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Descelularização de Pericárdio Humano com Potencial Aplicação em Medicina Regenerativa

Descelularização de Pericárdio Humano com Potencial Aplicação em Medicina Regenerativa

Autores:

Estela de Oliveira Lima,
Adriana Camargo Ferrasi,
Andreas Kaasi

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.1 São Paulo jul. 2019 Epub 08-Ago-2019

https://doi.org/10.5935/abc.20190130

A medicina regenerativa é um ramo interdisciplinar dentro das ciências biomédicas que vem apresentando, a partir da transposição da pesquisa básica para a clínica médica, grande potencial para aplicação terapêutica, tornando-a uma importante representante da medicina translacional. A essência da medicina regenerativa consiste no reparo ou reposição de tecidos e órgãos em que haja deficiência estrutural e funcional. Visando alcançar esse objetivo, várias abordagens vêm sendo propostas, abrangendo terapias que incluem genes, células, arcabouços (scaffolds) biológicos e sintéticos, podendo ou não estar associados em uma mesma estratégia de engenharia tecidual.1 Quando se trata de utilizar scaffolds sintéticos, é possível manipular e controlar suas propriedades estruturais e mecânicas, entretanto, não é possível garantir a mesma capacidade funcional que um tecido natural.2 Além disso, um dos grandes desafios é minimizar o risco de reações imunogênicas provocadas pela composição do arcabouço de reparo.3 Diante dos desafios associados ao restabelecimento funcional e estrutural do microambiente celular, o interesse em scaffolds baseados em matriz extracelular (MEC) natural tem crescido consideravelmente.

Visando a obtenção de um biomaterial que se assemelhe de maneira mais fidedigna ao tecido ou órgão danificado, tanto estrutural quanto funcionalmente, mas também apresente segurança do ponto de vista imunológico, uma nova tecnologia para aplicações clínicas da MEC natural tem sido proposta - a descelularização de tecidos e órgãos de doadores humanos ou animais. Esta tecnologia consiste em utilizar métodos físicos, químicos e/ou bioquímicos para eliminar as células do tecido/órgão alvo, sejam de origem xenogênica ou alogênica, cujos antígenos representam elevado risco de reação imunogênica. Tal processo visa a segurança imunológica e a preservação dos componentes estruturais e funcionais básicos da MEC, como proteínas, colágeno e glicosaminoglicanos (GAGs). Como produto final obtém-se um scaffold tridimensional da MEC de forma análoga ao tecido de origem, com arquitetura ultraestrutural natural preservada e com maior biocompatibilidade e potencial de regeneração tecidual quando comparada a scaffolds sintéticos.4

O tecido pericárdico, principalmente de origem bovina, tem sido amplamente utilizado na cirurgia cardíaca, seja para substituição de válvulas cardíacas ou para reparo de defeitos congênitos. Sua estrutura fibrosserosa, rica em fibras elásticas e feixes de colágeno, confere ao pericárdio elevada resistência a estresse mecânico, a qual, somada à capacidade de retenção de sutura uniforme, representam características essenciais para aplicação em cirurgias cardiovasculares.5,6

No intuito de reduzir a probabilidade de resposta imunogênica e rejeição do enxerto, o pericárdio pode ser submetido a diferentes tratamentos, dentre eles a fixação tecidual com glutaraldeído, utilizada rotineiramente. Embora este método estabeleça menor imunogenicidade tecidual, a citotoxicidade e a propensão a calcificações são dois inconvenientes importantes associados à técnica.7,8 Diante desses problemas, outros métodos vêm sendo desenvolvidos para aprimorar a utilização segura do pericárdio na cirurgia cardíaca, dentre eles a descelularização. Uma das técnicas melhor estabelecidas consiste no tratamento do tecido com detergentes iônicos, como o dodecilsulfato de sódio (SDS). Embora este agente de descelularização remova componentes naturais indesejáveis, como moléculas antigênicas, pode também levar à alteração estrutural da MEC pericárdica, como por exemplo, a perda de GAGs e proteínas sinalizadoras importantes. O dano estrutural decorrente do tratamento com SDS pode prejudicar a recelularização in situ ou in vitro ideal do scaffold, bem como alterar as propriedades mecânicas da matriz, como elasticidade e extensibilidade.9

Em artigo publicado nesta edição, Wollmann et al.,10 propõem a descelularização de pericárdio humano com quantidade reduzida de detergente, para aplicação de patch cardiovascular. O trabalho se propõe a minimizar os impactos da técnica e obter uma MEC humana de melhor qualidade atóxica e que retenha o máximo possível a arquitetura e composição originais. A metodologia proposta apresenta considerável remoção dos componentes celulares, dentre eles o DNA, cuja quantidade apresentou redução em cerca de um terço da originalmente observada. O tecido também foi avaliado em relação à citotoxicidade, sendo que não houve efeitos citotóxicos em testes in vitro. Esta observação traz grande estímulo para a investigação mais aprofundada da técnica, como a realização de testes in vivo visando a aplicação clínica no futuro. Além disso, o tratamento utilizado não alterou a constituição do pericárdio em relação aos componentes elastina (avaliação qualitativa) e colágeno (avaliação quantitativa e qualitativa). Entretanto, o tratamento apresentou redução quantitativa de GAGs, o que já está bem descrito na literatura quando a descelularização é realizada com o detergente SDS (revisado por Scarritt et al.11). Apesar das alterações estruturais referentes aos GAGs, o comportamento biomecânico da matriz foi semelhante ao tecido fresco, o que viabiliza sua utilização em tratamento de tecidos que apresentam intensas cargas mecânicas, como os encontrados no sistema cardiovascular.

