versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.114 no.4 supl.1 São Paulo abr. 2020 Epub 18-Maio-2020
https://doi.org/10.36660/abc.20180316
A insuficiência cardíaca (IC) é uma condição crônica com prevalência elevada e crescente no mundo. 1 - 3
A identificação da causa de descompensação da IC é extremamente importante para a correta condução dos casos, uma vez que poderá permitir o tratamento específico e prevenir novas internações. No Brasil, as principais causas de descompensação de IC são má aderência ao tratamento medicamentoso (30%) e infecções (23%), 1 principalmente as bacterianas pulmonares. 4 Por isso, pacientes com IC devem receber a vacina anti-pneumococo. Apesar de menos frequente, a descompensação pode dar-se por infecções virais, fato que justifica a vacinação contra influenza nestes pacientes. 3
Nos últimos anos diversas cidades brasileiras foram acometidas por epidemias de arboviroses antes consideradas raras como as causadas pelo vírus da Zika e da febre chikungunya. 5 Tais epidemias chamaram atenção da comunidade científica não só pelo número de pacientes atingidos, mas principalmente pelas frequentes sequelas, como microcefalia em filhos de gestantes acometidas pelo vírus da Zika e pelas artralgias incapacitantes e crônicas secundárias à febre de chikungunya. Apesar de existirem relatos de miocardite causada por arboviroses, 6 - 8 pouco se sabe a respeito dos riscos e complicações quando estas acometem pacientes que já têm diagnóstico de IC. A elevada prevalência de IC e a alta incidência de arboviroses no Brasil justificam o relato de caso a seguir.
Paciente masculino de 71 anos, aposentado, procurou serviço de emergência com queixa de dispneia aos pequenos esforços com piora progressiva nos últimos dois dias evoluindo para dispneia em repouso e dispneia paroxística noturna após episódio de febre não aferida na véspera. Negou tosse, dor torácica, tonteira e síncope. O paciente tinha diagnósticos de miocardiopatia dilatada de etiologia hipertensiva/alcoólica, insuficiência renal crônica não-dialítica, fibrilação atrial permanente, hiperuricemia, doença pulmonar obstrutiva crônica e colelitíase. Era etilista e ex-tabagista (47 maços/ano, estando abstêmio há 6 anos). Fazia uso regular de carvedilol (12,5 mg pela manhã e 25 mg à noite), hidralazina (25 mg, 3 vezes ao dia), anlodipino (5 mg ao dia), furosemida (40 mg, 4 vezes ao dia), digoxina (0,125 mg ao dia), apixabana (2,5 mg, 2 vezes ao dia), bamifilina (300 mg ao dia) e formoterol/budesonida (12 mcg + 400 mcg, 2 vezes ao dia). Ao exame admissional, o paciente apresentava pressão arterial de 110 x 84 mmHg, frequência cardíaca de 86 bpm, frequência respiratória de 26 irpm e turgência jugular patológica a 30°. A ausculta pulmonar revelava murmúrios vesiculares universalmente audíveis, sem ruídos adventícios, e à ausculta cardíaca havia ritmo irregular, com bulhas normofonéticas, sem bulhas acessórias. Havia edema de membros inferiores (2+/4+) e não havia ascite ao exame físico.
Não havia evidência clínica de angina, novas arritmias ou infecção ( Tabela 1 ). O paciente e sua esposa negavam má-adesão ao tratamento medicamentoso, libação alcoólica ou ingestão excessiva de sal ou líquidos. Portanto, não foi possível identificar fatores precipitantes para o quadro de IC descompensada. O eletrocardiograma de admissão do paciente mostrou ritmo de fibrilação atrial e bloqueio de ramo esquerdo. Não havia alteração eletrocardiográfica sugestiva de isquemia miocárdica. A radiografia de tórax mostrou aumento do índice cardiotorácico, com discreta congestão pulmonar e ausência de derrame pleural ou consolidação pulmonar. Visando rastreamento infeccioso foi realizado exame de sedimento urinário, com resultado normal.
