versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.4 Rio de Janeiro 2019 Epub 08-Abr-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00100818
Access to water and sanitation services by the population of the Belo Horizonte Metropolitan Region, Minas Gerais State, Brazil, has been marked by processes of socio-spatial segregation and social exclusion. Considering the recognition, in 2010, of the human rights to water and sanitation by the United Nations, we seek to assess the adequate access to these services in the Belo Horizonte Metropolitan Region through the principle of equality and non-discrimination. We used microdata from the demographic censuses, years 2000 and 2010, from the Brazilian Institute of Geography and Statistics. We analyzed these data through descriptive and comparative statistical analysis, spatial analysis and multivariate analysis, so as to: determine the extent of the universalization of the adequate access to those services; assess the spatial dependence between municipalities regarding this access; identify and characterize possible access discrimination, by specific population groups. Results show an increase in the proportion of households with adequate access to water and sanitation services in the intercensus period; near lack spatial association, showing inequalities among the 34 municipalities of the Belo Horizonte Metropolitan Region; access inequalities among different population groups - according to household situation, income, race or color, sex and educational level - in a possible non compliance with the principle of non-discrimination.
Keywords: Water Supply; Sanitation; Social Inequity; Human Rights
El acceso a los servicios de agua y saneamiento por parte de la población de la Región Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, ha estado marcado por procesos de segregación socioespacial y exclusión social. Teniendo en vista el reconocimiento, en 2010, de los derechos humanos al agua y al saneamiento por las Naciones Unidas, se busca analizar el acceso adecuado a esos servicios en la Región Metropolitana de Belo Horizonte, a través del principio de la igualdad y no discriminación. Se utilizaron microdatos provenientes de los censos demográficos del Instituto Brasileño de Geografía y Estadística, en los años 2000 y 2010. Estos se sometieron a un análisis estadístico descriptivo y comparativo, análisis espacial y análisis multivariado, buscando: dimensionar la universalización del acceso adecuado a los servicios; analizar la dependencia espacial entre los municipios en lo que se refiere a tal acceso; identificar y caracterizar una posible discriminación en el acceso, por parte de determinados grupos poblacionales. Los resultados permitieron observar: un aumento en la proporción de domicilios con acceso adecuado a los servicios de agua y saneamiento durante el período intercensitario; casi inexistencia de asociación espacial, demostrando que existen desigualdades entre los 34 municipios que componen la Región Metropolitana de Belo Horizonte; desigualdades en el acceso entre diferentes grupos poblacionales -según la situación del domicilio, renta, color o raza, sexo y escolaridad-, en posible desacuerdo con el principio de la no discriminación.
Palabras-clave: Abastecimiento de Agua; Saneamiento; Inequidad Social; Derechos Humanos
O acesso aos serviços públicos de saneamento é indispensável para a saúde humana 1. A falta desses serviços pode acarretar uma série de doenças infectoparasitárias 2,3, além de tornar insalubres os agrupamentos humanos nos ambientes urbano e rural. Não obstante, no Brasil, historicamente os grupos marginalizados, como comunidades rurais, pobres e a população residente em assentamentos informais, sofrem mais do que outros grupos com a falta de tais serviços 4. Como afirmam Rezende & Heller 5 (p. 41), “a trajetória histórica do saneamento no país é inseparável dos outros aspectos do desenvolvimento, sobretudo os econômicos, sociais, políticos e culturais”.
O diagnóstico da situação do saneamento básico no Brasil realizado pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) demonstra o déficit que a população rural do país tem em relação ao acesso aos serviços, além de outras iniquidades relacionadas ao rendimento domiciliar, escolaridade e outras características populacionais 6.
Esse quadro está relacionado ao crescimento desordenado das cidades brasileiras que vem trazendo como consequência, dentre outras, a segregação dos mais pobres 7,8,9,10.
Segundo Mendonça et al. 11, a trajetória da formação de Belo Horizonte, Minas Gerais, e de sua região metropolitana foi marcada por processos de segmentação e segregação socioespacial. Assim, a exclusão social também se manifesta no acesso aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Belo Horizonte foi inaugurada em 1897 e toda sua história é perpassada pela defasagem entre o crescimento da população e a capacidade dos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário 12.
Nesse cenário, o reconhecimento do acesso à água e ao esgotamento sanitário como direitos humanos pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (UNGA) 13 e pelo Conselho de Direitos Humanos 14, abriu novas possibilidades políticas, conceituais e analíticas para se pensar esse quadro. A partir dali os Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário (DHAES) passaram a ser direitos independentes e não implícitos no direito humano a um nível de vida que assegure saúde e bem-estar 15 - tal como prescreve o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos16.
