual tanto no âmbito científico quanto no social, devido aos impactos negativos nas condições de vida e saúde das populações.
A seca, de maneira geral, corresponde à falência no regime de precipitação causando perturbação no abastecimento do ecossistema agrícola e natural, bem como em outras atividades humanas5-7. Segundo a literatura8-10, os conceitos e as noções sobre a seca são complexos e podem ser definidos por diferentes formas: meteorológica (baixo índice pluviométrico); agrícola (seca a curto prazo no solo durante os períodos de crescimento das plantações); hidrológica (redução no fluxo de corrente, lagos, rios e níveis de barragens); socioeconômica (efeitos nas condições de vida, bens econômicos e bem-estar humano); e ambiental (incêndios, degradações de terras e tempestades de areia).
A seca atua sobre os sistemas ecológicos, econômico, social e cultural9,11, causando danos e prejuízos significativos às condições de vida das populações expostas. Os principais impactos são: deficiência no fornecimento de água para a população; prejuízos na agricultura e pecuária; migrações populacionais; incêndios florestais; degradação da qualidade da água; problemas de saúde; conflitos e alimentação da pobreza10,12. Por se apresentar de início lento, podendo prolongar-se por meses e anos, e somada aos seus múltiplos impactos, a seca é considerada um desastre natural diferenciado, exigindo ações que levem em consideração a equidade em todas as suas dimensões e ações.
Os impactos dos desastres dependem da vulnerabilidade socioambiental, sendo relacionada com as características e a magnitude do tipo de evento e os fatores da estrutura social da sociedade6,12,13. No caso de desastre por seca, a magnitude de seus impactos se relaciona com a duração do evento e as condições socioeconômicas das regiões e populações afetadas6,13.
A seca atinge diversos países e regiões do mundo, principalmente países e continentes como Canadá, Estados Unidos, Europa Ocidental, África, China, Ásia, Austrália e Brasil14. Vale destacar que o Brasil carece de uma produção técnica-científica que responda aos desafios que a mesma provoca para a saúde coletiva4.
Dados recentes do International Emergency Disasters Database (EM-DAT)15, banco de dados de desastres em todo o mundo mantido pelo Centro de Investigação sobre a Epidemiologia dos Desastres (CRED) fornece uma indicação dos graves efeitos da seca em diversos países, no período de 1900 a 2015. O EM-DAT estima que 659 eventos de seca ocorreram neste período, resultando em torno de 2,21 bilhões de pessoas afetadas e 11 milhões de mortes no mundo. Em relação às perdas econômicas por episódios de seca neste período, nos Estados Unidos e México, as perdas foram em torno de 8 bilhões de dólares, na China foram de 2,4 bilhões de dólares e no Brasil aproximadamente 11 bilhões de dólares10,15.
Projeções futuras de mudanças climáticas indicam que os episódios de seca se tornarão mais intensos e frequentes durante o século 2116. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU)17, a previsão é de que até 2030, quase metade da população mundial viverá em áreas com escassez de água, causando efeitos e consequências severas para a saúde pública.
A pesquisa sobre seca e saúde na literatura foi realizada nas seguintes bases de dados: PubMed (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed); Portal Preparação e Resposta a Desastres da BVS (http://response.bvsalud.org/) e Portal de Periódicos Capes (http://www-periodicos-capes-gov-br.ez68.periodicos.capes.gov.br/index.php?option=com_phome), sendo que nesta última as bases utilizadas dentro da mesma foram Scopus e Web of Science.
Foi iniciada em março de 2014 e foi concluída em junho de 2015. Para a pesquisa utilizamos a combinação dos descritores [drought and health] no título e resumo no PubMed, e somente título para o Portal Preparação e Respostas a Desastres da BVS e Portal Capes. Os critérios de inclusão foram: (1) somente artigos; (2) idioma português, inglês e espanhol; (3) ter relação direta com os temas em saúde.
Foram excluídos: (1) artigos que não relacionavam seca diretamente com saúde, tais como biologia; engenharia; hidrologia, botânica e meteorologia; (2) idiomas diferentes dos estabelecidos.
No total foram considerados 586 artigos das diferentes bases de dados, sendo estes: 402 (PubMed); 16 (Portal Preparação e Respostas a Desastres) e 168 (Portal Capes). Destes, 456 artigos foram excluídos através dos critérios citados acima, obtendo-se um total de 130.
