versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.23 no.2 Rio de Janeiro 2019 Epub 28-Mar-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0248
O serviço de seguimento ambulatorial especializado destina-se a crianças com risco amentado de morbidades, decorrentes do nascimento prematuro e internação em Unidades de Terapia Intensiva. Este tipo de serviço possibilita um acompanhamento do crescimento e desenvolvimento, identificando precocemente alterações que precisam de intervenções e encaminhamentos para outros serviços. É também uma de suas finalidades a orientação e apoio às famílias para a realização do cuidado aos lactentes1.
As famílias que aderem ao seguimento ambulatorial, quando comparadas àquelas que não aderem, apresentam menores taxas de desabilidades e maior habilidade cognitiva. A não adesão ao seguimento ambulatorial tem como consequência riscos de piores prognósticos em longo prazo2, uma vez que essas crianças podem apresentar repercussões importantes no que diz respeito ao seu crescimento, desenvolvimento3 e interação familiar2. Ademais, pode comprometer o atendimento às necessidades de saúde das crianças e suas famílias4.
Apesar de conhecidos os benefícios do seguimento, são elevadas as taxas de não adesão ou evasão. Estudo com mães de crianças atendidas em um ambulatório de referência em tratamento de sífilis congênita, no estado do Paraná, identificou 63,8% de abandono nas consultas ambulatoriais5, valor superior às taxas encontradas em estudos internacionais, com mães de crianças nascidas pré-termo, variando de 33%6 a 46%2.
Constatou-se que os fatores relacionados à descontinuidade do seguimento ambulatorial carecem de aprofundamento, considerando a complexa realidade da descontinuidade do cuidado às crianças de risco4,6.
Têm sido identificados como fatores predisponentes para o não seguimento ambulatorial a relação entre profissional-família, as barreiras enfrentadas para chegar ao serviço, a falta de apoio social e o tempo disponível2,6. Estudo no Canadá evidenciou que as famílias em descontinuidade procuravam o serviço de saúde apenas nas urgências, quando as necessidades de saúde da criança eram visíveis6.
No intuito de assegurar uma atenção integral e humanizada ao recém-nascido de risco, em 2015, no Brasil, foi instituída a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC). Dentre as ações propostas, recomenda-se que o atendimento ao recém-nascido egresso da UTIN seja realizado pela APS e também pelo ambulatório de seguimento especializado. Este modelo de assistência compartilhada objetiva a qualidade ao cuidado oferecido ao recém-nascido e à família, em todos os níveis de atendimento7. Embora a vinculação entre os serviços de saúde buscasse favorecer uma atuação contínua e humanizada, isto se constituía ainda em um desafio que carecia de soluções efetivas para a troca de informações clínicas entre os serviços8.
As mães e familiares desempenham um papel principal nas decisões sobre o que é necessário ou não aos seus filhos. As crenças e valores que permeiam as práticas de cuidado dos pais representam conjuntos organizados de ideias que estão implícitos nas atividades da vida diária desses familiares, atuando nos julgamentos, escolhas e tomadas de decisões. Essas diferentes formas de agir e perceber o mundo a sua volta podem variar de acordo com suas experiências, configurações culturais e socioeconômicas9.
Portanto, parte-se do pressuposto de que a apreciação materna acerca da necessidade ou não do seguimento ambulatorial vem de suas experiências individuais adquiridas desde a gestação, assim como do contato com os profissionais nos serviços de saúde, que delineiam a percepção da mãe, seus comportamentos, expectativas e o sentido que ela atribui à assistência prestada ao seu filho. Nesse contexto, a mãe ou a família cria significados sobre a necessidade ou não da continuidade do cuidado.
Nesse sentido, o presente estudo teve como objetivo identificar aspectos que contribuem para a descontinuidade do seguimento ambulatorial de crianças egressas de UTINs sob a perspectiva das mães.
Trata-se de um estudo exploratório de natureza qualitativa cujo referencial teórico foi o Interacionismo Simbólico. Esta abordagem permite o estudo do comportamento social a partir de sua experiência individual, considerando que as pessoas constroem seu mundo com base em suas interações com o meio10, contribuindo, portanto, para o conhecimento acerca de opiniões, comportamentos e expectativas maternas que as possibilitaram interpretar a necessidade do seguimento ambulatorial de seus filhos.
