versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.3 São Paulo jul./set. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160054
Transplante renal é o tratamento de escolha para muitas doenças renais em estágio terminal, que normalmente exigiriam diálise e terapia renal substitutiva.1 Uma das principais ameaças à sobrevivência do enxerto é infecção causada pelo poliomavírus BK (BKV). A prevalência de reativação clinicamente significativa de BKV após o transplante renal varia, dependendo do estudo, entre 1 e 10%, e a incidência de perda de enxerto devido a BKV varia desde valores baixos como 10% até mais de 80% nos pacientes com infecção clinicamente significativa por BKV.2 Uma rápida e sensível detecção de infecção por BKV, seja na urina ou plasma, pode levar ao tratamento precoce, que é crítico para prevenir dano renal irreversível e perda do órgão.
O diagnóstico de nefropatia por BKV requer biópsia do enxerto;3 no entanto, pode ser tarde demais para reverter o dano. Estudos têm demonstrado que as alterações citológicas (células decoy) e o DNA de poliomavírus são detectados na urina, várias semanas antes de ocorrerem os danos renais.2,4 As células decoy podem ser observadas no sedimento urinário como o resultado de células renais e uroteliais infectadas por BKV.5 Apesar de ser um exame relativamente barato, a detecção de células decoy requer perícia considerável e, mesmo assim, não são específicas para a infecção por BKV.6,7 A detecção e quantificação do DNA do BKV podem ser realizadas utilizando-se a reação em cadeia da polimerase em tempo real (qPCR). Embora seja comparativamente mais dispendioso, em comparação com a citopatologia da urina, a qPCR do BKV tem o potencial de ser um exame mais sensível, proporcionar melhor linearidade e independência em comparação com a experiência pessoal do examinador na obtenção de resultados precisos.
Nesta revisão sistemática, buscamos estudos que compararam diretamente o desempenho analítico da citopatologia da urina e da qPCR, para prever o diagnóstico de nefropatia associada ao BKV, como comprovado por exame histopatológico.
Para a inclusão nesta revisão, selecionamos os estudos envolvendo pacientes que foram submetidos a transplante renal não associado ao recebimento de outros órgãos transplantados.
Incluímos estudos de coorte, prevalência e transversais. Estudos envolvendo 10 ou menos pacientes não foram incluídos.
Somente pacientes adultos (≥ 18 anos de idade) transplantados renais foram consideradas para o estudo, independentemente do gênero, raça ou nacionalidade.
Uma vez que biópsia é o exame dito padrão ouro para nefropatia por BKV, foram incluídos apenas estudos que compararam as biópsias com citologia urinária e/ou qPCR.
A medida de desfecho foi a nefropatia causada por BKV, como foi confirmado por biópsia renal. Informações adicionais como carga viral de BKV no plasma e na urina; presença de células decoy na citopatologia urinária; a utilização de coloração com anticorpos SV40 no tecido biopsiado foi investigada e associada ao resultado.
Buscamos artigos no banco de dados eletrônicos PubMed usando a estratégia demonstrada na Tabela 1. A busca foi realizada no dia 14 de fevereiro de 2014, e incluiu todos os documentos encontrados no banco de dados.
Tabela 1 Estratégia de busca utilizada no estudo (PubMed)
(humanos) |
---|
E |
(((transplante) OU (sobrevida do enxerto [mh]) OU (“sobrevida do enxerto”) OU (rejeição do enxerto [mh]) OU (“rejeição |
do enxerto”)) |
E |
((rim[mh]) Ou (rim) OR (“perda de aloenxerto”) OU (doença renal [mh]) OU (“doença renal”))) |
E |
((técnicas moleculares de diagnóstico [mh]) OU (“técnicas moleculares de diagnóstico”) OU (biologia molecular [mh]) |
OU (“biologia molecular”) OU (“biologia molecular”) OU (PCR) OU (“reação em cadeia da polimerase”) OU (“reação |
em cadeia da polimerase”) OU (reação em cadeia da polimerase[mh) OU (técnicas citológicas[mh]) OU (“técnicas |
citológicas”) OU (“células decoy”) OU (papanicolaou) OU (biópsia) OU (viremia) OU (viruria) OU (“carga viral”)) |
E |
((“vírusBK”) OU (infecção poliomavirus [mh]) OU (“infecção poliomavirus”) OU (poliomavirus) OU (“nefropatia por BK”)) |
Trabalhos que não foram escritos em Inglês e/ou estudos que não foram realizados em seres humanos foram excluídos. Uma vez que este estudo teve como objetivo a comparação de exames de diagnóstico, foram excluídos os artigos de revisão, relatos de casos, estudos envolvendo pacientes com menos de 18 anos de idade, estudos de pacientes submetidos a outros procedimentos de transplante (mesmo quando combinados ao renal), estudos de intervenção medicamentosa, estudos em que não foram feitas biópsias para confirmar a nefropatia e estudos que não compararam biópsias com, pelo menos, um dos exames em estudo. Foram feitas tentativas de contato com os autores correspondentes quando os artigos não estavam disponíveis no Pubmed ou quando foi necessária informação adicional. Nas situações em que a resposta não foi recebida, excluímos os respectivos artigos.
O fluxograma na Figura 1 mostra o número total de artigos triados e número de manuscritos que preencheram os critérios de inclusão. Dados adicionais foram extraídos a partir destes estudos.
O estudo foi aprovado pelo Conselho de Revisão Institucional (números de protocolo 3531/11 e 915/12).
A busca sistemática inicialmente identificou 707 potenciais artigos. No entanto, somente um total de 12 artigos foram incluídos nas análises finais. Um total de 1.694 pacientes transplantados renais foram incluídos nesta revisão (Tabela 2). Usando biópsia como padrão ouro, houve 115 casos (6,8%) de possível nefropatia sem observação do BKV, e 57 casos (3,4%) de nefropatia associada ao poliomavírus (PVAN). O intervalo de sensibilidade, especificidade, VPP (valor preditivo positivo (VPP)) e PVN (valor preditivo negativo (VPN)) usando a qPCR como teste não-invasivo para detectar e prever PVAN no plasma foi de 60-100%; 33-100% ; 7-65% e 72-100%, respectivamente (Tabela 3). O intervalo de carga viral sérica à época do diagnóstico foi de 2,7-7 log. O limiar de ≥ 3.7 log para PVAN teve especificidade de 91% e valor previsto positivo (VPP), de 29%, enquanto que > 4,2 log aumentou a especificidade para 96% e VPP para 50%. Sensibilidade e VPN foram de 100% em ambos os casos.8 Naqueles estudos nos quais foram realizados testes de citologia (n = 506 pacientes), as células decoy foram encontradas em 30,6% (n = 155) dos pacientes. Na comparação com a qPCR, as células decoy apresentaram melhor intervalo de VPN (97-100%), enquanto a sensibilidade, especificidade e VPP foram reduzidos (Tabela 4). Em um estudo, a replicação do BKV indicado pela presença de células decoy na urina, viremia BKV (qPCR), e PVAN (histopatologia) ocorreram em 29%, 13% e 6%, respectivamente; e a mediana do tempo para a detecção foi de 3,7 meses, 5,4 meses e 6,5 meses após o transplante, respectivamente.2 Em todos os estudos, o intervalo de tempo para a detecção de viruria, células decoy e viremia foram de 0,03-12 meses; 0,5-16,1 meses e 0,9-25 meses após o transplante, respectivamente. A detecção precoce (dia 5) de viruria por BKV pode ser capaz de prever a ocorrência de viremia por BKV e nefropatia.9 Além disso, foi demonstrado que a presença de duas ou mais amostras de urina positivas consecutivamente representa uma ferramenta útil para prever viremia por BKV (sensibilidade de 100%; especificidade de 94%; valores preditivos positivos e negativos de 50% e 100%, respectivamente).10 Foi demonstrado que 20% dos pacientes se tornaram virêmicos quando cópias de BKV na urina chegaram a 7 log/ml - uma percentagem que aumentou para 33%, 50 % e 100% a 8 log, 9 log e log ≥ 10, respectivamente.11 Tal associação não foi demonstrada para células decoy.