Em um segundo momento, dos 130 artigos, foi verificado que 72 eram repetidos nas bases de dados e 6 se encontravam indisponíveis, obtendo-se assim o total de 52 incluídos na revisão (Figura 1), sendo o primeiro publicado em setembro de 1931 e o último em junho de 2015.
Após a leitura dos resumos e primeira categorização temática foi realizada a leitura completa e readequação. Neste segundo momento foi possível categorizar a partir de doenças que se relacionavam com episódios de seca, com os fatores de risco para doenças, além de grupos e serviços vulneráveis diante da seca, conforme apresentado no Quadro 1. Em termos de doenças foram identificados desnutrição e deficiências nutricionais; saúde mental; doenças relacionadas ao saneamento inadequado e transmitidas por vetores e hospedeiros; doenças respiratórias; câncer. Além destes efeitos foram identificados também temas relacionados à vulnerabilidade dos serviços de saúde com impactos na qualidade e no acesso.
Quadro 1 Comprometimento de serviços, produtos e qualidade ambiental relacionados com os efeitos da seca na saúde humana.
Fonte: Próprios autores.
A morbidade relacionada ao estado nutricional das populações expostas a este tipo de desastre natural foi a que apresentou maior número de publicações, 2410,18-40. Deste total, 11 abordaram o estado nutricional de populações como um todo10,25-30,34,35,37,38. Em relação aos grupos vulneráveis foram identificados três, sendo estes: gestantes20,32,33,36, crianças de 0-5 anos20,23,24,30,32,36,39,40 e populações vivendo em abrigos e acampamentos temporários26,27,30.
No que se refere às deficiências nutricionais18,30,32,34,37,38, foram identificadas especificamente as relacionadas à vitamina A19,27,30, complexo B (riboflavina e ácido nicotínico)21,31 e energética crônica22,30.
Os efeitos na saúde mental e emocional estiveram presentes em 20 artigos10,16,18,34,35,37,40-53. Agricultores/fazendeiros idosos de zonas rurais foram os grupos mais estudados16,40,42,45-47,50-53, sendo a ansiedade em relação ao futuro e os episódios de suicídio os temas que surgiram. Um menor grupo de artigos envolveu adolescentes, mulheres e aborígenes. Em relação aos adolescentes, foi identificado o isolamento social e econômico devido ao medo da situação financeira dos pais e do seu futuro, já que em episódios de seca prolongada, acabam tendo de deixar a escola ou faculdade para ajudar aos pais na busca por renda48,49. Para as mulheres, um artigo41 identificou que estas sentem mais ansiedade do que os homens nos períodos de seca, devido ao aumento de sua responsabilidade para suprir as necessidades básicas da família, como água e alimentos, principalmente quando o marido tem que sair da sua comunidade em busca de outro tipo de emprego que lhe garanta renda. Por fim, abordou-se o os efeitos da seca prolongada no bem-estar emocional de comunidades aborígenes de New South Wales, um dos estados mais populoso da Austrália43.
Dezessete artigos abordaram doenças transmitidas por vetores10,26,27,29,30,32,33,35,37,54-61, pois durante períodos de seca ocorre armazenamento e estagnação de águas, proporcionando locais de reprodução ideal para mosquitos32,33,58,61, sendo exemplos estudos envolvendo o Aedes aegypti que transmite dengue e outras doenças29,37 e o Anopheles, transmissor da malária26,27,30,60. Ao mesmo tempo tem sido identificado que a falta de água de superfície afeta o comportamento dos mosquitos, forçando-os a se reproduzirem em locais como pântanos, local que serve de habitat para muitas espécies de aves e outros tipos de vida selvagem. Esta convergência de mosquitos (vetores de doenças) e de aves que servem como hospedeiros durante os eventos de seca tem sido associada a surtos de determinadas doenças, incluindo a encefalite de St. Louis61, encefalite equina do leste e vírus do Nilo Ocidental37,55,56,59,61. Por fim, um artigo26 teve como foco a principal seca no Brasil, no período de 1877-1879 ocorrida no Ceará, em que milhares de pessoas morreram e outras migraram para as grandes capitais levando consigo a leishmaniose cutânea (ou leishmaniose tegumentar).
