versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.1 São Paulo jan./mar. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170009
Letramento em Saúde (LS) refere-se ao conhecimento, motivação e competência dos pacientes para acessar, compreender, avaliar e aplicar informação em saúde, de forma a fazer julgamentos e tomar decisões cotidianas, no que tange ao autocuidado, prevenção de doenças e promoção da saúde, buscando manter ou melhorar a qualidade de vida.1
Avaliar o nível de LS dos pacientes é de suma importância, a fim de evitar desfechos clínicos negativos. Contudo, os poucos estudos realizados no Brasil utilizaram instrumentos traduzidos que não foram construídos visando à realidade brasileira.
Os mais citados em publicações são Rapid Estimate of Adult Literacy in Medicine (REALM)2, Test of Functional Health Literacy in Adults (TOFHLA)3, Newest Vital Sign (NVS)4 e Short Assessment of Health Literacy for Portuguese (SALPHA-18).5
Entretanto, todos apresentam consideráveis limitações. O primeiro é apenas um teste de pronúncia, sendo esta uma variável linguística muito instável para avaliar LS; o segundo um termo de consentimento para Raio X de estômago, gênero que não pertence ao conhecimento prévio da população brasileira; o terceiro é um rótulo de sorvete e aborda apenas numeramento e o quarto explora pronúncia e associação de significados, superestimando o nível de LS inadequado dos pacientes.
O Teste de Avaliação de Letramento em Saúde (TALES) foi criado e validado no Brasil e foi composto pelas seguintes etapas: a) elaboração de uma Cartilha Educativa; b) confecção de um banco de 63 itens, distribuído em três níveis de letramento (rudimentar, básico e pleno); c) aplicação de um teste piloto, contendo 18 sentenças de compreensão de leitura e três situações-problema envolvendo habilidades numéricas, referentes às informações contidas no Folheto; d) calibração e validação do instrumento, suas propriedades psicométricas, tendo como base conceitual tanto a Teoria Clássica de Testes (TCT)6 quanto a Teoria de Resposta ao Item (TRI).7
Nesta comunicação, serão descritos todos os processos envolvidos na criação da Cartilha "Você conhece a Doença Renal Crônica?", desde a escolha do tema até os recursos utilizados na sua construção.
O processo de construção da cartilha foi composto por quatro fases:
Na primeira, chamada de sistematização do conteúdo, buscou-se avaliar quais eram as maiores lacunas de conhecimento dos pacientes acerca da doença renal crônica (DRC). Essas informações foram extraídas de um estudo prévio (manuscrito em preparação), cujo objetivo foi avaliar o nível de conhecimento dos pacientes encaminhados pelas Unidades Básicas de Saúde sobre DRC. Com base nos resultados desse estudo, um grupo composto por médicos, profissionais de saúde e uma linguista, embasados na literatura, formularam os textos que compuseram a Cartilha.
Na segunda fase, foi feita uma pesquisa de ilustrações em websites , livros e cartilhas preexistentes, a fim de encontrar imagens que representassem, de forma fidedigna, as informações pretendidas. O processo de criação foi realizado por um designer especializado.
A terceira fase foi de edição e diagramação do conteúdo, conforme os quesitos da primeira fase.
Na quarta fase, todo o material, incluindo textos e figuras, foi submetido a um Comitê de Especialistas composto por médicos, enfermeiros e linguistas. Quanto ao conteúdo, foi avaliada a relevância, a adequação e a apresentação das informações; quanto à linguagem, a clareza e a objetividade; quanto às imagens, a adequação da composição visual, a atratividade e a organização. Foram feitas as modificações sugeridas pelos especialistas.
Conforme mencionado anteriormente, a primeira fase do estudo selecionou seis subtemas (definição, diagnóstico, sinais e sintomas, prevenção, fatores de risco e tratamento) como aqueles sobre os quais os pacientes mais se confundiram, portanto, aqueles que mereceram maiores esclarecimentos.