A coleta de dados ocorreu de julho a outubro de 2015, e teve como cenário os ambulatórios de seguimento da criança de alto risco de um Hospital Maternidade Filantrópico (A) referência na implementação da estratégia Rede Cegonha e um Hospital Universitário (B), ambos da cidade de Belo Horizonte.
Foram incluídas, no estudo, cuidadoras residentes na região metropolitana de Belo Horizonte, cujas crianças eram egressas das UTIN, com idade entre 0 e 2 anos, e que descontinuaram o seguimento ambulatorial.
Identificaram-se, nestes serviços, 55 crianças egressas de Unidades de Terapia Intensiva Neonatal que no momento da alta foram encaminhadas para seguimento ambulatorial e que descontinuaram o seguimento. Considerou-se descontinuidade a não ida a nenhum compromisso ambulatorial após a alta hospitalar ou o não comparecimento em três ou mais consultas seguidas.
A identificação das crianças de risco em descontinuidade do seguimento ambulatorial se processou de maneiras distintas de acordo com a realidade de cada serviço. No ambulatório de seguimento vinculado ao serviço A, identificaram-se as ausências às consultas a partir do prontuário. Posteriormente, foi feita a confirmação com a equipe de saúde. O ambulatório de seguimento vinculado ao serviço B possui um banco de dados em planilha de Excel em que constam as ausências da criança. Este documento foi consultado para identificar aquelas em descontinuidade de atendimento.
Após a identificação das crianças, as suas mães foram contatadas via telefone, informadas sobre a pesquisa e convidadas a participar. Mediante o aceite, foi agendada a entrevista em seus domicílios. Ressalta-se que, para 18 das crianças identificadas, não foi possível o agendamento da entrevista por diversos motivos, sendo 06 devido a telefone inexistente ou pertencente a outras pessoas que não eram da família; 08 por mudança da região metropolitana de Belo Horizonte; 01 recusa no contato telefônico; 02 não atendimento no domicílio; e 01 falecimento da mãe resultando na mudança da criança da região metropolitana de Belo Horizonte.
Para a coleta de dados, optou-se pelo uso de entrevista semiestruturada composta das seguintes perguntas: para você, o seu filho precisa de cuidados especiais, comparado com as crianças da mesma idade? Por quê? Dê sua opinião em relação à contribuição que o seguimento (acompanhamento no ambulatório) tem ou não para a saúde de sua criança e explique o porquê. Quais as facilidades e dificuldades você encontra para manter o seguimento (o acompanhamento ambulatorial)? Fale um pouco sobre elas. Existe algum acontecimento que fez com que vocês interrompessem o seguimento ambulatorial da criança? Qual? Este roteiro foi previamente testado quanto ao atendimento aos objetivos do estudo, não necessitando de modificações. As entrevistas foram realizadas por uma das pesquisadoras, sempre no local e horário de escolha da participante.
As participantes foram informadas previamente quanto ao anonimato e o uso do gravador de voz. Ao término das entrevistas, as mães ouviram as gravações para a confirmação de que haviam se expressado como gostariam por meio de suas falas. Nenhuma das mães solicitou a exclusão ou modificação do seu discurso.
As entrevistas tiveram duração média de 19 min e 59 segundos e foram transcritas em até 48 horas após sua realização. As entrevistas foram posteriormente lidas pelas duas pesquisadoras e um pesquisador externo, a fim de certificar a adequada condução da entrevista, verificar a suficiência dos dados para atender aos objetivos e definir acerca da interrupção da coleta de dados.
A coleta de dados foi interrompida quando as pesquisadoras verificaram que as falas dos participantes se repetiam continuamente sem nenhuma nova informação a ser registrada, o que caracterizou a saturação dos dados. Após essa constatação, foram realizadas mais três entrevistas para confirmação de que os dados eram suficientes para responder ao objetivo do estudo. Ao final, o estudo se processou com 15 mães e 19 crianças.