O direito humano à água confere a todos o direito ao acesso à água suficiente, segura, aceitável, física e economicamente acessível, e o direito humano ao esgotamento sanitário a serviços que assegurem privacidade e dignidade, física e economicamente acessíveis, higiênicos, seguros e culturalmente aceitáveis 14,17.
Embora não exista no Brasil norma jurídica expressa sobre o direito fundamental à água e ao esgotamento sanitário, ele é consequência de princípios constitucionais e preâmbulo para a garantia da dignidade humana e acesso a um ambiente saudável, conforme o art. 225 da Constituição Federal de 1988. O Brasil vincula-se também às resoluções de 2010 do Conselho de Direitos Humanos e da UNGA, que consagraram os DHAES.
O processo de urbanização que ocorreu de forma desordenada na Região Metropolitana de Belo Horizonte, coloca reflexões à luz dos direitos humanos. Em assentamentos informais, “o regime de titularidade jamais deve ser invocado como justificativa para negar o acesso à água e ao saneamento” 17 (Caderno 2, p. 16). Outro desafio consiste em fornecê-los a preços acessíveis às pessoas 18.
Nesse contexto, o objetivo do trabalho é analisar o acesso aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário da população residente na Região Metropolitana de Belo Horizonte, na perspectiva dos direitos humanos - em seu princípio de igualdade e não discriminação - oferecendo referências para a atuação do poder público na universalização do acesso aos DHAES.
A análise dos DHAES valendo-se desse princípio é importante por ser transversal a todos os direitos humanos, estando presentes nos artigos 1º e 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e artigo 2º do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais19. Os principais tratados de direitos humanos que entraram em vigor desde a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos contêm obrigações legais para assegurar a igualdade 17. Além disso, é um princípio destacado no Comentário Geral nº 15 da Organização das Nações Unidas (ONU) 20, que estabeleceu os atributos normativos dos DHAES, nos quais se explicita a não discriminação de grupos populacionais por questões relacionadas à raça, sexo, idade, estado de saúde e outras características.
Assim, o trabalho visou, especificamente, a: (i) analisar o princípio da igualdade dimensionando-se a universalização do acesso adequado aos serviços e identificando possíveis associações espaciais entre os municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, no que se refere a tal acesso; e (ii) analisar a não discriminação por meio da identificação de possíveis desigualdades no acesso por parte de grupos populacionais e explorar suas características.
O trabalho foi realizado visando a analisar a Região Metropolitana de Belo Horizonte como um todo. Para as análises foram selecionadas as “categorias de adequação do atendimento aos serviços” e, em seguida, identificaram-se dados apropriados às análises com base em tais categorias.
Foram adotadas as categorias estabelecidas no PLANSAB 6:
Abastecimento de água “adequado”: domicílios com acesso à rede geral de distribuição de água ou poço, ou nascente dentro ou fora da propriedade, ambas as formas com canalização em pelo menos um cômodo;
Abastecimento de água “inadequado”: domicílios com rede geral de distribuição ou poço, ou nascente dentro ou fora da propriedade, mas com canalização apenas na propriedade ou sem canalização. As demais formas de abastecimento - carro-pipa, água da chuva armazenada em cisterna ou de outra forma e rios, açudes, lagos e igarapés - também foram consideradas inadequadas;
Esgotamento sanitário “adequado”: domicílios que dispõem de rede geral de esgoto ou pluvial, ou que utilizam fossa séptica;
Esgotamento sanitário “inadequado”: demais tipos de esgotamento, ou seja: fossa rudimentar, vala, rio, lago ou mar e outros.
Tal seleção foi orientada pela busca de dados para construir as categorias de serviços “adequados” e “inadequados”, cobrindo toda a Região Metropolitana de Belo Horizonte. Assim, utilizaram-se microdados provenientes do questionário amostral dos censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos anos de 2000 e 2010 (http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/default_microdados.shtm, acessado em 11/Set/2016), uma vez que o questionário do universo não abrangia informações de interesse do estudo.
A construção das categorias de adequação do acesso aos serviços foi feita usando-se as variáveis censitárias: “forma de abastecimento de água”; “existência de canalização para água na propriedade”; e “tipo de esgotamento sanitário”.
