versão On-line ISSN 2317-6431
Audiol., Commun. Res. vol.19 no.1 São Paulo jan./mar. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S2317-64312014000100002
No Brasil, a prematuridade ainda é a principal causa de mortalidade neonatal. Somada ao risco de sequelas a longo prazo, é maior quanto menor a idade gestacional do prematuro. As intercorrências resultantes das diversas complicações clínicas da prematuridade podem contribuir para reinternações e resultar em déficit de crescimento, atraso no neurodesenvolvimento e maiores taxas de morbidade( 1 ).
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a prematuridade pode ser classificada em: pré-termo limítrofe, 35 a 36 semanas de idade gestacional; pré-termo moderado, 31 a 34 semanas de idade gestacional e pré-termo extremo, idade gestacional < 30 semanas. Recém-nascidos considerados com baixo peso ao nascer podem ser classificados de muito baixo peso (menos do que 1,5 kg) e extremo baixo peso (menos do que 1,0 kg)( 2 ).
Prematuros que nascem com menos de 1,5 kg e/ou 32 semanas de idade gestacional são considerados de maior risco para comprometimentos do desenvolvimento neurológico. Podem desenvolver inúmeras complicações, como dificuldades respiratórias, sangramento intracraniano, infecções, perda rápida de calor, dificuldades para se alimentar, dentre outras intercorrências que podem afetar negativamente o amadurecimento cerebral( 3 ). Esses fatores incluem a inerente vulnerabilidade cerebral do prematuro durante o período crítico do desenvolvimento, problemas clínicos múltiplos, além das condições ambientais estressantes.
Estudos que compararam crianças nascidas pré-termo com muito baixo peso com aquelas nascidas a termo e com peso igual ou superior a 2.500 g, assinalam que as primeiras são mais propensas a apresentar deficiências cognitivas( 4 , 5 ), problemas de desempenho escolar( 6 ), dificuldades comportamentais( 7 ) e problemas de linguagem( 8 ). Esse fato justifica a necessidade de acompanhamento do desenvolvimento de bebês prematuros e/ou de muito baixo peso.
O prognóstico de desenvolvimento das crianças nascidas prematuras depende da complexa interação de fatores biológicos, ambientais e socioeconômicos atuantes no cérebro imaturo e vulnerável dessas crianças( 9 ).
Ressalta-se que os primeiros meses de vida são fundamentais para o desenvolvimento infantil, haja vista a maturação neurológica, a formação do vínculo afetivo e a elaboração do conhecimento. As crianças com histórico de prematuridade estão sujeitas a apresentar alto risco para alterações do desenvolvimento cognitivo e, consequentemente, desenvolvimento de linguagem.
Faz-se necessário, portanto, acompanhar o desenvolvimento de crianças prematuras, no intuito de detectar, prevenir ou minimizar possíveis comprometimentos nesses aspectos do neurodesenvolvimento. A literatura expressa vários protocolos para seguimento do desenvolvimento infantil, dentre os quais se destacam a Escala de Desenvolvimento Infantil de Bayley III.
A Escala de Desenvolvimento Infantil de Bayley III (Bayley Scales of Infant Development III) é considerada padrão ouro para avaliação do desenvolvimento infantil, por analisar qualitativamente e quantitativamente os diferentes aspectos do desenvolvimento. É subdividida em cinco subtestes: Cognição, Linguagem (receptiva e expressiva), Motor (grosso e fino), Social, Emocional e Componente adaptativo( 10 - 12 ).
Esse experimento tem por objetivo fundamental correlacionar os aspectos do desenvolvimento cognitivo e da linguagem em prematuros na faixa etária entre 24 e 42 meses, considerando as idades cronológicas e corrigidas por meio da Escala de Desenvolvimento Infantil de Bayley III.
Trata-se de estudo quantitativo, de caráter analítico e transversal. Desenvolveu-se no período de fevereiro a dezembro de 2012, no Setor de Terapia Ocupacional do Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI) da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
A população estudada foi constituída por crianças prematuras, nascidas com idade gestacional menor do que 37 semanas, de ambos os gêneros, sem restrição do tipo de parto ou peso ao nascimento. Foram elegíveis crianças de 24 a 42 meses de idade, que se encontravam em acompanhamento no Serviço de Estimulação Precoce da instituição. Foram considerados critérios de exclusão o diagnóstico de paralisia cerebral, síndromes, malformações congênitas e presença de deficiência auditiva e/ou visual. A amostra do estudo foi composta por dez crianças.