Para a garantia do anonimato, após a transcrição, os nomes das mães foram substituídos pela letra M e seguida por um número que representa a sequência da realização da entrevista (Ex.: M3).
Após a coleta, os dados foram organizados e analisados utilizando-se a análise de conteúdo proposta por Hsieh e Shannon11. Para isto, a pesquisadora realizou a leitura das entrevistas com a identificação dos temas centrais. Estes temas foram agrupados por similaridade, constituindo-se as categorias e subcategorias quais sejam: A compreensão das mães acerca das necessidades de cuidados às crianças; Condições socioeconômicas e aspectos da vida cotidiana que interferem na manutenção do seguimento ambulatorial; e Aspectos relacionados aos serviços de seguimento e a descontinuidade do cuidado nos ambulatórios de seguimento (Quadro 1).
Quadro 1 Descrição das Categorias e temas construídos a partir dos dados empíricos
Categorias | Temas que compuseram as categorias |
---|---|
A compreensão das mães acerca das necessidades de cuidados às crianças | Entendimento de que os filhos não precisam de cuidados diferentes |
Incerteza quanto à alterações no desenvolvimento e necessidades de cuidados diferenciados | |
Reconhecimento da necessidade de cuidados com condições clínicas complexas | |
Apreciação da condição do filho, comparando-o com outras crianças de mesma idade | |
Condições socioeconômicas e aspectos da vida cotidiana que interferem na manutenção do seguimento ambulatorial | Ambulatório distante da residência |
Deficiência no transporte público e custo acima das condições financeiras da família | |
Ausência de apoio da rede familiar e social | |
Dificuldade de se ausentar do trabalho | |
Demandas da vida cotidiana | |
Condição de saúde materna | |
Hospitalizações das crianças | |
Aspectos relacionados aos serviços de seguimento e a descontinuidade do cuidado nos ambulatórios de seguimento | Indisponibilidade de horários para as consultas |
Necessidade de aguardar para atendimento junto a pacientes de outras clínicas | |
Mães não têm o entendimento sobre o atendimento oferecido | |
Atendimento com a participação de estudantes demora e fragmenta |
Fonte: quadro elaborado pelos próprios autores;
A pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, sob o Parecer 1.096.677.
Participaram do estudo 15 familiares responsáveis pelo cuidado. Quatro das mães participantes tinham filhos gemelares, totalizando 19 crianças de risco em descontinuidade do seguimento ambulatorial. Dentre as 15 participantes, 14 eram mães das crianças e uma era avó que havia assumido os cuidados ao lactente, por isso optou-se por referir às participantes como mães.
A média da idade materna foi de 31,4 anos (DP 10,02). Apenas 1 família dispunha de mais de um salário mínimo per capita. Sobre o estado civil, 10 mães viviam com o companheiro, sendo 8 casadas e 2 em união estável. Três das mães estavam solteiras e 02 eram viúvas.
Em relação à escolaridade, 8 mães possuíam 11 anos de estudo. Nesta pesquisa, as mães apresentaram uma média de ensino de 10 anos (DP 1,97). Este dado é maior que a média de anos estudados no Brasil (7,7 anos)12 e do estado de Minas Gerais (7,2 anos)13.
Das 19 crianças em descontinuidade do seguimento, 9 eram de origem do ambulatório de seguimento do hospital A, e 10, do hospital B. A média de duração da descontinuidade do seguimento até o momento da coleta de dados foi de 12,1 meses (DP de 4,65 meses). Em relação à idade gestacional de nascimento no ambulatório de seguimento do hospital A, 6 das crianças nasceram prematuras e no ambulatório de seguimento do hospital B todas as crianças das famílias entrevistadas nasceram prematuras. Em ambos ambulatórios, todas as crianças em descontinuidade do seguimento apresentaram baixo peso ao nascimento. As mães referiram que 11 crianças não apresentavam problemas de saúde, 6 tinham bronquite ou asma, 1 apresentava Síndrome de Moebius e 1 tinha hidrocefalia.