Tabela 1 – Resultados de exames laboratoriais durante a internação
Exames laboratoriais | Dias de internação | ||||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
1 | 3 | 5 | 12 | 14 | |
Proteína C reativa (mg/dL) | 3.00 | 2.90 | 2.56 | 10.60 | 10.30 |
Ureia (mg/dL) | 96 | 148 | 102 | 72 | 107 |
Potássio (mEq/L) | 6.3 | 5.8 | 3.5 | 4.6 | 4.6 |
Creatinina (mg/dL) | 2.0 | 3.6 | 2.2 | 1.6 | 1.9 |
Hemoglobina (g%) | 14.9 | 16.3 | 14.0 | 14.1 | 13.0 |
Leucócitos (mil/mm 3 ) | 6.9 | 7.9 | 5.7 | 8.7 | 5.7 |
Plaquetas (mil/mm 3 ) | 106 | 135 | 87 | 80 | 111 |
O paciente foi admitido, classificado com perfil hemodinâmico B 9 e submetido ao tratamento com diuréticos intravenosos ( Figura 1 ).
No terceiro dia de internação, o paciente evoluiu com piora da função renal, com clearance de creatinina (Cockroft-Gault) de 19 ml/min (creatinina 3,0 mg/dL) e hipercalemia (6,1 mEq/l). Devido a tal complicação, foi suspensa a digoxina. Após cinco dias, o paciente alcançou perfil hemodinâmico A, e optou-se por alterar a via de administração da furosemida de venosa para oral. Neste mesmo dia o paciente apresentou hematúria macroscópica, sendo suspensa a anticoagulação. No sétimo dia de internação o paciente queixou-se de artralgia leve, em joelhos e tornozelos, que associou à sua posição no leito. A despeito do uso de dipirona, no dia seguinte houve piora dos sintomas, com artralgia bilateral, de forte intensidade em joelhos, tornozelos, punhos e cotovelos, restringindo a movimentação no leito. O paciente não apresentou, dispneia ou precordialgia e mantinha perfil hemodinâmico A. Houve discreto controle álgico com uso regular de tramadol e no dia seguinte os exames laboratoriais revelaram plaquetopenia (queda de 135.000 para 87.000 por mm 3 em 5 dias - Tabela 1 ). Artralgia e plaquetopenia levantaram a suspeita de arbovirose e por isso foram solicitadas sorologias para dengue e chikungunya. O paciente evoluiu com piora da congestão periférica e central, com edema de membros inferiores (3+/4+), turgência jugular patológica, refluxo hepatojugular, estertoração crepitante bibasal e onda quadrada da pressão arterial sistólica à manobra de Valsalva. Não havia sinal de hipoperfusão e o paciente foi novamente classificado com perfil hemodinâmico B, sendo re-iniciada diureticoterapia venosa.
No 14° dia de internação já havia melhora da plaquetopenia, da artralgia e do padrão de congestão (com retorno ao perfil hemodinâmico A). Os exames laboratoriais não revelavam distúrbios eletrolíticos ( Tabela 1 ), ou alterações da função hepática. As sorologias para febre chikungunya foram positivas (IgG e IgM). Assim, foi reiniciada anticoagulação plena com apixabana, trocada analgesia regular por apenas se necessária. Durante toda a internação o padrão eletrocardiográfico foi mantido. No dia seguinte permaneceu estável, mantendo perfil hemodinâmico quente e seco, recebendo alta hospitalar com a seguinte prescrição: furosemida (40 mg, 2 vezes ao dia, carvedilol (25 mg, 2 vezes ao dia), atorvastatina (20 mg ao dia), formoterol + budesonida (12/400 mcg, 2 vezes ao dia), alopurinol (100 mg ao dia), apixabana (5 mg, 2 vezes ao dia). Não houve novos episódios de descompensação clínica nos três meses que se passaram desde a alta hospitalar.