Em relação às doenças relacionadas ao saneamento foram identificadas 17 publicações10,18,26-33,35,37,38,40,46,62,63, abordando tanto a restrição do abastecimento de água, como as diversas formas de armazenamento (poços, açudes, carros pipas, água potável, rios, caixas de água). De acordo com estes artigos, a falta de condições de higiene adequada e da qualidade da água para consumo humano, assim como o saneamento inadequado18,62, resulta em doenças de transmissão feco-oral (cólera26,30,37, disenteria26,30,31, febre tifoide28,29,31,33, diarreias18,26,27,29,31-33,35,37,40,46,62 e hepatite A33), relacionadas à higiene (conjuntivite32 e doenças da pele32) e outras transmitidas através do contato com a água, como leptospirose46.
Outro efeito associado à seca se refere às doenças respiratórias, com 8 publicações10,27,30,35,37,46,55,64. Smith et al.64 têm como local de estudo a Região da Amazônia no Brasil, demonstrando que os incêndios causados pelas secas resultam no aumento de doenças respiratórias em crianças.
Somente em um artigo65 analisou o câncer relacionado aos problemas da seca. Este artigo associa o câncer de esôfago aos locais com episódios de seca na China, afirmando que os fatores climáticos, assim como os genéticos e biológicos, devem ser considerados tanto por influenciar na vida quanto na saúde e, por isso, considera importante estudar a relação entre clima e saúde.
Dezessete publicações identificaram grupos vulneráveis aos efeitos da seca na saúde16,20,23,24,39,40,42,44,45,47-53,66. Os grupos foram idosos agricultores16,40,42,44,45,49-53,67, adolescentes48,49, gestantes20, e crianças menores de 5 anos20,23,24,39, sendo os efeitos mais destacados os relacionados à saúde mental, desnutrição e deficiências nutricionais. Além destes grupos e efeitos, um artigo específico abordou o tema das mulheres na menopausa que viviam na zona rural. Devido à pressão financeira em situações de seca, essas mulheres apresentavam dificuldades de acesso aos serviços de saúde para obter terapia de reposição hormonal66. Esta situação também era agravada pela ausência de apoio emocional, contribuindo para sentimentos depressivos.
Historicamente, secas prolongadas contribuem para o aumento do deslocamento de populações para os centros urbanos, uma vez que as condições de subsistência não são mais possíveis10,18,27,30,33,35,43 devido à redução na produção de alimentos, perda de colheitas, morte de animais, perda e ausência de empregos e renda.
Quanto aos serviços de saúde, 3 artigos abordaram a relação entre estes e o tema da seca10,35,43,68. O foco foi com aborígenes australianos, que comumente já se constituem em um grupo vulnerável, com dificuldades em ter acesso e lidar com serviços e profissionais de saúde que não sejam de sua cultura; porém, nos episódios de seca, esta situação se torna mais crítica, afetando diretamente as situações de saúde deste grupo43.
Na Figura 2 sistematizamos as implicações da seca para a saúde e que durante seus episódios alteraram os perfis de morbidade e mortalidade das populações nas áreas e regiões afetadas. Alguns efeitos na saúde podem ser sentidos em curto prazo, no entanto, alguns impactos são indiretos e com efeitos em longo prazo, como por exemplo, a desnutrição, que pode ter seus efeitos meses ou anos após os períodos de seca. Somado a esses impactos, os efeitos da seca na saúde podem se sobrepor às situações sociais, econômicas e ambientais, assim como aos determinantes de saúde já existentes, a exemplo das condições socioeconômicas e de nutrição da população, bem como do acesso aos serviços de saneamento e saúde, caracterizando novos cenários de vulnerabilidades socioambientais67,69,70.
Secas prolongadas comprometem total ou parcial as atividades agrícolas, pecuárias e pesqueiras, afetando o consumo de alimentos. Os alimentos podem ser comprometidos em sua qualidade e quantidade devido à escassez e/ou contaminação de água, falta de saneamento e aumento da densidade demográfica devido ao deslocamento populacional. Outro fator que interfere nesse comprometimento se refere aos prejuízos econômicos devido à perda total ou parcial das fontes de renda e trabalho, alterando o poder de compra de alimentos, e resultando diretamente no estado nutricional dos indivíduos. O estado nutricional comprometido pode implicar na redução no sistema imunológico e nos processos de adoecimento, conforme apontado67,69-73.