Para compreender a importância desse gênero textual para as atividades comunicativas do cotidiano, não basta se deter a aspectos linguísticos e estruturais, uma vez que são mais relevantes os aspectos comunicativos e funcionais, pois estes constituem formas de agir sociodiscursivamente em situações comunicativas específicas.8
A Cartilha apresenta como objetivo fundamental levar o leitor à reflexão, visando à mudança de comportamento em relação a uma dada realidade. Essa modificação de comportamento se dá quando há uma ativa compreensão responsiva do leitor, ou seja, quando efetivamente o material educativo se presta ao seu papel e isso passa a implementar o nível de LS do paciente, auxiliando-o a se empoderar de seu estado de saúde e, consequentemente, a tomar decisões assertivas sobre seu tratamento.9
Considerando que a Cartilha obedece ao papel social de informar e educar, descreveremos, de forma ilustrativa, como ocorreu a multimodalidade e o letramento em algumas estratégias utilizadas, considerando "multimodalidade" como os variados recursos de persuasão como cores, ilustrações que remetem ao cotidiano do indivíduo, metáforas que se aproximam da realidade do ouvinte e o auxiliam a identificar as informações fornecidas, de forma a compreender o todo e, a partir de então, mudar sua postura diante da vida.9
A função mais importante na língua é inserir os indivíduos em contextos sociohistóricos e permitir que eles se entendam. Deve-se ressaltar que as formas enunciativas e as possibilidades de enunciação não emanam do indivíduo isolado, e sim, do indivíduo numa sociedade e no contexto de uma instituição.10
Em vista disso, os locutores da Cartilha, que dialogam com os leitores, são personagens, cujos perfis foram construídos buscando uma identificação com o público de uma forma geral. Entende-se que, quando há uma identificação, o processo de persuasão se faz de forma mais efetiva.
Todos os personagens têm DRC, mas cada um com sua idiossincrasia. Doutor Paulo é médico e hipertenso; Dona Ana é idosa, diabética; Seu Chico mora na zona rural e é diabético; Raquelzinha é uma adolescente sedentária e obesa; Betão é jogador de futebol, mas apresenta histórico familiar de DRC e faz uso regular de anti-inflamatório.
Os personagens, no decorrer da Cartilha, representam papéis sociais que exemplificam modelos estereotipados. Portanto, por meio das ilustrações, busca-se encorajar os pacientes à mudança de postura diante da doença.
A estratégia para conquistar o público por meio da projeção e da identificação depende do registro da linguagem, isto é, o texto e a imagem da mensagem devem se adequar ao público ao qual se destinam. Entretanto, observa-se que o receptor não é passivo, ele é instigado a todo momento a desvelar o sentido real da mensagem.11
O maior dos desafios da linguagem é o de prender a atenção do destinatário, seja por estranhamento da mensagem propagada seja por outros recursos, porém fazendo com que ele se interesse pelo texto e, consequentemente, pelo que é propagado. Para "superar" este desafio, são ressaltados os recursos dos quais essa linguagem se vale, sendo estes, entre outros, o uso da metáfora, metonímia e linguagem figurada.12
A fala de Seu Chico é um exemplo dessa linguagem que, ao mesmo tempo que identifica, desperta estranhamento pelos regionalismos "Dia! Meu nome é Chico. Eu tenho essa tar de doença nus rim pramais de cinco ano. Agora o doto falô que eu tamém tenho um trem chamado diabetes."
Outra estratégia bastante pertinente no gênero Cartilha Educativa é o uso da interlocução direta, estratégia pela qual o interlocutor se sente convocado a participar do texto, inserindo-se no contexto, por meio de uma atitude responsiva.9
Pelos exemplos, "Você sabe o que são os rins?" "Não deixe que os seus exames cheguem no vermelho", o uso dos pronomes "você" e "seus" sinaliza a fala intimidatória. Na metáfora: "Os rins são órgãos do seu corpo que têm como principal função filtrar o sangue", a menção ao rim como "filtro" facilita o entendimento, uma vez que faz uma analogia com algo que pertença ao conhecimento de mundo do leitor. Essa frase, associada à metáfora visual, esclarece a definição de DRC.
Percebe-se a estratégia da personificação, como, por exemplo, rins que falam e dialogam com leitor, diminuindo o distanciamento que separa paciente-doença, ao atribuir voz ao órgão-alvo.
Os pictogramas perpassam toda a Cartilha Educativa, chamando a atenção para informações que merecem ser destacadas e memorizadas, como os níveis de glicose e pressão, conceitos essenciais como proteinúria e creatinina e o não uso de anti-inflamatórios, sal em excesso e um alerta aos fumantes. A figura 1 abaixo retrata alguns dos aspectos mencionados.
Um bom material educativo em saúde deve mesclar estratégias, a fim de possibilitar que pacientes com LS limitado possam se apoderar de sua doença, participando como sujeitos ativos de seus planos de tratamento, negociando medicações, reivindicando direitos, agindo de forma preventiva e evitando desfechos que possam agravar sua condição clínica.
Considerando a qualidade da Cartilha Educativa "Você conhece a doença Renal Crônica?", mediante os preceitos de multimodalidade e do letramento, admitimos como adequada a incorporação desse material como texto base do instrumento TALES, primeiro questionário criado e validado no Brasil para avaliar o LS da população brasileira em geral.