De acordo com a Diretriz Brasileira de IC Crônica e Aguda, 3 a sistematização de cuidados para a alta hospitalar em pacientes com IC descompensada inclui a resolução dos fatores precipitantes. Infecções, principalmente as pneumonias bacterianas, representam importantes causas de descompensação da IC. 1 Neste sentido, tem-se recomendado a vacinação contra pneumococo e vírus influenzae em pacientes com IC. Esta recomendação segue uma orientação dos EUA e países europeus, com clima mais temperado, onde a infecções graves por vírus influenzae são comuns. 3 Apesar destas infecções serem comuns no Brasil também, devemos ressaltar a proporção epidêmica que as arboviroses alcançaram em diferentes estados brasileiros. 7
A febre chikungunya é uma arbovirose transmitida por um alfavírus (CHIKV), e tem como vetores os mosquitos do gênero Aedes, sendo o Ae. aegypti o principal. 10 Foi documentada primeiramente na Tanzânia em 1952, e no Brasil o primeiro caso de transmissão autóctone foi registrado em 2014. 10 O nome chikungunya significa “andar curvado”, fazendo referência à marcante artralgia da doença, intensa e por vezes incapacitante, que pode durar de meses a anos. 10
Apesar da recente epidemia de febre chikungunya no Brasil e da grande prevalência de IC, não encontramos publicações citando esta virose como causa da agudização de IC crônica. Uma meta-análise recém-publicada 6 sugere que o sistema cardiovascular seja acometido em 54,2% dos casos de febre chikungunya, entretanto, devemos enfatizar que esta estatística baseou-se em relatos onde não houve padronização da definição deste acometimento, incluindo hipotensão, choque, arritmias, aumento de troponina e até miocardite aguda. 6 - 8 Com base nestes achados, os autores sugerem tropismo miocárdico pelo CHIKV, que, assim como o vírus da dengue, o parvovírus, o herpes vírus e o enterovírus, pode causar dano direto às células miocárdicas. 6
Paralelamente, as alterações hemodinâmicas características das infecções sistêmicas (como vasodilatação e taquicardia) podem ser suficientes para a descompensação clínica de pacientes com IC, gerando hipotensão e extravasamento de fluidos para o espaço extra-vascular. De fato, quando estes pacientes são infectados pelo CHIKV, pode haver descompensação clínica mesmo na ausência de miocardite.
Os sintomas da febre chikungunya geralmente surgem após um período de incubação de 1 a 12 dias. 11 A positividade para anticorpos IgM e IgG revela infecção recente ou atual, uma vez que os anticorpos IgM podem permanecer positivos por até 3 meses após a picada. O paciente descrito teve evolução clínica atípica, uma vez que a descompensação hemodinâmica ocorreu antes da artralgia característica da febre. Ainda assim, a ausência de outros fatores precipitantes, as sorologias positivas e a evolução temporal do quadro ( Figura 1 ) corroboram a hipótese de descompensação clínica por febre chikungunya no presente caso. Infelizmente, não foi possível realizar ressonância nuclear magnética cardíaca, pois a mesma não está disponível em nosso hospital. Ressaltamos que este exame, apesar de útil no diagnóstico de miocardite, não seria capaz de confirmar a hipótese de descompensação clínica por febre chikungunya.
Além do diagnóstico difícil, o presente caso caracterizou-se pelo desafio no manejo clínico. Como em outras arboviroses, o tratamento de pacientes com febre chikungunya tem sua base no controle álgico adequado, normalmente obtido com uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) que não atuem como anti-agregantes plaquetários (como o ácido acetil salicílico). Entretanto, a disfunção miocárdica contra-indicou o uso de a AINEs 3 e por isso tivemos que optar por analgesia com opioides como o tramadol. Além disso, a plaquetopenia e o sangramento ativo (hematúria) impediram a continuidade da anticoagulação profilática no paciente, a despeito da indicação por fibrilação atrial crônica, aumentando o risco de evento tromboembólicos secundários à arritmia.
Infecções virais, principalmente aquelas mais prevalentes em nosso meio, como a febre chikungunya, devem ser consideradas como fator de descompensação da IC em pacientes previamente estáveis sem outros fatores precipitantes claramente identificados.