Se por um lado, a insegurança alimentar e nutricional se constitui em um dos principais efeitos provocados pela seca, por outro, foi claramente identificado como gerando um segundo efeito, ao afetar a saúde mental de australianos expostos. Conforme observado por alguns autores67,69,74, a saúde mental é um dos principais efeitos da seca na população, causando: estresse, suicídios, ansiedade, aumento no consumo de álcool e depressão, devido à perda na produtividade agrícola e de animais, assim como diminuição dos valores das terras, ocasionando pressões e dificuldades financeiras, perda de apoio social e familiar, além da vulnerabilidade ambiental.
Além da quantidade reduzida, a qualidade da água pode ser afetada por diversos fatores como, longos períodos de seca com temperaturas elevadas; contaminação do solo por cianobactérias; acúmulo de produtos tóxicos e químicos no solo; e fezes de animais. Esses fatores podem comprometer a água para consumo humano, solo e alimentos, assim como as práticas de higiene. Quanto à disponibilidade de água, a redução dos seus níveis nos sistemas de abastecimento e a escassez de chuvas implicam na necessidade de outras formas de abastecimento, mesmo que seja de fontes não próprias para consumo humano67,69,75.
Ressalta-se que as doenças transmitidas por vetores não deixam de ser alinhadas à falta de abastecimento ou armazenamento de água de forma inapropriada e, também, às doenças infecciosas. Segundo a literatura67,69, a seca traz consequências para o ambiente e a saúde da população, visto que este tipo de desastre natural altera os ciclos dos vetores, hospedeiros e reservatórios transmissores de doenças e nas formas de exposições ambientais, principalmente relacionados à água.
Secas por períodos prolongados também afetam negativamente a qualidade do ar, devido ao aumento de partículas em suspensão (pólen, fluorocarbonetos), a baixa umidade, o ar seco, a formação de aerossóis e partículas de poeiras e a contaminação decorrente de queimadas florestais e de toxinas acumuladas no solo67,69.
No que se refere às populações, determinados grupos etários e gêneros são considerados mais vulneráveis diante dos episódios de seca e seus impactos, como crianças, idosos, mulheres e pessoas com necessidades especiais. A percepção de riscos, o desenvolvimento cognitivo e físico de determinados grupos (crianças e idosos, por exemplo), a habilidade motora e a mobilidade que afeta as pessoas com necessidades especiais, o status socioeconômico e o acesso a recursos básicos de saúde surgiram como distintos para os diferentes grupos, contribuindo para acentuar a vulnerabilidade de alguns destes69,76,77. A vulnerabilidade destes grupos tem raiz nos processos sociais, econômicos e culturais dos territórios em que vivem e trabalham66.
Ainda no que se refere às populações, as secas favorecem os processos migratórios como uma forma de esperança para diversas famílias em melhorar as condições de vida através de novos empregos, renda e, até mesmo, alimentos e água11,67,69,78. Porém, se faz necessário ressaltar que muitas vezes nestes processos migratórios muitas doenças transmissíveis também são disseminadas, causando novos problemas de saúde nos novos territórios.
A seca além de afetar a saúde e o acesso aos serviços, também pode provocar a interrupção dos serviços de saúde devido à contaminação de instrumentos e equipamentos pela falta de condições de higiene adequada68; perda de vacinas e medicamentos; falta de água para consumo e saneamento; e inapropriação dos profissionais de saúde em realizar seu trabalho, aumentando assim a vulnerabilidade social da localidade afetada67,69.
No Quadro 1 sistematizamos os artigos analisados mediante mecanismos relacionados aos fatores de risco (comprometimento de serviços, produtos ou qualidade ambiental) e seus efeitos na saúde. Podemos observar que tanto os serviços de saúde como os de saneamento podem ser comprometidos, com efeitos que vão dos diretos aos indiretos. A falta de água não só compromete a higiene tendo como efeitos doenças, como também leva ao armazenamento de água por todos os meios, contribuindo para outras doenças, como dengue. Em São Paulo, por exemplo, comparando-se o primeiro bimestre de 2014 com o de 2015 (auge da crise hídrica), o número de casos de dengue notificados saltou de 11.876 para 94.623 (um aumento de 697%)79. As perdas de plantações e animais ou de empregos nas áreas afetadas, além de gerar impactos econômicos e financeiros diretos, resultam também no aumento do preço dos alimentos e da água disponível para compra, contribuindo não só para impactar a saúde mental, como também a alimentação e a nutrição das famílias. A qualidade ambiental das águas e do ar é também alterada, com outros efeitos relacionados e que podem se sobrepor a alguns dos apontados.
