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Descontinuação de medicamentos: um problema de saúde pública

Descontinuação de medicamentos: um problema de saúde pública

Autores:

Mário Borges Rosa,
Adriano Max Moreira Reis,
Edson Perini

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.32 no.10 Rio de Janeiro out. 2016 Epub 20-Out-2016

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00086916

Dificuldades de acesso a medicamentos por falhas no abastecimento (drug shortage) criam um sério problema de saúde pública 1. No Brasil, esse fato é comumente referido como "falta de medicamentos". No entanto, textos acadêmicos fazem referência ao fato como "desabastecimento de medicamentos", especificando falhas no complexo sistema de ações de suporte à cadeia de consumo 2. A vigilância sanitária o designa "descontinuação de medicamentos" 3. Assim definindo, oferece uma ideia ainda mais abrangente de que o desabastecimento, seja ocasional ou permanente do produto, prejudica a cadeia de assistência independentemente dos avanços políticos e logísticos na organização da assistência farmacêutica do país.

A descontinuação de medicamentos é um problema global 4 e, na última década, cresceu no Brasil prejudicando todos os níveis de atenção, público e privado, da atenção primária à especializada. Fenômeno complexo e multifatorial, é influenciado por elementos da logística farmacêutica e fatores políticos diversos, desde as grandes definições para os setores saúde e de ciência e tecnologia à qualidade da ação das instituições de controle alfandegário, fiscal e sanitário 1), (2. Na descontinuação, a dualidade do medicamento fica evidente: como produto para saúde, submetido à regulação sanitária de produção, comercialização e consumo e, como mercadoria, integra o sistema financeiro internacional como commodities de alto valor agregado e elevado risco econômico. Em qualquer situação se reveste de alto interesse político, pois infrações sanitárias ou problemas na expectativa de lucro podem comprometer a cadeia de abastecimento, dificultando ou inviabilizando a disponibilidade para o paciente.

No complexo determinante da descontinuação de medicamentos, a produção envolve questões técnicas e econômicas que se interligam em uma rede de fatores. Entre os fatores técnicos destacam-se a irregularidade no fornecimento e na qualidade de insumos e a inadequação às boas práticas 5), (6), (7), (8. Tais fatores podem determinar interrupção na produção ou recolhimentos de medicamentos nos serviços de saúde, problema agravado quando existe um número reduzido ou um único fornecedor do medicamento 6. Países com alta dependência tecnológica do mercado internacional são mais vulneráveis às intercorrências no abastecimento 2. O Brasil, não obstante ser um dos maiores mercados mundiais e dispor hoje de instrumentos de regulamentação e regulação avançados para a produção, importação e garantia de acesso, ainda apresenta dependência tecnológica e de fornecimento de insumos, e somente uma articulação sistêmica das políticas de apoio à pesquisa e desenvolvimento, à produção em toda a sua cadeia e garantia de acesso, pode reduzir essa vulnerabilidade. Essa articulação é especialmente importante na proteção do abastecimento contra os fatores econômicos, entre os quais se destacam interrupções ou reduções na produção pelo baixo retorno financeiro, novos planejamentos econômicos das indústrias ou alterações na linha de produção devido a fusões de laboratórios 2), (9.

Todos esses fatores estão de alguma forma sob o controle do Estado, e nas políticas setoriais encontramos explicações mais complexas para a descontinuação e os fatores sobre os quais o poder público goza de maior possibilidade de equacionar soluções mais efetivas. Nos problemas técnicos ou econômicos da produção e distribuição, os governos têm capacidade de previsão limitada e podem estabelecer ações pontuais e de curto prazo. Assim, pressionada pelo problema, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou em 2014 uma normatização sobre a descontinuação definitiva e temporária de medicamentos 3. Porém, as fragilidades das políticas setoriais de saúde e ciência e tecnologia fazem com que a descontinuação seja um risco sempre presente. O estabelecimento de políticas bem articuladas nessas áreas é essencial para que o país desenvolva seu parque tecnológico para a produção e absorção de novas tecnologias.