A coleta de dados, que ocorreu individualmente, durante uma hora, foi realizada pelas pesquisadoras responsáveis. Inicialmente, foram levantados dados pertinentes à história da criança, tais como antecedentes gestacionais, idade gestacional, peso ao nascimento, intercorrências pré, peri ou pós-natal. Em seguida, realizou-se a correção da idade, considerando-se o referencial de 40 semanas, o que corresponde à subtração da 40ª semana do número de semanas de gestação ao nascimento, ou seja, idade corrigida = idade cronológica - (40 semanas - idade gestacional em semanas).
Posteriormente foi aplicada a Escala de Bayley, desenvolvida por Nancy Bayley e colaboradores, em 1933, que apresenta-se em três versões: BSID I, publicada em 1969; BSID II, publicada em 1983 e a mais atualizada, BSID III, dada a conhecer em 2006. A Escala de Bayley – III é indicada para avaliar o desenvolvimento de crianças de 1 a 42 meses de idade. Divide-se nos seguintes aspectos do desenvolvimento: motricidade grossa, motricidade fina, linguagem receptiva e linguagem expressiva, cognição e aspectos comportamentais. Neste estudo, foram priorizadas a Escala Cognitiva e a Escala de Linguagem Receptiva e Expressiva.
A Escala Cognitiva é composta por 91 itens, com habilidades que determinam como a criança pensa, reage e aprende sobre o mundo. A Escala de Linguagem é dividida em dois subtipos: Linguagem Receptiva, composta por 49 itens, com habilidades que indicam como a criança reorganiza sons, entende e direciona palavras; Linguagem Expressiva, com habilidades que estabelecem como a criança se comunica, usando sons, gestos e palavras. É composta por 48 itens.
A aplicação da escala foi iniciada com a correção da idade da criança, visando estabelecer o item inicial do exame. Para dar continuidade, a criança precisou obter pontuação um nos primeiros três itens consecutivos. Caso a criança obtivesse pontuação zero em qualquer dos três primeiros itens, retornaria para o ponto inicial da idade anterior estipulada pela Escala. O exame foi finalizado quando a criança obteve pontuação zero em cinco itens consecutivos.
A interpretação dos resultados referentes às Escalas Cognitiva e de Linguagem foi feita por meio da análise quantitativa das respostas. O resultado final da avaliação foi expresso em Quociente de Desenvolvimento (QD), sendo o quociente mínimo de 100 pontos, com desvio padrão de 15%, podendo variar entre 85 e 115 pontos percentuais. A classificação quanto aos aspectos do desenvolvimento foi realizada da seguinte forma: comportamento muito superior (índice ≥ percentil 130); comportamento superior (índice entre percentil 120 - 129); médio alto (índice entre percentil 110 - 119); médio (índice entre percentil 90 - 109); médio baixo (índice entre percentil 80 – 89) e comportamento limítrofe (índice ≤ percentil 79).
A seleção das variáveis pertinentes do estudo privilegiou os aspectos relacionados à idade gestacional, idade cronológica e corrigida, à avaliação da linguagem receptiva, expressiva e cognitiva dos prematuros de faixa etária entre 24 e 42 meses.
Para análise dos dados, foram utilizados os softwares: SPSS V17, Minitab 16 e Excel Office 2010. Foram aplicados testes não paramétricos, pois o conjunto de dados possuía baixa amostragem (dez sujeitos). Empregou-se estatística descritiva para caracterização da amostra, com relação a todas as variáveis.
Os testes utilizados foram o teste de correlação e valor de p. Considerou-se intervalo de confiança de 95%, para verificar confiabilidade, e nível de significância de 5%.
Todos os pais ou responsáveis pelas crianças assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de acordo com a Resolução 196/96 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Este estudo teve seu projeto submetido e aprovado na Plataforma Brasil, processo CAAE 05302312.9.0000.5052, sob o parecer nº 148.651.
Houve correlação significativa da idade cronológica com todas as idades do desenvolvimento. Quando correlacionada a idade cronológica com a idade do desenvolvimento de linguagem receptiva, observou-se tendência à significância estatística (p=0,085) e linguagem expressiva (p=0,044). A correlação com a idade do desenvolvimento cognitivo também constatou significância (p=0,030) (Tabela 1).
Tabela 1 . Correlação da idade cronológica com a idade do desenvolvimento cognitivo, linguagem receptiva e expressiva
Idade cronológica
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Corr (%) | Valor de p | |
Idade do desenvolvimento cognitivo | 68,1 | 0,030* |
Idade do desenvolvimento de linguagem receptiva | 57,0 | 0,085* |
Idade do desenvolvimento de linguagem expressiva | 64,4 | 0,044* |
Tabela 2 . Correlação da idade corrigida com a idade do desenvolvimento cognitivo, linguagem receptiva e expressiva
Idade corrigida
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Corr (%) | Valor de p | |
Idade do desenvolvimento cognitivo | 84,1 | 0,002* |
Idade do desenvolvimento de linguagem receptiva | 57,3 | 0,083* |
Idade do desenvolvimento de linguagem expressiva | 76,2 | 0,010* |
Tabela 3 . Correlação da idade cronológica com as habilidades de cognição e linguagem
Idade cronológica
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Corr (%) | Valor de p | ||
Habilidades cognitivas | Capacidade de apreensão e manipulação de objetos | 66,7 | 0,035* |
Construção e habilidade de permanência do objeto | 67,8 | 0,031* | |
Memória | 52,2 | 0,150 | |
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Habilidades de linguagem receptiva | Identificação de objetos e imagens referenciados | 17,0 | 0,639 |
Desenvolvimento do vocabulário receptivo | -28,2 | 0,431 | |
Desenvolvimento morfológico | 25,0 | 0,550 | |
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Habilidades de linguagem expressiva | Referenciação conjunta | -51,1 | 0,131 |
Desenvolvimento do vocabulário expressivo (nomeação) | 0,3 | 0,992 | |
Desenvolvimento morfossintático | -38,7 | 0,344 |
Quando correlacionada à idade do desenvolvimento cognitivo, foi verificada tendência à significância estatística em todas as habilidades correlacionadas.
Na correlação da idade do desenvolvimento de linguagem receptiva com as habilidades da escala cognitiva, linguagem receptiva e expressiva, obteve-se significância estatística apenas na habilidade de capacidade de apreensão e manipulação de objetos (p=0,003).
Na correlação da idade do desenvolvimento de linguagem expressiva com as habilidades da escala cognitiva de linguagem receptiva e expressiva, observou-se significância estatística nas habilidades de capacidade de apreensão e manipulação de objetos (p=0,005), na construção e habilidade de permanência dos objetos (p=0,060) e desenvolvimento do vocabulário expressivo (nomeação) (p=0,012) (Tabela 4).
Tabela 4 . Correlação da Idade de desenvolvimento com habilidades da escala cognitiva, linguagem receptiva e expressiva
Idade do desenvolvimento cognitivo | Idade do desenvolvimento de linguagem receptiva | Idade do desenvolvimento de linguagem expressiva | |||
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Habilidades cognitivas | Capac. de apreensão e manipulação de objetos | Corr (%) | 83,3 | 83,4 | 80,3 |
Valor de p | 0,003* | 0,003* | 0,005* | ||
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Construção e habilidade de permanência do objeto | Corr (%) | 62,7 | 42,1 | 61,2 | |
Valor de p | 0,052* | 0,225 | 0,060* | ||
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Habilidades de linguagem receptiva | Desenv. do Vocabulário receptivo | Corr (%) | 65,9 | 31,6 | 37,5 |
Valor de p | 0,038* | 0,374 | 0,286 | ||
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Habilidades de linguagem expressiva | Desenv. do vocabulário expressivo (nomeação) | Corr (%) | 66,9 | 52,3 | 75,4 |
Valor de p | 0,034* | 0,121 | 0,012* |
A prematuridade constitui um dos principais fatores de risco biológico para o desenvolvimento infantil, em decorrência da imaturidade e vulnerabilidade do cérebro em desenvolvimento( 13 ). Avanços científicos destacam que a plasticidade cerebral acentua-se nos primeiros anos de vida e é suscetível à estimulação, bem como a fatores biológicos, genéticos e ambientais( 13 , 14 ). Crianças que apresentam alterações no desenvolvimento e adquirem diagnósticos e intervenções precocemente terão maiores possibilidades de evolução( 14 , 15 ). No seguimento dos prematuros, contudo, faz-se necessária a correção da idade, com vista a identificar possíveis atrasos ou desvios no desenvolvimento.