Os microdados censitários de 2000 e 2010 foram submetidos a análises descritivas, visando a dimensionar a proporção da população total com acesso adequado aos serviços, e a análises comparativas para explorar possíveis avanços temporais.
Como este é um estudo de uma região metropolitana, realizou-se análise espacial buscando identificar possíveis associações entre municípios, que refletem desigualdades no nível de acesso adequado aos serviços. Para tanto, foram gerados, para os anos de 2000 e 2010, os Índices de Moran Global e Local 21.
O Índice de Moran Global mede a autocorrelação espacial com base nos produtos dos desvios em relação à média, indicando o grau de associação presente no conjunto total de dados. Varia de -1 a 1, sendo que valores próximos a -1 denotam um padrão bastante disperso; valores próximos a 0 indicam aleatoriedade espacial; e próximos a 1 denotam um padrão espacial concentrado.
O Índice de Moran Local quantifica o grau de associação espacial a que cada localização do conjunto amostral está submetido em função de um modelo de vizinhança preestabelecido 22. Esse índice tem uma proporcionalidade direta com os valores da autocorrelação global e permite inferir padrões locais de autocorrelação espacial, identificando clusters ou outliers estatisticamente significantes.
Esta análise visou a identificar possíveis desigualdades no acesso adequado aos serviços, por parte de certos grupos populacionais, que podem sugerir um padrão de discriminação. Entende-se por “discriminação” toda distinção, exclusão ou restrição que objetive ou resulte no prejuízo ou supressão “do reconhecimento, gozo ou exercício, em pé de igualdade com outros direitos humanos e liberdades fundamentais, nas esferas política, econômica, social, cultural e civil ou qualquer outra esfera” 17 (Caderno 7, p. 10).
Para tanto, utilizaram-se os dados do Censo Demográfico de 2010, que foram submetidos à análise de regressão logística, uma vez que o objetivo aqui foi investigar a “existência” ou “inexistência” de acesso adequado aos serviços 23,24. Dessa forma, pode-se determinar a relação entre a variável que se busca explicar (variável dependente) e as variáveis explicativas (variáveis independentes), e medir a razão de chances (OR) 25.
Considerando-se que o artigo visa aos princípios da igualdade e não discriminação, na construção do modelo foram incluídas todas as variáveis estatisticamente significantes capazes de explicar as variáveis resposta (o acesso adequado aos serviços de água e esgoto). Dessa forma, foi possível gerar ORs para analisar as diferenças no acesso a serviços adequados considerando-se diferentes fatores (variáveis independentes), listados no Quadro 1.
Fonte: elaboração própria, com base nos dados do Censo Demográfico de 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítica).
Quadro 1 Variáveis independentes utilizadas no estudo das desigualdades no acesso adequado a serviços de água e esgoto na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, em 2010.
Como se pode observar na Tabela 1, os resultados demonstram que a população da Região Metropolitana de Belo Horizonte, em seu conjunto, conta com uma cobertura dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário elevada, se comparada com a média nacional: o PLANSAB aponta, em 2010, um déficit em abastecimento de água de cerca de 40% da população total, e de 60% em esgotamento sanitário 6.
Tabela 1 Proporção (%) de domicílios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, com acesso adequado aos serviços de água e esgotamento sanitário, em 2000 e 2010.
Serviço | 2000 | 2010 |
---|---|---|
Abastecimento de água | 96,0 | 97,1 |
Esgotamento sanitário | 79,3 | 87,7 |
Fonte: elaboração própria, com base nos dados dos censos demográficos de 2000 e 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
No período analisado, observou-se aumento da proporção de domicílios com acesso adequado a ambos os serviços.
Tais resultados expressam a situação de toda a população da Região Metropolitana de Belo Horizonte, mas escamoteiam as disparidades entre os municípios. A análise dos dados por município mostra que, em 2000, a adequação no acesso ao serviço de abastecimento de água variou de 77% (Jaboticatubas) a 98% (Florestal, Contagem e Belo Horizonte) e, em 2010, de 75% (Taquaraçu de Minas) a 99% (Rio Acima e Florestal). No serviço de esgotamento sanitário, a situação variou, em 2000, de 0% (Rio Manso) a 92% (Belo Horizonte) e, em 2010, de 1% (Confins) a 96% (Belo Horizonte).
No entanto, em todos os municípios ocorreu um aumento dos domicílios com acesso adequado a ambos os serviços, tal como se observou para a Região Metropolitana de Belo Horizonte como um todo.
