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Desempenho de linguagem receptiva e expressiva em crianças com e sem Fissura Labiopalatina

Desempenho de linguagem receptiva e expressiva em crianças com e sem Fissura Labiopalatina

Autores:

Dionísia Aparecida Cusin Lamônica,
Mariana Jales Felix da Silva-Mori,
Camila da Costa Ribeiro,
Luciana Paula Maximino

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.28 no.4 São Paulo jul./ago. 2016 Epub 18-Ago-2016

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20162015198

INTRODUÇÃO

Crianças com fissura labiopalatina (FLP), completa ou parcial, são de risco para desenvolverem alterações no desenvolvimento da linguagem, embora resultados descritos na literatura sejam conflitantes(1-3). Este tema tem recebido pouca atenção da literatura(4).

Uma série de estudos, ao longo dos últimos vinte anos, demonstrou que as crianças com FLP apresentam grande variabilidade de deficiências de comunicação(5) e muitos têm como foco as questões relacionadas à fala(5-8). Com relação ao desempenho em linguagem, são descritas diferenças nas habilidades receptivas e expressivas entre crianças com FLP quando comparadas às de crianças sem FLP e com desenvolvimento típico, com maior predisposição para atraso na aquisição das primeiras palavras, na produção de frases, compreensão da linguagem, memória e raciocínio(4,9-12).

Estudos apresentaram(13,14) que as alterações de comunicação ocorrem principalmente nas habilidades expressivas quando a FLP não é reparada em idades adequadas, que há dependência da técnica cirúrgica utilizada e quando há a presença de hipernasalidade e dificuldades para articulação dos sons(2,15).

Na linguagem receptiva, os estudos sugerem que a presença de alterações auditivas precoce poderia explicar as dificuldades no desenvolvimento da linguagem de crianças com FLP(14,15). Alguns estudos relataram a relação entre perda auditiva associada com otite média com efusão na redução de escores de linguagem(16,17).

A detecção e o início precoce do tratamento dos distúrbios da linguagem em crianças com FLP são extremamente importantes, a fim de evitar futuros problemas emocionais, de socialização, aprendizagem escolar e realização pessoal(13,18-20).

Nesta perspectiva, a análise do desempenho das crianças em habilidades comunicativas e linguísticas deve ser verificada à luz dos fatores interferentes no processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem.

Diante do exposto, este estudo teve como objetivo comparar o desempenho nas habilidades de linguagem receptiva e expressiva de crianças com fissura labiopalatina com crianças sem fissura labiopalatina e com desenvolvimento típico, de idade cronológica entre 12 e 36 meses.

MÉTODO

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Reabilitação em Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (Protocolo nº 122/2007-CEP). Todos os critérios éticos foram cumpridos conforme normativas do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), incluindo a assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelo familiar responsável pela criança.

Trata-se de estudo transversal com amostra constituída por 60 crianças, de idade cronológica entre 12 e 36 meses, dividida em dois grupos: grupo experimental, composto por 30 crianças com FLP (GFLP); e grupo comparativo (GC): composto por 30 crianças sem FLP, com desenvolvimento típico, pareados de acordo com gênero, idade cronológica e nível socioeconômico(21).

Os seguintes critérios de inclusão foram considerados para selecionar os participantes:

GFLP: Apresentar FLP, sem outras malformações associadas ou síndromes genéticas; ter realizado a queiloplastia e/ou palatoplastia nas idades recomendadas por protocolo internacional(22,23) utilizado no Hospital de Reabilitação em Anomalias Craniofaciais; ter idade cronológica entre 12 e 36 meses de idade; não ter nascido prematuro e de baixo peso; não apresentar perda auditiva neurossensorial; não apresentar deficiência visual (baixa visão).

GC: Não apresentar FLP, ter histórico de desenvolvimento neuropsicomotor típico; não ter nascido prematuro e de baixo peso, não apresentar perda auditiva neurossensorial; não apresentar deficiência visual (baixa visão) e estar pareado quanto à idade cronológica (em meses), gênero e nível socioeconômico.

Procedimentos

Os procedimentos consistiram de: análise do prontuário para coletar informações, tais como, época dos procedimentos cirúrgicos, internações hospitalares, resultados das avaliações auditivas e visuais; anamnese realizada com o representante legal, compreendendo informações sobre o desenvolvimento da criança; Aplicação do Critério de Classificação Econômica Brasil-CCEB(21), que considera os bens da família (bens materiais) e o nível de escolaridade do membro responsável pela família e da Aplicação da Early Language Milestone Scale – ELMS(24).