Neste estudo, realizou-se a correção da idade, necessária para a delimitação do diagnóstico do desenvolvimento das crianças prematuras( 16 ).
A literatura refere que os recém-nascidos prematuros estão mais propensos a exibir atrasos no desenvolvimento das áreas motora, linguística e cognitiva( 17 - 20 ). Com suporte no estudo analisado, observou-se que as idades cronológica e corrigida podem influenciar no desenvolvimento dessas áreas, haja vista que se obteve correlação com as idades de desenvolvimento cognitivo e as habilidades de linguagem receptiva e expressiva.
A faixa etária das crianças analisadas está inserida no período pré-operacional ou representativo, fase simbólica, caracterizada dos 2 aos 7 anos de idade, etapa em que a criança começa a desenvolver a capacidade de imitar, criar e elaborar brincadeiras e símbolos( 20 - 22 ). As habilidades cognitivas que se mostraram estatisticamente significativas foram a capacidade de apreensão e manipulação de objetos e a construção e habilidade de permanência de objetos. Esse resultado atesta a afirmação presente na literatura, ao indicar que um dos pré-requisitos para o desenvolvimento da linguagem no período pré-operacional é a habilidade de manipulação e permanência de objetos( 23 - 25 ).
Essa realidade confirma a relação do desenvolvimento da linguagem com a reação perceptomotora e a cognição( 26 ).
Na correlação da idade do desenvolvimento de linguagem expressiva com as habilidades de linguagem receptiva e cognitiva, houve tendência à significância estatística em todas as habilidades cognitivas.
Pesquisas descrevem diferenças no desenvolvimento entre a linguagem receptiva e expressiva( 24 - 26 ). Houve discrepâncias referentes às habilidades de linguagem receptiva, quando comparadas à idade do desenvolvimento de habilidades expressivas, visto que, nessa fase, as crianças aprimoram a linguagem expressiva por meio de repetições, porém, não conseguem compreender ainda do que se trata. Precisam, primeiro, compreender, para depois transformar em palavras( 27 , 28 ). São capazes de realizar duas atividades ao mesmo tempo, relatar, identificar e nomear objetos e suas funções, responder e estruturar ordens simples e contar histórias, por exemplo( 29 , 30 ), habilidades que se encontram bem definidas nas crianças a termo, o que não foi observado nos prematuros analisados neste estudo.
Observou-se que a prematuridade pode levar a alterações importantes nas etapas do desenvolvimento linguístico, em que a cognição se mostrou como fator primordial ao desenvolvimento das habilidades nas crianças estudadas, constatando-se que, quanto maior a idade do desenvolvimento cognitivo, melhores são as habilidades de linguagem receptiva e expressiva.
Os déficits encontrados nas habilidades referentes ao desenvolvimento cognitivo e de linguagem em crianças prematuras ressaltam a necessidade de avaliações criteriosas e padronizadas, que têm como propósito a detecção precoce dos comprometimentos do desenvolvimento infantil, o que pode favorecer a qualidade de vida dessas crianças.
Observou-se correlação das idades cronológica e corrigida com a idade do desenvolvimento cognitivo e de linguagem e influência da idade cronológica no desenvolvimento das habilidades cognitivas.
Constatou-se que a idade do desenvolvimento cognitivo influencia as habilidades cognitivas e de linguagem receptiva e expressiva, havendo relação da idade de desenvolvimento de linguagem receptiva e expressiva com as habilidades de capacidade de apreensão e manipulação de objetos.
Houve relação da idade de desenvolvimento de linguagem expressiva com desenvolvimento do vocabulário expressivo (nomeação).
As habilidades de linguagem receptiva e expressiva mostraram-se com desenvolvimento distinto, todavia, dependentes da cognição.
Sugere-se a utilização de amostras maiores, capazes de ampliar os achados atuais e acompanhar o desenvolvimento em prematuros, além das idades abordadas.