Apreende-se, por meio do discurso das mães, que elas possuem um entendimento de que seus filhos não precisam de cuidados diferentes daqueles oferecidos para as crianças de risco habitual, e, portanto, não necessitam do seguimento ambulatorial. Embora o risco de alterações no desenvolvimento tenha sido informado pelos profissionais, não foi eficaz para que as mães considerassem o seguimento como necessário aos seus filhos.
Igual ela [profissional de saúde] falou que elas demorariam mais para fazer as coisas por serem prematuras, mas pela idade delas eu acho assim, agora elas estão quase andando já, faz tudo assim que os meninos da idade delas estão fazendo, apesar de falarem que elas ficariam atrasadas, eu não acho que elas ficaram. Por isso que eu acho que elas não precisam [do acompanhamento] (M 16).
Das 19 crianças, 13 eram acompanhadas por profissionais do Centro de Saúde. Ao serem perguntadas se seus filhos apresentavam desenvolvimento esperado para a idade ou se eles apresentavam alguma necessidade de cuidado diferenciado, as mães não souberam responder com segurança. As participantes somente evidenciaram a necessidade de cuidados diferenciados nos casos em que as crianças possuíam condições clínicas mais complexas, alterações físicas e comprometimento do desenvolvimento que eram visíveis para elas.
Não, eu acho que não [precisa de cuidados diferenciados] porque eu tiro dúvida pelo da minha irmã (...). Tem também acompanhamento que eu faço com ele no posto. Os médicos me relatam isso. Falam que o peso, tamanho e o desenvolvimento dele está sendo de uma criança da idade dele (...) (M 09)
Só o G3 [precisa de cuidado especial] por ele ter hidrocefalia, agora o G4 não tem necessidade não. Ele [G4] é mais esperto do que meu outro menino de 4 anos, faz tudo, conversa demais, pula, sobe nas coisas, te xinga, ele coloca vídeo no youtube da galinha pintinha. Ele faz tudo que você imaginar, ele é demais (M 08).
Identificaram-se, nos discursos das participantes, aspectos que dificultavam a sua ida ao ambulatório de risco, como a distância do ambulatório de seguimento, a insuficiência do transporte público, as condições financeiras para o transporte, a ausência de apoio da rede familiar e social e a dificuldade de se ausentar do trabalho.
Em relação à distância dos ambulatórios de seguimento, verificou-se que as famílias residiam em média há 16,2 quilômetros de distância. As mães referem que além da distância do ambulatório ao domicílio, o tempo gasto no deslocamento é um dificultador para a manutenção do seguimento. Foi também referida a necessidade de utilizar mais de um ônibus para cada trecho e os recursos financeiros limitados para o pagamento das passagens.
A questão é que assim, eu moro aqui no Bairro pra pegar um ônibus pra lá eu teria que pegar uns três, quatro ônibus pra chegar no ambulatório, eu moro na divisa dos dois municípios, então aí complicado seria só o transporte mesmo (...). (M 10)
Outra dificuldade é a passagem, porque a passagem daqui pra lá é caro, nem toda vez a gente tem dinheiro pra isso, só dificuldade mesmo (M 03).
Adicionalmente às questões de transporte, M04 referiu também sobre a influencia da sua condição de saúde e a dificuldade para aceitar o nascimento da criança como aspectos que contribuíram para o não comparecimento às consultas.
Eu tinha que pegar um ônibus e eu não tava bem, igual eu te falei que eu dei a depressão pó-parto, quando eu tive ela eu não queria ter ela, eu não gostava dela sabe (...). Então eu não ligava muito para ela, questão de hospital estas coisas de acompanhar não ligava (...) (M 04)
A ausência do apoio familiar e social também tem influenciado na descontinuidade do seguimento ambulatorial, devido à falta de quem as auxiliem a levar as crianças aos atendimentos e dificuldade para se ausentarem mais vezes do trabalho.
É só difícil pra mim ir porque às vezes, igual eu marcava pra elas no mesmo dia, às vezes, eu não acho uma pessoa pra ir comigo entendeu (…) (M 16)
(...) às vezes, eles ligam e marca a consulta de uma e daí três dias pra outra às vezes, quatro dias, fica difícil porque eu trabalho, pra levar uma daí três dias leva a outra, aí até interfere na empresa, não me libera, fica meio complicado (...) (M 01)
A hospitalização das crianças também foi relatada como motivo da interrupção do seguimento.