No que se refere à água, não se observou padrão claro de distribuição espacial dos municípios relativamente à proporção de domicílios com acesso adequado aos serviços. No período mais recente (2010), nenhum padrão espacial estatisticamente significativo foi encontrado. No período mais antigo (2000), observou-se um padrão estatisticamente significativo, mas o valor do Índice de Moran Global foi muito baixo (0,21).
O Índice de Moran Local mostrou alguns clusters locais e outliers estatisticamente significantes. Em 2000, destaca-se um cluster “baixo-baixo” na porção norte da Região Metropolitana de Belo Horizonte, composta por Baldim, Jaboticatubas e Taquaraçu de Minas, municípios com baixas taxas de acesso adequado a serviços de abastecimento de água, rodeados por municípios vizinhos em situação similar. Observou-se também um cluster “alto-alto” formado por Belo Horizonte e Contagem, municípios com elevada proporção de domicílios com acesso adequado, localizados próximos a municípios na mesma situação. Naquele ano, observou-se também um outlier (Esmeraldas), município com baixa proporção de domicílios com acesso adequado, localizado próximo a municípios com altas proporções. Em 2010, observou-se, novamente, um cluster do tipo “baixo-baixo” na porção norte da Região Metropolitana de Belo Horizonte - representada pelo Município de Jaboticatubas - sugerindo a permanência de uma situação de precariedade no local, e também dois outliers do tipo “baixo-alto”: São Joaquim de Bicas e Raposos, municípios com uma baixa proporção de domicílios com acesso adequado, próximos a municípios com altas proporções.
Os resultados observados em 2000 e 2010 são apresentados nas Figuras 1 e 2 , respectivamente.
Figura 1 Índice de Moran Local para o acesso adequado aos serviços de água na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2000.
Também no acesso adequado a serviços de esgotamento sanitário não se identificou um padrão claro dos municípios na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Embora um padrão espacial estatisticamente significante tenha sido identificado com o Índice de Moran Local em 2000 e 2010, os valores do Índice de Moran Global foram muito baixos nos dois anos (respectivamente, 0,21 e 0,13), indicando um padrão espacial praticamente aleatório em nível global.
Entretanto, destaca-se, em 2000, um cluster do tipo “alto-alto” nas porções central e leste da Região Metropolitana de Belo Horizonte, formadas por Belo Horizonte, Nova Lima, Sabará, Raposos e Caeté, municípios com altas taxas de acesso adequado, próximos a municípios na mesma situação. Em 2010, um cluster do mesmo tipo foi formado pelos municípios de Belo Horizonte, Nova Lima e Contagem. Ainda nesse ano, identificou-se um outlier do tipo “baixo-baixo” (Capim Branco), município com baixa proporção de domicílios com acesso adequado, próximo a municípios vizinhos em situação similar.
Os resultados observados em 2000 e 2010 são apresentados nas Figuras 3 e 4, respectivamente.
Figura 3 Índice de Moran Local para o acesso adequado aos serviços de esgoto na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2000.
Conforme é possível observar na Tabela 2, a variável “instrução do responsável pelo domicílio” não foi estatisticamente significante no que se refere ao serviço de abastecimento de água. Entretanto, na Tabela 3, observa-se que todas as variáveis estudadas apresentaram-se associadas à condição de ter acesso adequado ao esgotamento sanitário.
Observou-se que as variáveis “renda domiciliar” e “situação do domicílio” demonstraram maiores desigualdades entre os grupos populacionais para o abastecimento de água e para o esgotamento sanitário, pois em ambas as razões de chance alcançaram os maiores valores, demonstrando sua importante influência no acesso adequado aos serviços.
Tabela 2 Modelo de regressão logística utilizado para análise da variável “Abastecimento de Água Adequado” nos domicílios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2010 (N = 1.505.011).