Nota-se que um dos grandes desafios da área é desvendar o melhor método para geração de scaffolds intactos. Para isso, a concentração dos reagentes é um parâmetro que pode ser modulado para garantir a composição ideal da MEC. Quando a concentração é otimizada com base na filosofia de que “menos é mais”, os reagentes falham consideravelmente na remoção completa de debris celulares, contendo DNA celular. Reciprocamente, quando as concentrações utilizadas são mais elevadas, o contrário é verdadeiro.12 Considerando que o sucesso das técnicas de descelularização está diretamente associado ao mínimo de alteração da composição, estrutura e mecânica dos tecidos, o trabalho de Wollmann et al.,10 vem de encontro às necessidades de aperfeiçoamento dos métodos para a obtenção de pericárdio descelularizado.

No artigo, Wollmann et al.,10 investigam principalmente o efeito de uma concentração de SDS descrita como “baixa”, de 0,1% (P/V). Indiscutivelmente, esta concentração é baixa comparada à concentração de 1% usada, por exemplo, em descelularização de rins porcinos.13 Outros autores têm adotado o descritor "concentração baixa" para 0,5%, também para rins porcinos.14 O conceito de "baixa concentração" deve ser entendido no contexto do tecido a ser descelularizado. Por exemplo, 0,1% pode ser uma baixa concentração para um tecido sub-milimétrico como o pericárdio, enquanto 0,5% pode igualmente ser baixo para um órgão centimétrico como o rim. Além do desafio de customizar a concentração ao tecido a ser descelularizado, a variabilidade entre doadores dificulta a padronização de um processo escalonável de descelularização, e sugere que o caminho para translação clínica requer uma abordagem customizada e não necessariamente padronizada.

A utilização de patches em cirurgia cardíaca já é uma prática bem estabelecida, entretanto o material biológico mais utilizado tem origem xenogênica e não é submetido ao processo de descelularização, aumentando os riscos de reintervenções cirúrgicas.3,15 A proposta de utilização de patch pericárdico descelularizado, cujos componentes estruturais sejam satisfatoriamente preservados e as moléculas antigênicas sejam devidamente eliminadas, é consequentemente de grande interesse para aplicação clínica. Essas características têm potencial de favorecer a sinalização tecidual para recrutamento e aderência de células do próprio tecido do paciente receptor, manter as características mecânicas ideais, bem como reduzir a imunogenicidade do enxerto.16 Essa proposta aumentaria a durabilidade do enxerto, favoreceria a regeneração tecidual adequada e reduziria a propensão a fibrose e calcificação, melhorando a qualidade de vida do paciente. Considerando que as doenças cardiovasculares correspondem às principais causas de morte no mundo (31%),17 desenvolver estratégias que gerem produtos biocompatíveis para essa aplicação e mais próximos do tecido natural é de grande importância para a medicina regenerativa, disponibilizando novas alternativas na busca de um biomaterial cardíaco ideal.

REFERÊNCIAS

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10 Wollmann L, Suss P, Mendonça J, Luzia C, Schittini A, Rosa GW. Caracterização do Pericárdio Humano Descelularizado para Engenharia de Tecidos e Aplicações de Medicina Regenerativa. Arq Bras Cardiol. 2019; 113(1):11-17.
11 Scarritt ME, Pashos NC, Bunnell BA. A Review of Cellularization Strategies for Tissue Engineering of Whole Organs. Front Bioeng Biotechnol. 2015 Mar;3:43.
12 Akhyari P, Aubin H, Gwanmesia P, Barth M, Hoffmann S, Huelsmann J, et al. The quest for an optimized protocol for whole-heart decellularization: a comparison of three popular and a novel decellularization technique and their diverse effects on crucial extracellular matrix qualities. Tissue Eng Part C Methods. 2011;17(9):915-26.
13 de Souza FR, Dalboni MA, Kaasi A, Pestana JO, Vieyra, AR, de Souza NK. Rapid Protocol of Porcine Kidney Decellularization. Journal of Biomimetics, Biomaterials and Biomedical Engineering. 2018 Aug;38:67-74.
14 Poornejad N, Momtahan N, Salehi AS, Scott DR, Fronk CA, Roeder BL, et al. Efficient decellularization of whole porcine kidneys improves reseeded cell behavior. Biomed Mater. 2016;11(2):025003.
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16 Hussein KH, Park KM, Kang KS, Woo HM. Biocompatibility evaluation of tissue-engineered decellularized scaffolds for biomedical application. Mater Sci Eng C Mater Biol Appl. 2016 Oct;67:766-778.
17 World Health Organization. (WHO). World Heart Day. Scale up prevention of heart attack and stroke, 2017 [ cited in 2017 Sep 29 ]. Available from: