versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.37 no.1 São Paulo jan./mar. 2015
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20150009
A Doença Renal Crônica (DRC) tem elevada prevalência.1 O Brasil é o segundo país em número absoluto de realização de transplantes renais. Em 2013, foram realizados 5433 transplantes. Apesar desses dados, a demanda ainda é grande e, em 2013, existiam 8609 pacientes ativos na lista de espera2 e aproximadamente 100.397 pacientes em diálise no Brasil, a maior parte deles em hemodiálise.3
Não existem informações substanciais sobre o impacto das opções de tratamento na sobrevida dos pacientes,4 mas sabe-se que a as taxas de mortalidade entre pacientes renais crônicos em hemodiálise é 20 vezes maior do que a da população geral.5 A DRC acarreta em uma série de limitações na qualidade de vida,6 como no caso de outras doenças crônicas, e gera uma incidência maior de psicopatologias do que na população geral.7,8 A prevalência de depressão9 é maior nessa população, particularmente em tratamento dialítico crônico, e também há poucos relatos sobre maior índice de desesperança10 e tentativas de suicídio.11,12 Apesar de o transplante proporcionar melhor qualidade de vida, quando comparado às outras formas de tratamento renal substitutivo,13 não localizamos estudos que observassem, de forma comparativa, se essa melhoria repercute nos sintomas de depressão, de desesperança e de ideação suicida, em sujeitos bem sucedidos em modalidades terapêuticas diferentes.
Devido à forte influência dos referidos sintomas na qualidade e expectativa de vida dos portadores de DRC,14 entendemos a importância de se compreender melhor esses fenômenos com o intuito de embasar futuras intervenções que auxiliem essa população no enfrentamento da doença. Objetivamos avaliar se existe diferença na intensidade de sintomas de depressão, desesperança e presença de ideação suicida entre pacientes em hemodiálise ou transplantados renais. Analisamos, também, se as variáveis: atividade laboral; ter dependentes (pessoas socialmente significativas que dependem financeiramente do sujeito); sexo e estado civil interferem na intensidade dos sintomas de depressão, desesperança e presença de ideação suicida nessa população.
Estudo comparativo, de corte transversal, com metodologia quantitativa e aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo (CEP Nº 1624/07). A amostragem foi composta por 100 pacientes: 50 em tratamento hemodialítico (da Clínica do Hospital do Rim e Hipertensão e da Unidade Satélite da Fundação Oswaldo Ramos) e 50 transplantados renais (acompanhados pelo Ambulatório de Pós-Transplante Renal da Fundação Oswaldo Ramos). Os critérios de inclusão foram: ter iniciado tratamento renal substitutivo (TRS) há mais de seis meses, estar clinicamente bem sucedido no tratamento adotado (segundo avaliação da equipe) e ter entre 18 e 65 anos, para que variáveis como infância, adolescência e velhice não influenciassem os achados. Pacientes com transtornos cognitivos foram excluídos. Houve cuidado para que os critérios de definição de tratamento bem sucedido fossem equiparados entre os transplantados e os em hemodiálise. Esses critérios foram: não ter sido internado ou apresentado intercorrências clínicas por, no mínimo, quatro meses antes da entrevista; ter boa adesão ao tratamento e estar clinicamente estável. Critérios de exclusão: histórico de doença psiquiátrica; utilizar psicotrópicos; transplante renal agendado; não receptividade à participação. Os que se enquadravam nos critérios foram indicados pela equipe médica, selecionados de forma aleatória e pareados por sexo e idade (até três anos de diferença) entre os grupos.
