versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.1 São Paulo jul. 2019 Epub 08-Ago-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190126
A cardiomiopatia hipertrófica (CMH) é a doença cardiovascular monogênica mais comum em nosso meio, com prevalência de cerca de 1 para 500 pessoas. A herança autossômica dominante é a mais comumente vista. Mais de 20 genes já foram relatados associados à doença, e a maioria deles codificam proteínas sarcoméricas.1,2
Já a Doença de Fabry (DF) uma doença de armazenamento lisossomal, é causada por uma deficiência de a-galactosidase A devido à mutação no gene GLA, com herança ligada ao X. Causa alterações em múltiplos órgãos, entre eles o coração, mimetizando CMH.3
Em uma publicação realizada por Favalli et al.,4 de um estudo prospectivo de triagem da DF que durou 10 anos, a hipertrofia com espessura da parede > 13 mm foi o achado mais comum da doença, ocorrendo em cerca de metade dos indivíduos portadores de mutações no gene GLA, seguido de acroparestesia e insuficiência renal. Um melhor conhecimento da prevalência desta doença vem sendo alcançado a medida que o rastreamento vem sendo feito em diversas populações. Estudo chinês publicado na década passada aponta para uma prevalência de 1:1600 homens.5 Algumas mutações podem causar a doença com manifestações limitadas ao coração, e isto já foi reportada em experiências anteriores.6,7 O padrão de hipertrofia pode ser útil para distinguir a DF e a CMH, mas não é uma tarefa fácil. Na CMH, a distribuição da hipertrofia ventricular esquerda é caracteristicamente assimétrica e heterogênea, com vários fenótipos possíveis. Na DF, a hipertrofia é tipicamente concêntrica sem obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo, sendo o afilamento da porção basal da parede posterior do ventrículo esquerdo uma característica do estágio final da doença.
Na edição atual dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Chaves-Markman et al.,8 encontraram mutações no gene GLA em 6,7% de uma coorte de 60 pacientes com CMH e ainda relataram uma nova variante, c.967C>A (p.Pro323Thr), uma “missense”. Esta mutação nunca foi descrita anteriormente, mostrando a originalidade deste trabalho.8 Neste grupo de pacientes, duas outras variantes foram descritas: c.937G>T (p.Asp313Tyr) e c.352C>T (p.Arg118Cys). Curiosamente, três dos quatro pacientes que tinham mutações no gene GLA eram do sexo feminino, fenômeno também encontrado no artigo publicado por Csányi B et al.,7 quando descreveram a variante Ile239Met.7 Este achado é algo pouco esperado em pacientes com DF, devido a inativação do cromossomo X em mulheres heterozigotas, resultando em sintomas mais leves.9
A questão principal deste artigo a ser discutida é se a nova mutação é realmente a responsável pela hipertrofia ventricular esquerda. A detecção de toda variante missense rara representa um desafio para a conclusão de causalidade em qualquer condição genética, e a DF não é diferente. Neste sentido, como somente a análise do gene GLA foi realizada, não se pode afastar a possibilidade de que outra variante patogênica em algum outro gene causador de CMH possa estar presente na paciente onde foi detectada a variante c.967C>A (p.Pro323Thr), como foi corretamente destacada nas limitações do estudo. De qualquer forma é um achado bastante relevante, pois a alteração genética encontra-se em uma área altamente conservada da proteína e isso tem impacto na definição de patogenicidade de uma variante nova. Ressalte-se que a paciente apresentou entre os sintomas extracardíacos um ataque isquêmico transitório, sem documentação de fibrilação atrial, o que poderia estar associada à DF.
Como foi destacado pela autora, o estudo histopatológico é importante para o diagnóstico da DF, e pode orientar os grupos que estão descobrindo novas variantes de significado incerto no gene GLA a definir a sua real importância, especialmente nos pacientes que apresentam a forma cardíaca isolada.
Todo método diagnóstico apresenta limitações, e a identificação de uma condição complexa como a DF necessitará cada vez mais de uma abordagem múltipla integrando várias modalidades (genética, bioquímica, imagem e histologia), que a cada experiência vão gerar mais evidências. Certamente, o estudo conduzido por Chaves-Markman et al. representa um passo importante no rastreamento genético e no conhecimento da associação entre a CMH e a DF na população brasileira.