Outro requisito fundamental é a informação. A disponibilidade no portal da Anvisa de uma seção sobre medicamentos em descontinuação contribui com os serviços e profissionais de saúde na identificação do problema, facilitando a elaboração de estratégias de intervenção. No entanto, essa atuação da Anvisa ainda se faz de forma passiva, e o órgão deveria aprimorar suas estratégias de comunicação, alcançando de forma ativa os estabelecimentos de saúde, associações de pacientes, órgãos representativos de prestadores de serviços de saúde, sociedades técnico-científicas de profissionais de saúde e órgãos de defesa do consumidor.

Diante do impacto negativo da descontinuação de medicamentos para o sistema de saúde, a Anvisa tem reconhecido a importância de monitorar os elementos da cadeia de suprimento e estabelecer planos para a minimização do problema com ações de curto e longo prazos. Sua função regulatória ganha importância na garantia das condições sanitárias de produção e na gestão dos conflitos que gera sua ação junto ao setor produtivo. Essa gestão envolve as definições de essencialidade do fármaco nos planejamentos estratégicos de manutenção do abastecimento, sinalizando oportunidades para que a contribuição da indústria farmacêutica, pública e privada, possa desenvolver seus planos de produção de forma que, ao mesmo tempo, tenha a segurança necessária de manutenção do seu retorno e crescimento econômico e a atuação responsável para cumprir o seu papel social.

Em relação às suas consequências, a descontinuação de medicamentos compromete a qualidade do cuidado prestado, traz prejuízos para a terapêutica e a segurança do paciente, dificulta a adesão aos protocolos assistenciais e aumenta o custo do tratamento 1), (10), (11), (12), (13), (14), (15. O controle da sífilis congênita e em gestantes no Brasil, por exemplo, está comprometido pela descontinuação da benzil penicilina benzatina e benzil penicilina potássica nos últimos anos 12), (13. No início de 2016, as ações de vigilância epidemiológica de doenças transmissíveis também foram colocadas em risco com a descontinuação de imunobiológicos. Os programas de controle de infecções hospitalares foram afetados pela falta de antimicrobianos. Todos esses problemas poderiam ter sido evitados ou minimizados por meio de ações governamentais que permitissem uma articulação efetiva entre a possibilidade de previsões mais acuradas sobre o abastecimento dos medicamentos e a execução de intervenções imediatas, seja no direcionamento da produção pública, nas articulações com o sistema privado ou em última instância no planejamento de substituições, ou na importação dos produtos.

Ressalta-se que a substituição nos momentos de descontinuação é um processo complexo e que envolve riscos à segurança do paciente, haja vista o fato de que erros de medicação e reações adversas a medicamentos são mais prováveis quando uma conduta terapêutica é substituída por motivos alheios às necessidades clínicas 11), (16. E, nessa complexidade deve-se considerar que a descontinuação aumenta os custos assistenciais, dado que as alternativas terapêuticas são geralmente mais caras ou, em momentos de baixa oferta ou redução da concorrência, os preços tendem a aumentar 17), (18), (19.

REFERÊNCIAS

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3. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 18, de 04 de abril de 2014. (accessed on 10/Feb/2016).
4. Gray A, Manasse HR. Shortage of medicines: a complex global challenge. Bull World Health Organ 2012; 90:158-158A.
5. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Descontinuação de medicamentos. (accessed on 16/Feb/2016).
6. Machline C, Amaral Júnior JBC. Avanços logísticos no varejo nacional: o caso das redes de farmácias. RAE - Revista de Administração de Empresas 1998; 38:63-71.
7. Kaakeh R, Sweet BV, Reilly C, Bush C, DeLoach S, Higgins B, et al. Impact of drug shortages on U.S. health systems. Am J Health Syst Pharm 2011; 68:1811-9.
8. Kaposy C. Drugs, money, and power: the Canadian drug shortage. J Bioeth Inq 2014; 11:85-9.
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13. Ministério da Saúde. Nota informativa conjunta nº 109/2015 GAB/SVS/MS e GAB/SCTIE/MS. (accessed on 19/Feb/2016).
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