Questionário de Identificação, para coletar os dados sociodemográficos. Critério de Classificação Econômica Brasil da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa que categoriza a população em classes econômicas. As faixas de classificação econômica são: A1 (melhor), A2, B1, B2, C1, C2, D, E (pior).15 As Escalas Beck tiveram suas versões em português validadas em 200116 e são instrumentos 'padrão-ouro'. Utilizamos as escalas: BHS (Beck Hopelessness Scale), BSI (Beck Scale for Suicide Ideation) e BDI (Beck Depression Inventory). A BHS avalia a extensão das expectativas negativas a respeito do futuro imediato e remoto. É dicotômica, possui 20 afirmações que envolvem cognições sobre desesperança. O escore total da BHS pode variar de 0 a 20 e permite a classificação da desesperança em níveis. Os pontos de corte e seus respectivos níveis são: de 0 a 4, nível mínimo; de 5 a 8, nível leve; de 9 a 13, nível moderado e entre 14 e 20, nível grave. Além desses pontos, que têm sido usados tanto em populações psiquiátricas como na população geral,14,16,17 utilizamos, também, como ponto de corte fixo, o escore de maior ou igual a 9 pela sua relevância como preditor do suicídio16,18-20 e por ser utilizado em populações com doenças graves, como câncer e DRC.21,22 O BSI é uma escala que avalia a presença de ideação suicida, a gravidade das ideias, planos e desejos de suicídio. Não há ponto de corte específico, nem níveis, pois uma pontuação acima de 0 já indica a existência de ideação suicida e merece atenção.16 O BDI avalia a intensidade dos sintomas de depressão, sem refletir nenhuma teoria em particular. Possui questões que descrevem atitudes e sintomas concernentes ao quadro de depressão. É composta por 21 grupos de afirmações, e cada grupo investiga um tipo de sintoma da depressão. O escore total pode ir de 0 a 63. Quanto maior a pontuação apresentada, maior a intensidade dos sintomas. Para o BDI, os pontos de corte utilizados para diversas amostras (psiquiátricas, população saudável, portadores de DRC, entre outras) são: entre 0 e 11 equivalem a nível mínimo; entre 12 e 19, leve; entre 20 e 35, moderado e acima de 36, grave.9,16,17 O mesmo ponto de corte para amostras tão diferentes pode gerar resultados duvidosos. Assim, pontos de corte diferenciados têm sido adotados, conforme a população avaliada. Em portadores de DRC, para o BDI, tem sido utilizado o ponto de corte fixo entre 14 e 16, enquanto que, para a população geral, o escore usado é maior que 10.9,10,23,24 Foram utilizados tanto os pontos de corte que geram classificações em níveis, como também, o ponto de corte maior ou igual a 15, que tem apresentado ótima sensibilidade, quando aplicado em portadores de DRC.24,25
Após explicação do estudo para a equipe e checagem no prontuário, era realizado um sorteio com os nomes dos indicados. A seleção dos pacientes em hemodiálise foi semelhante à dos transplantados. Mas, entre os indicados, houve uma seleção dos que poderiam ser pareados com os transplantados, que já haviam sido entrevistados. A seguir, os pacientes que aceitavam participar assinavam um consentimento informado e era agendada uma data para a entrevista. Esta era feita em uma sala particular fora do horário da sessão de hemodiálise ou eventualmente durante a sessão de diálise. Objetivando uniformizar as aplicações, todas as entrevistas foram efetuadas pela mesma pesquisadora.
Foram feitas análises com o grupo todo e separado (hemodiálise e transplante). Na primeira análise, foi verificado pelo teste de Mann-Whitney se existia relação do escore total das escalas com algumas características dos pacientes como: tipo de tratamento (hemodiálise versus transplante); atividade laboral (sim versus não); ter dependentes (sim versus não); sexo (masculino versus feminino); e estado civil (casado versus não casado). Na segunda análise, os pacientes foram separados em dois grupos (hemodiálise e transplante) e todas as análises objetivaram a comparação entre eles em relação às variáveis disponíveis e as escalas investigadas. Dados categóricos foram comparados pelo teste de Qui-quadrado ou, quando necessário, o teste exato de Fisher. As variáveis contínuas foram comparadas pelo teste t de Student. A significância estatística foi estabelecida para valores de p < 0,05. As análises foram realizadas com a utilização do software estatístico Minitab, versão 15.1.
Foram avaliados 50 pacientes em hemodiálise e 50 transplantados. O pareamento por sexo e idade foi realizado com sucesso. Cinquenta por cento de cada grupo eram mulheres e a média de idade foi de 43 anos (Tabela 1). A maior parte dos indivíduos eram casados (60%), com filhos (63,5%), possuíam dependentes (47,9%), de religião católica (48%), raça branca (48%), sem atividade laboral (56%), do segmento econômico C1 (32%), com média de 9,2 anos de estudo e duração média de TRS de 59,1 meses. Entre as comorbidades, as mais frequentes foram hipertensão arterial (69,3%) e diabetes (20,5%). Não houve diferença estatisticamente significante entre os grupos (hemodiálise e transplante) quanto: ao estado civil; número de filhos; religião; etnia; média de idade; sexo; anos de estudo; atividade laboral; classe social; duração desde os primeiros sintomas e diagnóstico, e taxa de hematócrito (Tabelas 1 e 2). O grupo em hemodiálise apresentava maior porcentagem de pacientes com dependentes, maior frequência média de doenças associadas e maior tempo médio de TRS (Tabelas 1 e 2). Apenas quatro pacientes indicados e selecionados por meio do sorteio se recusaram a participar da pesquisa (três transplantados e um em hemodiálise). Todos os transplantados foram entrevistados em sala particular. Em hemodiálise, 21% aceitaram ser entrevistados fora do horário da sessão, os demais foram entrevistados durante a sessão, com o procedimento estável. Resultados das escalas com pontos de corte delimitando níveis: No grupo todo, o escore total da BHS variou de 0 até 18 pontos, com mediana de 2 pontos. A maioria dos pacientes (89%) apresentou nível mínimo de sintomas de desesperança, seguido de 9% com nível leve, 1% moderado e 1% grave. Não houve relação estatística significante entre os escores da BHS e as variáveis: tipo de tratamento, atividade laboral, dependentes, sexo, estado civil e tipo de doador. No BSI, o escore total variou de 0 até 7 pontos, com mediana de 0 pontos. Nenhuma das variáveis estudadas mostrou relação significante com os escores do BSI. Duas pacientes já haviam tentado suicídio, uma de cada grupo. O escore do BDI variou de 0 até 37 pontos, com mediana de 8 pontos. A maioria dos pacientes (68%) foi classificada com nível mínimo; 23% leve; 8% moderado e 1% grave. As variáveis que se mostraram relacionadas com os resultados do BDI foram: atividade laboral e tipo de doador (Tabela 3). Pacientes sem atividade laboral apresentaram mais sintomas depressivos (p = 0,027). A pontuação mediana dos pacientes sem atividade laboral foi de 9,5 e dos pacientes com atividade laboral, 6 pontos. Pacientes transplantados, cujo doador era falecido, também apresentaram mais sintomas depressivos do que pacientes cujo transplante foi realizado com doador vivo, mediana de 10 pontos e 6,5 pontos, respectivamente (p = 0,042). Pacientes não casados apresentaram maior tendência a terem sintomas depressivos que os casados (p = 0,070). As outras variáveis avaliadas não tiveram relação estatística significante com sintomas depressivos.
Tabela 1 Dados demográficos com a separação dos grupos em hemodiálise e transplantados
Dados demográficos | hemodiálise N (%) | transplante N (%) | p |
---|---|---|---|
estado civil: casado | 28 (56,0) | 32 (64,0) | 0,414 |
não casado* | 22 (44,0) | 18 (36,0) | |
tem filhos | 27 (57,5) | 34 (69,4) | 0,224 |
tem dependentes | 28 (59,6) | 18 (36,7) | 0,025 |
religião: não tem | 1 (2,0) | 3 (6,0) | |
Católica | 21 (42,0) | 27 (54,0) | 0,214 |
outras** | 28 (56,0) | 20 (40,0) | |
etnia: branco | 20 (40,0) | 28 (56,0) | |
Pardo | 15 (30,0) | 13 (26,0) | 0,226 |
negro/amarelo | 15 (30,0) | 9 (18,0) | |
possui atividade laboral | 25 (50,0) | 19 (38,0) | 0,227 |
Idade (anos) | 0,974 | ||
Média ± dp | 43,4 ± 12,5 | 43,3 ± 12,5 | |
(mín. - máx.) | (19 - 65) | (19 - 65) | |
Grau de instrução (anos) | 0,088 | ||
média ± d.p. | 9,9 ± 4,5 | 8,4 ± 4,1 | |
(mín. - máx.) | (1 - 18) | (1 - 17) |
*Viúvo, solteiro, separado;
**Evangélica, espírita/kardecista, afro-brasileira (umbanda, candomblé);
dp: Desvio padrão; mín: Mínimo; máx: Máximo.
Tabela 2 Aspectos da doença renal dos pacientes em hemodiálise e transplantados
hemodiálise | transplante | p | |
---|---|---|---|
1os sintomas (meses) | 0,376 | ||
média/d.p. | 138/112 | 159/124 | |
(mín. - máx.) | (12 - 360) | (30 - 363) | |
Diagnóstico (meses) | 0,247 | ||
média/d.p. | 121/105 | 100/74 | |
(mín. - máx.) | (12 - 360) | (22 - 396) | |
Tempo HD/TX (meses) | 0,006 | ||
média/d.p. | 80/75 | 41/36 | |
(mín. - máx.) | (8 - 324) | (6 - 144) | |
Pacientes c/ alguma doença associada | 40 (90,0) | 27 (71,0) | 0,022 |
d.p: Desvio padrão; mín: Mínimo; máx: Máximo; HD/TX: Hemodiálise/transplante.
Tabela 3 Escore total do BDI na amostra geral e por grupos
N | média | d.p. | mínimo | mediana | máximo | p* | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Escore total: | 100 | 9,1 | 7,1 | 0 | 8 | 37 | - |
tratamento: | |||||||
hemodiálise | 50 | 9,7 | 7,4 | 0 | 9,5 | 37 | 0,327 |
transplante | 50 | 8,5 | 7,0 | 0 | 8 | 33 | |
atividade laboral: | |||||||
Sim | 44 | 7,3 | 6,2 | 0 | 6 | 27 | 0,027 |
Não | 56 | 10,5 | 7,6 | 1 | 9,5 | 37 | |
dependentes: | |||||||
Sim | 46 | 9,6 | 7,4 | 0 | 9,5 | 37 | 0,378 |
Não | 50 | 8,6 | 7,2 | 0 | 7,5 | 33 | |
sexo: | |||||||
masculino | 50 | 7,8 | 6,0 | 0 | 7,5 | 26 | 0,105 |
feminino | 50 | 10,4 | 8,0 | 1 | 9 | 37 | |
estado civil: | |||||||
casado | 60 | 8,3 | 7,3 | 0 | 7 | 37 | 0,070 |
não casado** | 40 | 10,3 | 6,9 | 0 | 9 | 27 | |
tipo de doador***: | |||||||
vivo | 29 | 6,7 | 5,5 | 0 | 6,5 | 21 | 0,042 |
falecido | 21 | 11,0 | 8,3 | 1 | 10 | 33 |
*Nível de significância pelo teste de Mann-Whitney;
**Solteiro, viúvo, separado;
***Somente pacientes transplantados.
BDI: Beck Depression Inventory; DP: Desvio padrão; N: Número de pacientes.
Quanto à desesperança, avaliada pela escala BHS, 2% de cada grupo apresentou escore total maior que 8. Em relação à ideação suicida avaliada pela BSI, 4% do grupo em hemodiálise e 6% dos transplantados apresentaram escore total maior que 1, também sem diferença significante (p = 1,00). Quanto aos sintomas depressivos, 20% dos pacientes do grupo em hemodiálise e 12% dos transplantados apresentavam escore total do BDI maior que 14 pontos, sem diferença significante entre os grupos (p = 0,275).
