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Desenvolvimento e expansão do ensino médico no Brasil

Desenvolvimento e expansão do ensino médico no Brasil

Autores:

Mónica Padilla

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.23 supl.1 Botucatu 2019 Epub 16-Maio-2019

http://dx.doi.org/10.1590/interface.190105

Com o lançamento do Programa Mais Médicos (PMM) pela Lei no 12.871, de 22 de outubro de 20131, entra em ação uma das mais ambiciosas políticas de desenvolvimento de recursos humanos em Saúde (RHS) do país, momento culminante em que se unem os temas de provisão, regulação, educação e infraestrutura do Sistema Único de Saúde (SUS) com o objetivo de solucionar o déficit estrutural de médicos e atender às necessidades de acesso equitativo a serviços e cuidados de saúde para os cidadãos brasileiros.

O componente de provisão do programa, desde 2013, designa médicos com dedicação em tempo integral, garantindo a residência nas localidades onde prestam o serviço. A composição desse contingente de profissionais destacados para localidades de difícil acesso, na maioria cubanos com experiência em Atenção Primária à Saúde (APS), foi complementada com profissionais formados fora do país, tanto brasileiros quanto estrangeiros, e uma pequena - mas crescente - porcentagem de brasileiros formados no país (iniciada em 32% em novembro de 2013, chegando a 48% em novembro de 2018(b) a serviço das comunidades com menor acesso à saúde(c).

Essa medida efetiva, mantida de 2013 a 2018, conseguiu disponibilizar médicos que complementam - e por vezes abrem pela primeira vez - equipes em unidades de Saúde da Família em regiões críticas, contribuindo, dessa maneira, com os esforços iniciados em 1998 com o Programa de Saúde da Família(d). Entre os municípios participantes do PMM houve um aumento da cobertura da atenção primária, que passou de 77,9%, em 2012, para 86,3%, em 20152.

Conscientes do caráter emergencial e provisório da estratégia para disponibilizar profissionais de Medicina, os responsáveis pelo PMM estabeleceram medidas também no campo da educação médica para alcançar a autossuficiência de médicos no país e, assim, enfrentar as lacunas de alocação desse profissional que garantissem a sustentabilidade do SUS. Para tanto, apostaram na expansão de vagas nas escolas médicas; mudanças obrigatórias nas formas e cenários de ensino na graduação; descentralização da oferta de cursos para regiões remotas (importante aspecto para a posterior fixação dos egressos), propondo, ainda, a ampliação da oferta de residências médicas para assegurar que todos os formados pudessem ter acesso a esses programas; e a incorporação da residência em Medicina de Família e Comunidade (MFC) como requisito para a formação nas especialidades de maior demanda(e).

A hipótese de base dessas medidas era a de que seria assegurado o fundamento para garantir profissionais formados em suas comunidades em número suficiente, com uma visão da saúde coerente com as necessidades do país e dessas populações em especial e que sua fixação estaria reforçada com o acesso à residência em MFC. Do mesmo modo, ao contar com a presença de especialistas nas áreas mais distantes, haveria o cenário ideal para formar novos médicos inseridos na realidade da saúde do país - portanto, comprometidos com suas demandas - e, mais ainda, que produziriam uma substancial melhora na qualidade de um sistema de saúde baseado na atenção primária à saúde e organizado em redes de serviços de saúde, o SUS.

Promulgada a lei, foi desencadeado um importante movimento para sua implementação com uma base legal formal clara, em um cenário real com múltiplos obstáculos: o posicionamento das entidades médicas; o marco regulatório e os requisitos legais para a criação e gestão da formação profissional, pensados basicamente para zonas urbanas desenvolvidas; o imaginário da população e dos potenciais médicos brasileiros mais voltados ao mercado do que ao serviço público; enfim, um difícil cenário a enfrentar.

Este Suplemento da revista Interface está voltado para o componente educação médica desenvolvido no PMM, no período de 2014 a 2017, para difundir estudos realizados em torno das ações desenvolvidas: como se avançou; quais foram as conquistas e os desafios; o que aprendemos; e como vemos o futuro da formação médica no médio e longo prazos.

Ressaltamos aqui que é o primeiro esforço de sistematização do efeito do componente de formação profissional em Saúde gerado pelo PMM no país, uma vez que a maior evidência foi gerada ao redor do componente da provisão médica.