O que atrapalhou na verdade foi essa questão mesmo de ter coincidido, a questão dele ter adoecido, de ter perdido a data porque ele ficou internado. (...) eu acho que atrapalhou foi, do hospital também não ter me dado um retorno assim de ir (...) (M 09)
Esta categoria foi construída a partir dos fragmentos dos discursos que abordavam os aspectos dos serviços que as mães identificaram como dificultadores para o comparecimento aos atendimentos. Ressalta-se que não se tem a intenção de uma avaliação do serviço, mas sim de identificar como aspectos na organização do serviço, práticas dos profissionais e infraestrutura podem interferir nas escolhas acerca da sua utilização. Portanto, optou-se por não especificar o ambulatório aos quais as mães se referiram.
Um aspecto referido pelas mães diz respeito à indisponibilidade de horários para os agendamentos, dificultando a marcação de consultas.
Assim, é porque a agenda do neuro é lotada, muito menino nossa. E ela é, são ótimos, mas é muita criança. (...) A terceira [consulta] você tem que tentar lá marcar, a neuro é difícil marcar (M 07).
Em um dos cenários, o fluxo de acesso ao prédio do ambulatório é um aspecto do serviço que gerava insatisfação. De acordo com 3 participantes, a entrada ocorre por meio de fila e as mães precisavam aguardar com a criança por muito tempo na entrada do edifício. Ademais, todas as crianças são agendadas para às 13h, dessa forma, depois que são autorizadas a entrar no serviço, as mães precisavam aguardar para serem atendidas em ordem de chegada.
(...) A gente tem que ficar naquela filona com sol, chuva, frio, seja o que for, lá atrás, até esperar a vez de subir o quarto andar. Isto é a única coisa ruím (...). Às vezes, você tá marcado pra 13h, 13:30h você tá lá embaixo esperando (...) (M 07)
Além dos aspectos referentes à espera pelo atendimento, o discurso de M08 expressa que não há reconhecimento do que é feito no ambulatório, como um atendimento necessário e especializado. Infere-se que não houve um compartilhamento com a mãe da avaliação do profissional e do significado das atividades desenvolvidas com a criança .
(...) eles ficam deixando o G3 brincando, entendeu? Coloca lá um tanto de brinquedinhos pra ele brincar. Então eu penso, se for pra ele chegar e fazer isso, lá em casa eu coloco ele no chão pra ele brincar, entendeu? É uma coisa que acho assim que eu posso fazer na minha casa, que vou lá, assim entre aspas à toa (...) (M 08)
Apreende-se do discurso das mães insatisfação com a atuação de estudantes, por considerarem que eles atrasam o atendimento e fragmentam a assistência, tornando o atendimento cansativo para a criança e para mãe.
Em relação ao pediatra eu não gosto não, porque não é sempre ela que atende, é, como que fala, é os estudantes e eles não sabem nada, pior que é assim eles não sabem nada dos meninos, tem que toda hora perguntar (...). Todo dia você tem que repetir a mesma coisa, todo mês. Aí cada hora é uma, você tem que ficar lá, a outra vai lá e lê tudo de novo. (...) é muito chato o atendimento em relação a isso (M 08).
Evidenciou-se um entendimento de M10 e M05 de que as crianças só precisariam retornar ao serviço caso houvesse alguma alteração. Segundo as participantes, esta foi a orientação recebida de profissionais, os quais recomendaram que se mantivessem na Unidade Básica de Saúde. Decorrente disto, sob a perspectiva destas mães, não houve descontinuidade do seguimento.
É, e ela [a fisioterapia] falou que com 6 meses eu voltaria se eu achasse necessidade, se ele tava bem, se ele não tivesse abrindo as mãozinhas, que até quatro meses ele tinha que tá abrindo as mãozinhas. Fui observando, e foi aonde eu observei e vi que ele tava com desenvolvimento normal aí eu não voltei (M 10).