É ampla a gama de pesquisas que indicam que o transplante renal, quando bem sucedido, dentre as possíveis modalidades terapêuticas para portadores de DRC, é a que propicia menores índices de morbidade, menor mortalidade e melhor qualidade de vida.13,14,26,27 Partindo desse pressuposto, avaliamos se o tipo de tratamento (transplante ou hemodiálise) também implicaria diferença na frequência apresentada dos sintomas de desesperança, depressão e ideação suicida, o que não ocorreu. Para esmerar a análise dos resultados, pela aplicação das escalas Beck, optamos por adotar duas formas de análise, ou seja, com variáveis numéricas contínuas ou com pontos de corte fixo pré-estabelecidos. Não foram detectadas diferenças estatisticamente significantes entre os grupos em hemodiálise e transplantados com relação aos sintomas estudados, nas duas formas de análise. Diante do exposto, alguns aspectos devem ser considerados, como o fato de existirem pesquisas que vão ao encontro de nossos achados, indicando que, mais importante do que o tipo de tratamento, é a sua evolução (que nos dois grupos transcorria bem), as características da personalidade do paciente e como ele lida com o adoecer.9,27,28 Com isso, não estão sendo questionados os possíveis benefícios do transplante renal, mas destacada a importância dos recursos adaptativos dos pacientes e de estar sendo bem sucedido em seu tratamento, seja qual for a opção terapêutica adotada. Não localizamos estudos que avaliassem os sintomas em questão, utilizando amostragem pareada, e que um dos critérios de inclusão fosse estar bem nas modalidades terapêuticas. Portanto, a comparação de alguns dos nossos achados é dificultada pela falta de pesquisas análogas. Estudar de forma comparativa pacientes em hemodiálise e transplantados requer cuidado, pois pode haver viés de seleção, visto que pacientes transplantados apresentam em geral menor média de idade e de número de comorbidades do que os em hemodiálise.13 O pareamento por sexo e idade entre os grupos, que foi utilizado nesse estudo, reduziu a possibilidade desse tipo de viés na análise.
A literatura relaciona como tendo influência sobre os sintomas analisados em nossa pesquisa os aspectos: idade, grau de instrução (nível educacional), estado civil, filhos, religião, hematócrito, etnia, tempo de diagnóstico e renda.13,14,28,29 O fato de não ter existido diferença entre os dois grupos (transplantados e em hemodiálise), em nenhum desses aspectos, pode ter atenuado a influência de mesmo o grupo em hemodiálise possuir mais dependentes, mais doenças associadas, maior tempo médio de TRS e não ter apresentado diferença significativa nos escores dos sintomas estudados em relação aos transplantados. Os parâmetros que apresentaram diferença significativa entre os grupos limitam a homogeneidade da amostra, mas são difíceis de serem contornados por refletirem diferenças concernentes à realidade de cada tratamento (exceto o número de dependentes). Por exemplo, o número de doenças associadas era esperado que fossem mais frequentes no grupo em hemodiálise do que entre os transplantados. Em contrapartida, não haver diferença entre os grupos quanto ao hematócrito era essencial, porque sintomas de anemia podem atuar como confundidores dos sintomas de depressão.13 A questão da diferença do tempo de tratamento entre os grupos é uma limitação do estudo. Mas vale considerar que, na nossa instituição, o enxerto renal com doador falecido tem expectativa de tempo de funcionamento menor do que o tempo que o paciente pode passar em tratamento hemodialítico.30 Não foi possível evitar essa diferença, mas ela foi atenuada em razão da inexistência de diferença estatisticamente significante quanto ao tempo da ocorrência dos primeiros sintomas e diagnóstico entre os dois grupos. Não houve relação estatística significante entre o escore total da BHS e as variáveis: tipo de tratamento; atividade laboral; dependentes; sexo; estado civil e tipo de doador. Mas 11% dos pacientes apresentaram escores classificados como acima do nível mínimo e 