Tabela 2 Estudos prospectivos que compararam a qPCR, citologia urinária e a biópsia renal no diagnóstico de PVAN nos receptores de transplante de rim
Autor | n | Células decoy a | Viremia (n) | Carga Viral (plasma) | Suspeita de PVAN(n)b | PVAN + (n) |
---|---|---|---|---|---|---|
Hirsch et al. 2 | 78 | 23 | 10 | 4,4 - 7 log | 5 | 5 |
Pang et al. 11 | 183 | NA | 44 | Mediana 2,84 (0-5,86) | 0 | 8 |
Thamboo et al. 28 | 97 | 15 | 4 | 3,3 - 5,4 log | 7 | 3 |
Viscount et al. 8 | 204 | 26 | 16 | > 3,7 log | 12 | 4 |
Almerás et al.24 | 123 | NA | 13 | 2,7 - 5,6 log | 11 | 3 |
Babel et al. 10 | 233 | NA | 16 | Média 5,9 (intervalo 4,3-7,5)c | 10 | 6 |
Helanterä et al. 22 | 68 | NA | 0 | NA | 5 | 0 |
Girmanova et al.29 | 120 | NA | 6 | > 4,5 log | 3 | 3 |
Pollara et al. 16 | 75 | 39 | 26 | 2,8 - 6,5 log | 19 | 7 |
Saundh et al. 9 | 112 | NA | 12 | Média 5,5 log(intervalo, 3,6 - 6,5) | 10 | 2 |
Knight et al. 21 | 349 | NA | 57 | 5,7 log (DP ± 5,9) | 17 | 15 |
Menter et al. 23 | 52 | 52 | 17 | > 7 log | 16 | 1 |
anúmero de pacientes diagnosticados com células decoy à citopatologia;
bNúmero de pacientes com diagnóstico de nefropatia mas sem visualização de BKV por SV40 ou características de alterações virais;
cmédia de pico de carga viral; NA: Não aplicável; PVAN: nefropatia associada aPolyomavirus; DP: desvio-padrão.
Tabela 3 Desempenho da viremia por BKV detectada pela qPCR na predição de PVAN
Autor | Alvo molecular | Primer ou probe | Sequência (5'-3') | Sensibilidade | Especificidade | VPP | VPN |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Primer 1, | AGCAGGCAAGGG TTCTATTACTAAAT | 100 | 88 | 50 | 100 | ||
Primer 2, | GAAGCAACAGCA GATTCTCAACA | ||||||
AAGACCCTAAAGACTTT | |||||||
Hirsch et al. 2 | NI | Probe | CCCTCTGATCTACA CCAGTTT marcado com 6-carboxifluoresceína na extremidade 5` e | ||||
6-carboxitetrametilrodamina na | |||||||
extremidade 3 | |||||||
BKpangF | ATGTGACCA ACACAGC | 60 | 76 | 65 | 72 | ||
BKpangF | ATGTGACCA ACACAGC | ||||||
Pang et al. 11 | VP1 gene | BKpangP1 | AGGAGAACCCAGA GAGTGGA-fluoresceína | ||||
BKpangP2 | LC-Red 640-GGCAGCCTATGT ATGGTATGGAA-fosfato | ||||||
(5`-AGG TAG AAG AGG TTA GGG | |||||||
TGT TTG ATG GCA CAG-3`) | |||||||
Thamboo et al. 28 | VP1 gene | NI | marcação dupla na extremidade 5` com 6-carboxiyfluorosceína | 67 | 33 | 20 | 80 |
(FAM) e a extremidade 3` com | |||||||
6-carboxitetrametilrodamina (TAMRA) | |||||||
Primer PoL1s, | CACTTTTGGGGGACCTAGT | 100 | 96 | 50 | 100 | ||
Viscount et al. 8 | VP2 gene | Primer PoL2as, Probe 1, | CTCTACAGTAGCA AGGGATGC TCTGAGGCTGCTGCT | ||||
PoLP1, | GCCACAGGATTTT-fluoresceína | ||||||
Probe 2, | LC-Red 640-AGTAG CTGAAATTGCTG | ||||||
PoLP2, | CTGGAGAGGCTGCT-fosfato | ||||||
Primer PoL1s, | CACTTTTGGGGGACCTAGT | 100 | 91 | 15 | 100 | ||
Almerás et al. 24 | Gene VP2 | Primer PoL2as, Sonda 1, PoLP1, , | CTCTACAGTAGCAAGGGATGC TCTGAGGCTGC TGCTGCCA CAGGATTTT-fluoresceína | ||||
Sonda 2, PoLP2, | LC-Red 640-AGTAGCTG AAATTGCTGC TGGAGAGGCTGCT-fosfato | ||||||
Babel et al. 10 | VP1 gene | NI | NI | 100 | 96 | 43 | 100 |
Girmanova et al. 29 | Gene que codifica T Ag grande | Kit comercial | BKV Q-PCR Kit de alerta de detecção (Chemagen) | 100 | 68 | 7 | 100 |
Pollara et al. 16 | Gene que codifica T Ag grande | Kit comercial | BKV Q. Kit alerta (Nanogen Advanced Diagnostics, Itália) | 95 | 100 | NI | NI |
Saundh et al. 9 | Gene que codifica T Ag grande | BKV para frente BKV para trás BKV Sonda | TGA CTA AGA AAC TGG TGT AGA TCA YTCC TT TAAT GA AAA ATG GGA FAM AGT GTT GAG AAT CTG CTG TTG CTT C BHQ-1 | 100 | 91 | 17 | 100 |
Knight et al. 21 | NI | NI | NI | 100 | 87 | 26 | 100 |
Primer 1, | AGCAGGCAAGGGTTCTATTACTAAAT | 100 | 57 | 41 | 100 | ||
Primer 2, | GAAGCAACAGCAGATTCTCAACA | ||||||
Menter et al.23 | NI | Sonda | AAGACCCTAAAGACTTTCCCTCTGAT CTACACCAGTTT marcado com 6-carboxifluoresceína na extremidade | ||||
6’-carboxitetrametilrodamina na | |||||||
extremidade 3` |
Ag: Antígeno; BKV: BK vírus; NI: Não informado; VPN: Valor Preditivo Positivo; VPP: Valor Preditivo Positivo PVAN: nefropatia associada à poliomavirus.