A ELMS verifica o desempenho de crianças quanto às Funções: Auditiva Receptiva (AR), Auditiva Expressiva (EA) e Visual (V). A faixa etária considerada na escala varia de zero a 36 meses. Para iniciar a aplicação da ELMS, uma linha vertical deve ser traçada no protocolo de resposta, exatamente na idade cronológica da criança (em meses). Todos os itens que cruzam esta linha vertical devem ser avaliados. O resultado final é interpretado segundo critérios do manual deste instrumento, encontrando a base e o teto. Para calcular a base, retrocede-se aos itens anteriores até que se consigam três itens consecutivos de sucesso em cada função. O mesmo é realizado para determinar o teto, porém são testados itens posteriores à idade cronológica até que a criança falhe em três itens consecutivos. O item mais alto que a criança passar é considerado o teto. Os resultados foram calculados em meses para análise estatística posterior, conforme manual do instrumento. A função visual não será apresentada neste estudo, uma vez que este instrumento verifica a função visual até a faixa etária de 18 meses.

Caracterização da casuística

O GFLP e o GC foram compostos de 60 crianças com idade cronológica entre 12 e 36 meses (média de 24,3 meses), 70% do gênero masculino e 30% do feminino. Quanto à classificação socioeconômica dos grupos GFLP e GC, 23,3% pertenciam à classe baixa inferior; 66,7%, à classe baixa superior; e 10%, à classe média baixa.

Em relação ao tipo de fissura, 63,34% das crianças apresentavam fissura transforame incisivo unilateral; 16,66%, transforame incisivo bilateral; e 20%, pós-forame incisivo.

Todos os participantes do GFLP foram submetidos a procedimentos cirúrgicos em idades semelhantes, cumprindo o protocolo internacional seguido pelo hospital, ou seja, queiloplastia aos três meses de idade; palatoplastia primária aos 12 meses de idade, com uma variação de dois meses(23,24). Na análise do prontuário, verificou-se que 40% do grupo GFLP apresentou histórico de otites.

Cabe ressaltar que todos os indivíduos GFLP e suas famílias participam de programas de intervenção fonoaudiológica e as famílias recebem orientação frequente para estimular a criança em atividades de vida diária. Todos os participantes do GC estavam matriculados em escolas ou creches. No grupo GFLP, 50% frequentavam escolas ou creches.

Análise estatística

A análise estatística foi realizada com a aplicação do teste de Mann-Whitney, com o nível de significância p <0,05.

RESULTADOS

A Tabela 1 apresenta a comparação entre o GFLP e o GC quanto ao desempenho nas funções Auditiva Receptiva e Auditiva Expressiva por meio da apresentação da média, desvio padrão e aplicação do teste estatístico de Mann-Whitney (nível de significância p <0,05).

Tabela 1 Comparação entre o GFLP e GC quanto às funções auditiva expressiva e auditiva receptiva por meio do teste de Mann-Whitney Test 

Variáveis GFLP GC GFLP GC Valor de T GFLP GC Valor de p
Média Mediana Desvio padrão.
AE 22,56 26,83 22,5 27 2,63 6,27 6,28 0,005*
AR 25,46 28,23 26 28 1,77 5,64 6,42 0,027*

*Valor de significância p<0,05

Legenda: AE: Auditiva Expressiva; AR: Auditiva Receptiva; Teste de Mann-Whitney

DISCUSSÃO

O desenvolvimento da linguagem é multifatorial e é necessário verificar os fatores que interferem neste processo, principalmente em populações consideradas de risco para alterações de competências linguísticas e comunicativas, como em indivíduos com FLP. A literatura(1-4,7,10,20) apresenta resultados conflitantes quanto ao desenvolvimento linguístico, em crianças com FLP, referentes a ocorrência ou não de problemas receptivos, especificamente.

Neste estudo, houve diferença estatisticamente significante na comparação entre os grupos quanto à função auditiva receptiva. Um dos aspectos frequentemente abordados quanto às habilidades receptivas em indivíduos com FPL refere-se à presença de comprometimentos auditivos, como no caso das otites de repetição(14-16), que podem interferir na recepção dos estímulos auditivos e na compreensão de mensagens, bem como trazer consequências relevantes para a aquisição das habilidades linguísticas. Nesta casuística, 40% apresentavam história de episódios de otite. Cabe ressaltar que o processo receptivo envolve outras variáveis. Habilidades receptivas envolvem o processamento de informações por meio do desenvolvimento de processos perceptivos, tais como a atenção, concentração, memória, entre outros. A atenção auditiva é fundamental para o desenvolvimento de habilidades receptivas; no entanto, estudos sobre o processo de atenção na população com fissura labiopalatina são recentes e pouco explorados na literatura específica(16).