4% com escore total maior que 8. Como a BHS tem sido considerada um indicador direto de risco de suicídio quando o escore é acima ou igual a 9, as taxas encontradas merecem atenção.19,20,31 Pessoas com sintomas de desesperança acreditam que nada sairá bem. Sendo assim, são esperadas a desmotivação e condutas prejudiciais ao tratamento por acreditarem que o prognóstico será negativo. Portanto, o critério de só incluir pacientes bem sucedidos nas modalidades terapêuticas pode ter interferido na não detecção de sujeitos que estavam mal clinicamente devido a um quadro de desesperança. É provável que o critério de só incluir pacientes bem sucedidos nos tratamentos também tenha repercutido nos resultados das outras variáveis estudadas. Como no caso da presença de ideação suicida, pois esse critério restringiu a identificação de pacientes que tivessem apresentando como atitude suicida a não adesão ao tratamento, na medida em que a consequência dessa atitude é a má evolução clínica, que foi critério de exclusão para composição da amostra. Mesmo com essa limitação e com o fato de a maior parte dos sujeitos serem casados, religiosos e terem filhos, que são tidos como fatores protetores do suicídio, as taxas encontradas pela aplicação do BSI merecem atenção (4% em hemodiálise e 6% dos transplantados apresentaram escore total maior que 1),32 principalmente por terem facilidade de acesso ao meio de cometer suicídio (como o simples abandono do tratamento) e serem portadores de DRC, que são fatores de risco.11,12,17 A literatura coloca que o índice de suicídio é maior entre homens e o de tentativas entre as mulheres; o que foi observado no nosso estudo, pois os únicos sujeitos que já tinham tentado o suicídio eram do sexo feminino.32 A mortalidade é uma característica humana, mas não aceitar essa condição, ter dificuldade em lidar com limites é uma condição exacerbada pela modernidade.33 Suicidar-se diante do diagnóstico e enfrentamento da DRC, que tem alto índice de mortalidade, não deixa de ser uma tentativa de controlar o incontrolável, tanto que, mesmo com acentuada variação dos achados, as poucas pesquisas localizadas indicam que as taxas de suicídio são de 10 a 400 vezes maiores na população com DRC do que na população geral.10,11,17,27 Sendo assim, é extremamente importante a realização de estudos sobre suicídio nessa população, principalmente, associando com investigações acerca da desesperança, visto que essa é considerada como nexo causal entre depressão e suicídio.19,34
Quanto aos sintomas depressivos, a diferença não foi estatisticamente significante entre os grupos, dado que vai de encontro com outras pesquisas.21,34 Se a amostragem fosse maior, existiria a possibilidade de essa diferença ser captada como estatisticamente significante. Portanto, o número relativamente limitado de pacientes estudados deve ser citado como uma das limitações do estudo que pode ter restringido o poder estatístico de algumas comparações. Nos dois grupos, a frequência de sintomas depressivos encontrados foi acentuadamente maior do que na população geral, cuja maior parte dos estudos aponta para a prevalência de 3 a 5%.35,36 Esse achado também vai ao encontro da literatura vigente, que coloca a prevalência de sintomas depressivos em portadores de DRC como mais elevada do que na população geral e fica entre 5 e 30%.5,9,24,27,29,37-39 Há diversos estudos sobre depressão em pacientes em hemodiálise. Acreditamos que isso se deve ao fato dos achados convergirem para o dado de que a depressão é o transtorno psiquiátrico de maior incidência nos portadores de DRC.9,12,24,29,40 Essas pesquisas mostram que a prevalência de depressão em DRC é maior do que na população geral, mas as frequências relatadas variam amplamente, de 0 a 100%. As taxas de prevalência de sintomas depressivos nessa população ficam geralmente entre 5 e 30% e são congruentes com as encontradas em nossa amostragem.5,24,27,38,39,41 Os fatores que se mostraram relacionados com a frequência dos sintomas depressivos foram atividade laboral e tipo de doador.