Não, não teve [abandono do seguimento],[o acompanhamento] agora não é lá mais não no hospital, tá no posto, ela falou que quando eu observasse que tava tudo normal que não precisava mais ir (M 05).
Os discursos permitiram explorar a compreensão que as mães têm acerca das necessidades de saúde de seus filhos e dos aspectos que interferem na continuidade do seguimento em ambulatório especializado. Os dados possibilitaram apreender o que tem suportado as suas escolhas acerca do cuidado dos filhos, como os profissionais de saúde podem apoiá-las para decisões que propiciem o crescimento e desenvolvimento das crianças e também como os serviços podem ser organizados para facilitar a adesão ao seguimento.
O entendimento materno acerca do crescimento e desenvolvimento adequado e da possibilidade de alterações na condição de saúde das crianças nascidas prematuras se pautam na ausência de doença e no quanto seus filhos lhes parecem saudáveis14. Essa compreensão foi observada no discurso de M10, ao avaliar o bom estado geral do filho por sua capacidade de abrir ou não as mãozinhas até os seis meses, e no discurso de M05, que considera o filho “normal” e por isso sem necessidade do seguimento. Entretanto, a prematuridade influencia no desenvolvimento da criança ao longo do tempo e, embora exista risco de prejuízo no desenvolvimento, os potenciais atrasos são, algumas vezes, imperceptíveis para as mães15-16.
A percepção materna em relação à necessidade ou não do seguimento ambulatorial para seu filho é influenciada pela condição biológica e pelo contexto sociocultural que permeia a vida da família15. Nesse sentido, a cultura abarca toda uma diversidade de recursos comunitários, materiais, técnicos e cognitivos10,17, que influenciam no significado que a mãe atribui à necessidade ou não de cuidados específicos de saúde para seus filhos.
Outro fator que interfere na percepção materna em relação às necessidades de cuidados de seus filhos são as orientações realizadas pelos profissionais. No entanto, observa-se que a relação construída entre profissionais e mães não permitiu o compartilhamento de saberes e práticas para a população estudada. Embora os profissionais do ambulatório de seguimento possam ter informado quanto aos riscos de prejuízos no desenvolvimento de crianças nascidas prematuras e a importânca das intervenções desenvolvidas no serviço, as orientações não foram efetivas para o entendimento materno quanto à necessidade do seguimento, corroborando os achados de outros estudos17-18.
Ao não perceberem alterações visíveis no desenvolvimento de seus filhos e não compreenderem as ações desenvolvidas no ambulatório, as mães assumiram o papel de definidoras da ausência de necessidade do seguimento. Considera-se que os saberes e práticas precisam ser compartilhados entre profissionais e famílias, reconhecendo as suas diferenças e contribuições para o atendimento às necessidades das crianças19. Infere-se que essa dificuldade de compartilhamento dos saberes e práticas do profissional de saúde pode ter comprometido o entendimento das mães sobre a especificadade do atendimento ambulatorial. No relato das mães, essa incompreensão levou à substituição do acompanhamento nas Unidades Básicas de Saúde.
Uma pesquisa realizada com 31 profissionais da Atenção Primária, em Belo Horizonte, evidenciou que o seguimento do recém-nascido pré-termo ou de baixo peso aparenta ainda ser desconhecido para estes profissionais. As opiniões foram divergentes quando perguntados se determinada criança pré-termo necessitava de cuidados diferenciados ou não, e se poderiam ser comparados com um recém-nascido a termo18.
Os dados deste estudo permitem afirmar que as condições socioeconômicas e os aspectos da vida cotidiana da família também interferem na continuidade do seguimento em ambulatório especializado, como a condição de saúde materna, as dificuldades para deslocamento até o ambulatório e a hospitalização da criança.
Em relação ao deslocamento, as mães participantes desta investigação mencionaram a distância do domicílio ao serviço, o longo tempo dispendido, a insuficiência do sistema de transporte público, a limitação financeira para custear as passagens, a fragilidade da rede de apoio e a impossibilidade de ausentar do trabalho.