Outras considerações são necessárias. Os episódios de otites são temporários e, apesar do baixo nível socioeconômico da casuística, as crianças participam efetivamente de programas de intervenção e programas de monitoramento por meio de orientações às famílias, o que pode minimizar os efeitos deletérios destes episódios em longo prazo.

Para desenvolver a recepção auditiva, um ambiente rico em estímulos deve ser considerado, favorecendo a criança ser capaz de adquirir repertório por meio da experiência de vida, na participação de eventos interativos e dialógicos. Os participantes deste estudo com FLP são submetidos a procedimentos terapêuticos desde a tenra infância, o que pode influenciar positivamente no seu desenvolvimento.

Em relação às habilidades expressivas, houve diferença estatisticamente significante na comparação entre os grupos. As habilidades expressivas são particularmente prejudicadas em crianças com FLP e estão relacionadas às alterações de articulação e de ressonância(8,15,19). Estudos mostraram que as alterações da articulação e da hipernasalidade ocorrem como resultado das malformações anatômicas, mas também podem ser observadas após a criança ter sido submetida a procedimentos cirúrgicos corretivos (queiloplastia e/ou palatoplastia)(13,14). As habilidades expressivas estão relacionadas a fatores intrínsecos (condições anatômicas, genética, maturação e motivação) e a fatores extrínsecos (influências do ambiente, técnica cirúrgica utilizada na reconstrução da FLP, dentre outros)(2,4,9,15,18,23,24).

Aquisição da linguagem é parte de uma série de mudanças no comportamento da criança, marcada pelo surgimento de comportamentos simbólicos e mudanças correlacionadas na maneira de entender e interagir com o mundo, que têm um papel ativo na construção do conhecimento(18). A criança adquire conhecimento por meio da exploração do ambiente, manipulação de objetos, a repetição de ações, o domínio do próprio controle do esquema corporal e relações estabelecidas em situações vividas.

Um dos aspectos relevantes que devem ser considerados no desenvolvimento da linguagem de uma criança com FLP é o ambiental. Se a família expõe a criança a ambientes variados e favorece a interação em diferentes contextos comunicativos, a criança será capaz de adquirir o conhecimento da língua com mais facilidade(6). No entanto, não se pode negar o impacto da FLP sobre a forma como a família trata esta criança. Um estudo(25) apresentou que familiares de crianças com problemas de saúde, doenças crônicas ou malformações congênitas tendem a ser mais permissivos e superprotetores. Os autores apresentaram que, no Brasil, os pais e os membros da família tendem a adotar atitudes mais protecionistas, diferentes de outras culturas que enfatizam valores de independência e autonomia nas relações familiares(25).

É importante destacar que estudos envolvendo o desenvolvimento da linguagem devem valorizar as questões culturais, pois estas podem representar diferenças na quantificação dessa variável. Além de superproteção, períodos de internações hospitalares e da redução das oportunidades para a criança conviver em diferentes ambientes sociais, também podem contribuir de forma negativa para o desenvolvimento comunicativo da criança com FLP. Nesta casuística, 50% das crianças não estavam inseridas em ambiente escolar.

Este estudo utilizou um procedimento de triagem para verificar as habilidades receptivas e expressivas de crianças com FLP. Este instrumento permite o controle da criança nas reavaliações periódicas, que, somadas aos procedimentos de intervenção e às orientações familiares frequentes, favorecem o monitoramento longitudinal do desempenho das crianças. A aplicação periódica do mesmo instrumento permite verificar o desempenho da criança no decorrer do tempo e favorece que a equipe de profissionais possa avaliar a eficácia do planejamento terapêutico quanto a estas habilidades. É fundamental o acompanhamento longitudinal destas crianças quanto ao desenvolvimento da linguagem.

CONCLUSÃO

O grupo de crianças com fissura labiopalatina apresentou desempenho inferior, estatisticamente significante, nas habilidades de linguagem receptiva e expressiva quando comparado com crianças sem fissura labiopalatina e com desenvolvimento típico, de idade cronológica entre 12 e 36 meses.

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