Pacientes que não exerciam atividade laboral apresentaram mais sintomas depressivos do que pacientes que exerciam. O trabalho, quando gerador de sentido existencial, tem estreita relação com o autoconceito e a autopercepção do papel social. Nossos achados corroboram com os dados da literatura quanto à importância da atividade laboral, de se manter ativo, na redução de sintomas depressivos. A relação da ocupação regular com a melhoria da qualidade de vida e da menor incidência de transtornos mentais é destacada por diversos estudos.42,43 Pacientes transplantados, cujo doador era falecido, apresentaram mais sintomas depressivos do que pacientes cujo transplante foi realizado com doador vivo. É importante realizar maiores investigações acerca desse dado, com amostragens ampliadas, uma vez que não foram encontrados estudos análogos que viabilizassem a comparação desses resultados. O transplante renal e a doação são permeados por uma série de simbolismos que nosso estudo não objetivou analisar. Apesar de pacientes não casados não chegarem a ser considerados com mais sintomas depressivos do que os casados, a diferença entre eles ficou muito próxima da significância estatística, indicando, assim, uma tendência. Esse achado fortalece o conceito de que a família, a rede social, é um fator preventivo de psicopatologias, principalmente de sintomas depressivos.14,29 Mesmo o grupo em hemodiálise tendo mais dependentes, o fator da amostra ter sido homogênea quanto ao número de filhos e estado civil podem ter influenciado na não diferenciação da prevalência dos sintomas estudados entre os grupos. Alguns fatores que dificultam a comparabilidade de estudos sobre depressão são: utilização de instrumentos e parâmetros diagnósticos variados; diagnóstico feito por equipes com diversas formações e diferentes critérios de inclusão para a configuração da amostragem.14,38,40 Sobre os instrumentos e parâmetros diagnósticos, mesmo com o fato do BDI receber algumas críticas em virtude de computar na sua avaliação sintomas fisiológicos que poderiam ser concernentes à DR, o adotamos por ser a escala mais utilizada nessa população.38 Mas, para atenuar esse fator, lançamos mão de um ponto de corte maior do que o que é empregado para a população sem patologias e que é utilizado frequentemente em portadores DRC. Outro aspecto que pode ter diminuído a frequência dos sintomas depressivos foi o de nossa amostra ser composta por sujeitos com mais de 6 meses de tratamento, minimizando a variável decorrente do impacto diagnóstico, uma vez que estudos indicam que no início do tratamento a incidência de transtornos psiquiátricos é maior.27,29 Excluir sujeitos na fase de elaboração do diagnóstico de doença (renal) foi importante. Um exemplo disso é que sintomas, que poderiam ser pertinentes a um quadro de humor deprimido de cunho elaborativo, transitório, reativo ao recebimento de um diagnóstico de doença grave (como a DRC), podem ser caracterizados como um Episódio Depressivo (moderado), segundo a CID-10, e um quadro de Episódio Depressivo Maior segundo o DSM-IV se, por um período de duas semanas, o sujeito apresentar: humor deprimido, energia diminuída, insônia, perda de apetite e diminuição da capacidade de concentração. Isso alerta para o quanto um quadro de elaboração psíquica saudável, associado a alguns sintomas físicos, pertinentes à patologia, podem ser diagnosticados erroneamente, mesmo utilizando os critérios das duas maiores diretrizes (CID-10 e DSM IV). Mais uma vez, a amostragem ter sido composta por dois grupos que estavam indo bem nas modalidades terapêuticas pode ter gerado menor captação de sujeitos deprimidos, na medida em que estudos indicam que quanto melhor o estado físico, menor o risco de transtornos psiquiátricos.27,29 Entretanto, esse critério foi importante para a nossa pesquisa, visando à comparação entre tipos de TRS, excluindo-se, assim, a possibilidade que outros fatores clínicos pudessem interferir com os sintomas que foram objetivo desse estudo. Apesar da forte relação entre desesperança e depressão, nosso estudo corrobora com a concepção de que desesperança e depressão são, no mínimo, fenômenos parcialmente distintos,44 pois 26% dos sujeitos apresentaram escore maior que 14 no BDI, enquanto apenas 2% apresentaram escore maior que 8 no BHS. Assim como houve um sujeito que apresentou escore maior que 8 no BHS e não apresentou escore menor que 14 no BDI. Em conclusão, nossos achados indicam que sintomas depressivos são frequentes em pacientes com DRC em hemodiálise ou mesmo nos receptores de transplante renal. Além disso, sintomas de desesperança e de ideação suicida foram encontrados em ambos os grupos, embora em menor proporção que os sintomas depressivos. Esses achados são relevantes, considerando-se que avaliamos pacientes clinicamente estáveis nessas modalidades de TRS. Em virtude da importância da morbidade e da mortalidade associada a esses sintomas, do pequeno número de pesquisas que compararam simultaneamente essas modalidades de tratamento renal substitutivo, é justificada a ampliação do estudo para verificar se nossos resultados se sustentam e se os sintomas estudados na população portadora de DRC são mais influenciados por outras variáveis do que pelo tipo de tratamento.