Corroborando com os achados da presente pesquisa, em relação aos aspectos contribuintes para a descontinuidade do seguimento ambulatorial, a distância também tem sido mencionada em outros estudos6,18. No Canadá, foi referida uma média de 48 quilômetros de distância como fator preditivo para a descontinuidade do seguimento20. Em ambos os estudos, as realidades de transporte são diferentes das encontradas no Brasil, exigindo cautela na utilização destes resultados, especialmente no estabelecimento de parâmetros de distância.
No contexto deste estudo, a distância pode ter sido percebida pelas mães com maior relevância em razão do tempo que se gasta no deslocamento até o ambulatório de seguimento por meio de transporte público. Isto nos indica a necessidade de que a distância não seja tomada de forma isolada para a discussão do deslocamento destas mulheres com suas crianças. Estudo sobre acessibilidade e mobilidade espaciais, realizado na região metropolitana de Belo Horizonte indica que as pessoas gastam, em média, 1,12h para chegarem a seus destinos21, o que corrobora com a inferência realizada.
Identificaram-se, nos discursos das participantes, que os recursos financeiros limitados podem ser dificultadores para o comparecimento ao ambulatório especializado22. Ressalta-se que este fator combinado com um sistema de transporte público deficiente e longas distâncias do serviço de seguimento, pode se constituir em barreiras adicionais para o não seguimento. Achados de estudos nacionais e internacionais indicaram que as famílias com menor poder aquisitivo tendem a interromper o acompanhamento de suas crianças6,18,23-24 .
A fragilidade no apoio social foi observada na fala de M16, onde foi possível identificar sua dificuldade de comparecer às consultas por falta de acompanhante. No presente estudo, 5 das participantes não possuíam companheiro. Esta é uma informação relevante, devido à possibilidade de maior dificuldade na criação dos filhos em situações em que há ausência paterna25, podendo existir maior sobrecarga pela demanda de cuidados diferenciados nas situações nas quais as crianças são de risco24. Estes achados indicam a importância do planejamento dos atendimentos para que sejam realizados considerando as demais atividades cotidianas das mães e as possibilidades de apoio que possuem para assegurar o seguimento de seus filhos26.
Além da fragilidade no apoio social, a condição de saúde materna emerge como fator dificultador para o seguimento ambulatorial, como é possivel observar no discurso de M04. Indo de encontro com este achado, uma pesquisa realizada no Irã evidenciou que 42% das mães de recém-nascidos egressos da Unidade de Terapia Intensiva Neonatal relataram, em algum grau, sintomas depressivos pós-parto. A depressão materna esteve associada à baixa adesão aos programas de seguimento quando comparados com mães que não reportaram sintomatologia depressiva22.
Em relação à hospitalização da criança, demonstra-se falha na comunicação entre os serviços de saúde na fala de M09, ao relatar que a reinternação do filho não foi informada sobre a continuidade do seguimento ambulatorial. Segundo o Ministério da Saúde, as reinternações hospitalares são situações em que os retornos devem ser reagendados, pois é fundamental monitorar estreitamente o paciente que utiliza com maior frequência os serviços de saúde, com destaque aos serviços de urgência e emergência27.
Aspectos relacionados à desarticulação das redes de serviço, falta de orientação dos profissionais no momento da alta hospitalar18,28, condições socioeconômicas e fragilidade na rede de apoio para o cuidado às crianças24 têm sido evidenciados como fatores que predispõe à descontinuidade do seguimento da criança egressa da UTIN.
A referência e contra-referência representa uma forma de organização dos serviços de saúde que possibilita o acompanhamento dos usuários pelos profissionais e favorece o seu acesso a todos os níveis assistenciais existentes. É importante que Atenção Primária e Secundária se integrem e operem de modo articulado, em um desenho organizacional que contribua para a produção de um cuidado integral e em compasso com a dinâmica das situações vividas pelas crianças29.
Quanto aos aspectos da organização do serviço de seguimento que interferem na continuidade do seguimento em ambulatório especializado, destacaram-se a indisponibilidade de horário e a dificuldade para agendamento, o atendimento ser realizado por ordem de chegada sem horário definido e a insatisfação com o atendimento por estudante, que fragmenta e atrasa.