Tabela 4 Desempenho da citopatologia urinária na predição da PVAN
Autor | Célula Decoy (n) | PVAN (n) | Sensibilidade | Especificidade | PPV | NPV |
---|---|---|---|---|---|---|
Hirsch et al. 2 | 23 | 5 | 100 | 71 | 29 | 100 |
Thamboo et al. 28 | 15 | 3 | 67 | 85 | 20 | 98 |
Viscount et al. 8 | 26 | 4 | 25 | 85 | 5 | 97 |
Pollara et al. 16 | 39 | 7 | 100 | 53 | 18 | 100 |
VPN: valor preditivo negativo; VPN: valor preditivo positivo; PVAN: nefropatia associada ao poliomavírus.
Este estudo mostra a escassez de dados na literatura sobre a comparação do desempenho da qPCR (sangue ou urina) e citopatologia urinária para o diagnóstico de PVAN. Parece claro que a viruria (definida como detecção de DNA de BKV na urina) precede a detecção de células decoy na citologia urinária, que antecede viremia e PVAN.2 A detecção de células decoy e viruria BKV são importantes marcadores de replicação de BKV, mas pobres preditores de PVAN.
O ponto de corte para determinar a relevância clínica da viremia por BKV permanece controverso. A Sociedade Americana de Transplante (AST) recomenda que, na presença de cargas plasmáticas > 4 log por três ou mais semanas, deve-se presumir um diagnóstico de PVAN e considerar uma biópsia para se chegar ao diagnóstico definitivo.12 Enquanto a Sociedade Americana de Transplante e o Grupo para Melhorias Globais no Desfecho de Doenças Renais (KDIGO) sugerem uma carga viral de BK de 4 log de cópias (10.000 cópias) como um valor de corte para PVAN. Não há métodos padronizados ou aprovados pela agência reguladora nortemericana, FDA, para avaliação da carga viral BK. O diagnóstico de BKV está atualmente baseado em diferentes abordagens usando a qPCR, mas uma vez que não existe um método padrão para avaliação da carga viral de BKV, é essencial que as instituições implementem estudos de validação clínica, certificando suas próprias metodologias a serem usadas como um guia para tratamento clínico.2,13-19
O diagnóstico definitivo de PVAN é feito pela histopatologia,20 em um contexto em que a infecção viral pode ser difícil de diferenciar a partir da rejeição de órgãos. Na nossa análise, apenas quatro artigos relataram o uso da coloração de SV40 no exame histopatológico.21-24 Portanto, a ausência de um exame de confirmação pode subestimar a real frequência da PVAN. O SV40 deve ser usado quando há suspeita clínica de infecção por BKV, apesar da ausência de alterações visíveis no tecido examinado.25 A AST recomenda um mínimo de duas biópsias de fragmento, preferencialmente com tecido medular, com a intenção de reduzir o diagnóstico falso negativo de PVAN, que pode ser tão elevada quanto 20-30% (12, 26). Portanto, uma biópsia negativa não descarta a presença de PVAN.26
Este estudo demonstra a escassez de dados na literatura sobre a comparação de exames diagnósticos para a predição de PVAN. A qPCR tem um melhor desempenho diagnóstico global do que a citopatologia urinária para a detecção de PVAN. No entanto, o ponto de corte para exames de qPCR permanecem pouco definidos. Em contraste com o citomegalovírus (CMV), para o qual a Organização Mundial de Saúde produziu padrões internacionais,27 existe uma necessidade de padronização dos exames relacionados ao BKV. Em última análise, são necessários estudos prospectivos adicionais, a fim de elucidar o ponto de corte ideal para a carga viral no plasma e na urina, para o diagnóstico precoce de PVAN, bem como o momento de ocorrência da viremia, e cofatores associados ao receptor do transplante.