Tendo isso em mente, a revista Interface, por encomenda do Ministério de Saúde (MS) e da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), publicou uma chamada pública em 21 de julho de 2017 convidando pesquisadores, acadêmicos, professores, estudantes, gestores, trabalhadores e usuários do SUS a enviar artigos e experiências sobre a formação médica decorrente das mudanças promovidas pelo PMM(f) para a publicação de um Suplemento especial sobre “Desenvolvimento e expansão do ensino em saúde no Brasil.” Esse Suplemento teve por objetivo “incentivar a produção técnico-científica e a análise dos processos relacionados à formação em saúde que emergiram a partir do Programa Mais Médicos, abordando a trajetória e o legado da política de educação em saúde desenvolvida”, com vistas a incentivar a análise e o debate sobre políticas recentes de formação na reorientação da educação médica(g).

Responderam à convocatória pública 42 propostas, das quais vinte artigos foram publicados, distribuídos na seção Artigos e Espaço Aberto, além de uma entrevista e um debate, incluídos por nós. Consideramos este Suplemento uma publicação de grande valor para acompanhar o processo de evolução da educação médica no país e os convidamos nossos leitores a desfrutar dessa interessante leitura.

Nas próximas páginas pode ser encontrado um importante detalhamento de uma proposta de reordenamento da formação médica que ganha força e mobiliza as estruturas regulatórias e operacionais dos Ministérios da Saúde e da Educação; introduz mecanismos concretos de negociação para o uso dos novos espaços de prática; e recebe uma importante resposta e adesão de universidades públicas, em uma primeira etapa, e de universidades privadas, em uma segunda etapa, efetivando um aumento da oferta formativa descentralizada e uma maior equidade mediante a escolha de regiões mais distantes para instalação de escolas médicas.

Neste Suplemento aponta-se a efetiva sistematização dos esforços do país na formulação de políticas e programas de transformação da educação superior, confirmando a sua liderança em matéria de políticas de RHS em nível global e situando o PMM como um mecanismo para incidir não só nos marcos regulatórios, mas também nos processos de gestão acadêmica, nos quais são definidos os perfis de formação dos profissionais da saúde. Além disso, faz-se uma análise profunda das necessidades de transformar o paradigma da educação respondendo aos desafios de manter a saúde - e não apenas respondendo à doença e à morte -; os limites da educação fragmentada e isolada (por profissões); as contradições entre a apropriação das peculiaridades da população e da cultura brasileira; e a formação técnico-científica descontextualizada, que compõem essa importante obra de recopilação e reflexão.

A supervisão acadêmica surge como uma demanda diretamente relacionada à qualidade da formação profissional, no nível de investimento do Ministério de Educação, de mobilização da rede de universidades públicas e de profissionais, para dar conta dessa necessidade, manifestada em diversos artigos do Suplemento. Além disso, a supervisão evidencia a complexidade e a importância dos processos formativos em todas suas dimensões, ainda mais considerando a educação na saúde como um processo vivo que requer uma constante transformação como resposta à realidade.

O desafio das residências médicas é outro aspecto muito bem analisado no Suplemento, que envolve tanto a necessidade de recrutar especialistas em Saúde da Família quanto de estabelecer equipes estáveis nos serviços de saúde, que permitam contar com um cenário de aprendizagem e prática qualificado para acompanhar a formação profissional em nível de graduação e pós-graduação. Essas exigências põem em contato direto as instituições de educação superior e os gestores, principalmente de nível municipal, chegando até o centro da gestão do SUS.

O artigo e os textos dos debatedores da seção Debates trazem uma interessante análise da perspectiva dos ciclos da política, o posicionamento dos atores sociais e as necessidades concretas de mudança e melhoria que precisam ser atendidas para que o país possa alcançar melhores respostas às suas necessidades de saúde e educação. Apontam também a descontinuidade nas políticas como um fator que incide decisivamente na consistência, sustentabilidade e qualidade da resposta do país a seus desafios em educação na saúde.

Experiências importantes no tratamento de assuntos como a saúde mental, o atendimento a idosos e a promoção da saúde, relacionados aos desenhos curriculares e aos esforços para sua implantação no marco das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), permitem identificar oportunidades e desafios para avançar na necessária transformação da educação profissional.

Esta edição especial da Interface convoca, sem dúvida, um grupo seleto de estudiosos comprometidos com o tema da educação médica, permitindo identificar importantes avanços resultantes da formulação da Lei do Mais Médicos e apontando seus limites e dificuldades. Do mesmo modo, evidencia como a educação médica constitui uma pedra angular para o funcionamento efetivo do SUS e, sem dúvida, poderá contribuir para definir a ação necessária para uma melhor condição de saúde da população brasileira.

REFERÊNCIAS

1 Brasil. Presidência da República. Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Out 2013.
2 Santos W, Comes Y, Pereira LL, Costa AM, Merchan-Hamann E, Pacheco Santos LMP. Avaliação do Programa Mais Médicos: relato de experiência. Saude Debate. 2019; 43(120):259-