A restrição de horários para a marcação de consultas, segundo as mães, dificulta o agendamento e predispõe a descontinuidade. Em outro estudo realizado em Belo Horizonte, a marcação de consultas mostrou-se um fator determinante para o acesso ou não ao serviço. Esta dificuldade está relacionada à falta de especialistas e ao desconhecimento de uma regulação do intervalo de tempo entre as marcações de consulta18.
Também foi referida como um aspecto dificultador a organização da chegada e entrada no serviço de seguimento do Hospital B para atendimento, exemplificado no discurso de M07 e M08, como um momento de preocupação devido à exposição das crianças ao tempo e pela espera prolongada. Autores reforçam que a maneira como os serviços se organizam podem oferecer barreiras a um atendimento integral18,30.
Deve-se atentar à singularidade das famílias que são atendidas, no intuito de que sejam repensadas práticas que, de fato, promovam a integralidade e continuidade do cuidado, a fim de definir periodicidade e prioridades nos atendimentos. Para isso, é fundamental o trabalho em equipe, com papéis bem estabelecidos e definidos de cada membro para a organização do seguimento ambulatorial e o recebimento dos usuários nos serviços. Estudo com profissionais da Atenção Primária no município de Belo Horizonte indicou que a partir do vínculo estabelecido entre profissionais e a família, foi possível compreender as necessidades da criança, estabelecer prioridades para o agendamento e programar os compromissos ambulatoriais posteriores31.
Outro aspecto relatado refere-se ao fato de as crianças serem atendidas por estudantes que, segundo as mães, além de despender mais tempo, a cada consulta é preciso repetir as mesmas informações. Faz parte do processo de ensino de vivência dos alunos nos serviços de saúde por meio dos atendimentos aos usuários, mas é importante que ele seja desenvolvido de maneira a não comprometer o cuidado a ser realizado26.
Os achados evidenciam a complexidade de se investigar os diversos aspectos que predispõem à descontinuidade. Ressalta-se que, embora o estudo em questão apresente potencial contribuição para o entendimento da descontinuidade do seguimento ambulatorial das crianças de risco, os resultados aqui discutidos emergiram da experiência singular das mães de crianças egressas de UTIN em um contexto local. Sugere-se o desenvolvimento de pesquisas com outros desenhos metodológicos que permitam maior conhecimento acerca da descontinuidade do seguimento ambulatorial, como os longitudinais.
Uma das fortalezas deste estudo é o uso da abordagem qualitativa, incluindo participantes atendidas em dois diferentes serviços de seguimento. Outro aspecto foi a possibilidade de investigação com mães que se encontravam ausentes aos atendimentos do seguimento ambulatorial, que foi metodologicamente desafiador. Uma limitaçao refere-se ao fato de ter sido realizado com mulheres residentes em um único município, apresentando limites para a transferibilidade dos achados, embora possam ser utilizados em populações com características e contextos semelhantes.
Aspectos relacionados à percepção das mães sobre a necessidade do seguimento ambulatorial, à organização do serviço, à condição socioeconômica da família e ao apoio social percebido pelas mães estiveram relacionados à falta de adesão das famílias de recém-nascidos de risco ao seguimento ambulatorial.
Reconhece-se que a mudança da realidade da descontinuidade do seguimento ambulatorial demanda estratégias intersetoriais em médio e longo prazo, envolvendo tanto os serviços de saúde que compõem a rede de atenção quanto a outros setores, como assistência social e transporte. Os resultados indicam a necessidade de capacitação dos profissionais, a fim de que eles possam ofertar informações claras aos cuidadores acerca das necessidades de saúde das crianças para que eles entendam os benefícios do seguimento e os riscos da descontinuidade. Além disso, é necessária a construção do vínculo profissional-família, a fim de considerar a individualidade de cada família e atender às suas necessidades de saúde.
Propõem-se intervenções, especialmente aquelas relacionadas à organização do serviço, como a reorganização do fluxo para os atendimentos e a vigilância quanto aos fatores de risco para o não seguimento. Deve-se abordar precocemente as famílias e compartilhar informações, oferecendo novas perspectivas que orientem as suas decisões quanto ao seguimento ambulatorial.