Na Figura 3 organizamos e demonstramos as interações entre as doenças destacadas nos artigos. Como nos centramos somente nos efeitos, observa-se que os agrupamentos relacionados aos grupos vulneráveis, ao processo de migração de populações e aos serviços de saúde não estão inseridos no diagrama. Um dos aspectos importantes desta figura é que ao demonstrar as interações entre doenças nos artigos, nos fornecem elementos também para apontar a sobreposição de riscos, doenças e agravos que as secas produzem nas condições de saúde das populações.
O Atlas Brasileiro dos Desastres Naturais80, que cobriu com dados um período mais recente de registros de eventos naturais no país (de 1991 a 2010), nos revela que do total de 31.913 eventos e de 96.368.789 de afetados em 20 anos, seca e estiagem responderam por 53% e 49% do total, respectivamente80. Para mortalidade (n = 3.414) e morbidade (n = 486.638), seca e estiagem responderam por 7,5% e 33,5% do total, refletindo uma tendência de redução dos óbitos por desastres, principalmente por este tipo de evento. Do total de mais de 6 milhões de diretamente expostos (que inclui, desaparecidos, deslocados, desabrigados e desalojados, portanto populações majoritariamente forçadas a sair de seus lares e com maior exposição aos riscos de doenças), 21% foram por este tipo de desastre, sendo que entre os mais de 1,2 milhões de deslocados (pessoas que migram), 65% foram por questões relacionadas à seca e estiagem. Estes dados, ainda que não demonstrem a totalidade dos efeitos da seca, nos revelam a magnitude e a complexidade deste tipo de desastre, em que um conjunto de riscos, doenças e agravos, que procuramos sistematizar neste artigo, ocorrem e se sobrepõem sem que tenhamos um sistema de vigilância e atenção em saúde estruturado para prevenir, cuidar e recuperar a saúde das populações expostas.
A primeira seca registrada no país durou 4 anos, entre 1552-1555, com aumento no número de episódios de secas e da soma dos anos de seca. Se no século XIX foram 12 episódios e 21 anos de seca, no século XX foram 19 episódios e 36 anos de seca81. Apesar dos seus impactos sobre a vida de milhões de brasileiros no passado e no presente e das projeções futuras de aumento na frequência e duração deste tipo de desastre, que integra a história de nosso país, o único estudo que encontramos associando condições de vida e saúde com a seca foi o de Arthur Neiva e Belisário Penna2, concluído 100 anos atrás, demonstrando a necessidade da Saúde Coletiva ampliar e intensificar as pesquisas sobre este tipo de problema.
O Brasil viveu no ano de 2015 a continuidade de uma das secas mais graves nos últimos 50 anos, no que se refere aos seus aspectos meteorológicos, hídricos e agrícolas, sendo o seu período mais crítico entre os anos de 2012 e 2014. Apesar disto, seu impacto sobre as condições de vida é menor do que outras grandes secas recentes, como a de 1998-1999. Um conjunto de políticas públicas emergenciais para redução dos seus impactos no que se refere à água (operação carro pipa, construções de cisternas e perfuração e recuperação de poços) e agropecuária (venda de milho para rebanhos e linhas de crédito) vem sendo realizadas. Somam-se a estas políticas, programas como o Bolsa Estiagem (voltado para agricultores familiares), a aposentadoria rural e o Bolsa Família que possibilitam que as famílias possam comprar alimentos e, por vezes, água. Some-se a isto a ampliação da atenção básica e da estratégia da saúde da família, com impactos na redução da mortalidade na infância. Não há dúvida que este conjunto de políticas minimizam os efeitos da seca, mas não imunizam a população de riscos, doenças e agravos, cuja a relação com a seca é, na maior parte das vezes, complexa e não diretamente visível.
Por fim, ampliar e intensificar as pesquisas acerca dos efeitos da seca sobre as condições de vida e saúde representa também romper com a naturalização que a seca possui em nosso país, muitas vezes acompanhada da naturalização da pobreza e do sofrimento social vividos regularmente pelas populações, principalmente no semiárido brasileiro.