Variáveis | % | Valor de p | OR | IC95% |
---|---|---|---|---|
Renda domiciliar (salários mínimos) | ||||
Até 1,5 | 15,4 | 0,000 | Referência | |
Mais de 1,5 a 3 | 28,2 | 0,000 | 1,52 | 1,37-1,69 |
Mais de 3 a 5 | 21,8 | 0,000 | 1,93 | 1,70-2,18 |
Mais de 5 a 10 | 19,6 | 0,025 | 2,21 | 1,92-2,54 |
Mais de 10 | 15,0 | 0,000 | 2,78 | 2,31-3,34 |
Situação do domicílio | ||||
Rural | 1,8 | 0,000 | Referência | |
Urbano | 98,2 | 0,000 | 6,51 | 5,84-7,27 |
Cor da pele da pessoa responsável pelo domicílio | ||||
Não branca | 60,0 | 0,000 | Referência | |
Branca | 40,0 | 0,007 | 1,32 | 1,21-1,44 |
Sexo da pessoa responsável pelo domicílio | ||||
Masculino | 59,7 | 0,000 | Referência | |
Feminino | 40,3 | 0,000 | 1,19 | 1,09-1,30 |
IC95%: intervalo de 95% de confiança; OR: razão de chances.
Fonte: elaboração própria, com base nos dados do Censo Demográfico de 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Tabela 3 Modelo de regressão logística utilizado para análise da variável “Esgotamento Sanitário Adequado” nos domicílios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2010 (N = 1.505.011).
Variáveis | % | Valor de p | OR | IC95% |
---|---|---|---|---|
Renda domiciliar (salários mínimos) | ||||
Até 1,5 | 15,4 | 0,000 | Referência | |
Mais de 1,5 a 3 | 28,2 | 0,000 | 1,29 | 1,22-1,36 |
Mais de 3 a 5 | 21,8 | 0,000 | 1,79 | 1,68-1,90 |
Mais de 5 a 10 | 19,6 | 0,000 | 2,53 | 2,36-2,73 |
Mais de 10 | 15,0 | 0,000 | 4,53 | 4,02-5,10 |
Situação do domicílio | ||||
Rural | 1,8 | 0,000 | Referência | |
Urbano | 98,2 | 0,000 | 11,76 | 10,81-12,78 |
Nível de instrução da pessoa responsável pelo domicílio | ||||
Sem instrução ou Fundamental incompleto | 43,7 | 0,000 | Referência | |
Fundamental completo ou Médio incompleto | 15,8 | 0,000 | 1,31 | 1,24-1,38 |
Médio completo ou Superior incompleto | 26,1 | 0,000 | 1,84 | 1,74-1,94 |
Superior completo | 14,4 | 0,000 | 4,00 | 3,53-4,53 |
Cor da pele da pessoa responsável pelo domicílio | ||||
Não Branca | 60,0 | 0,000 | Referência | |
Branca | 40,0 | 0,000 | 1,39 | 1,33-1,45 |
Sexo da pessoa responsável pelo domicílio | ||||
Masculino | 59,7 | 0,000 | Referência | |
Feminino | 40,3 | 0,000 | 1,31 | 1,26-1,37 |
IC95%: intervalo de 95% de confiança; OR: razão de chances.
Fonte: elaboração própria, com base nos dados do Censo Demográfico de 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Os resultados demonstram que, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, o acesso a serviços de esgotamento sanitário é inferior ao de abastecimento de água, o que possivelmente decorre da histórica priorização de investimentos em abastecimento de água como padrão das políticas adotadas no Brasil 5. No entanto, entre 2000 e 2010 houve maior elevação no acesso a esses serviços do que nos serviços de água. Os valores da cobertura para o abastecimento de água, já próximos a 100% em 2000, possivelmente explicam a menor elevação da cobertura por esses serviços.
Outro aspecto a ser observado é a diferença na amplitude no acesso adequado aos serviços de água nos municípios, nos dois períodos: em 2000, variou de 77% a 98% e, em 2010, 75% a 99%. Portanto, houve um aumento da distância entre os porcentuais máximo e mínimo nos dois períodos. O mesmo observou-se com relação ao acesso adequado ao esgotamento sanitário: em 2000 variou de 0% a 92% e, em 2010, de 1% a 96%, revelando um aumento da distância entre os percentuais máximo e mínimo no período. Tal aumento na amplitude entre os percentuais máximo e mínimo indica que, no período estudado, houve um aprofundamento da desigualdade no acesso a ambos os serviços.
Finalmente, é importante salientar, como já mencionado, que em todos os municípios ocorreu um aumento dos domicílios com acesso adequado a ambos os serviços, tal como foi observado para a Região Metropolitana de Belo Horizonte como um todo. Esse é um aspecto que demonstra aumento progressivo do cumprimento dos DHAES, em acordo com o artigo 2º do Pacto Internacional sobre Direitos Culturais Econômicos e Sociais de 1966, que preconiza a adoção, pelos Estados, de medidas progressivas para a realização dos direitos utilizando o máximo de recursos disponíveis 19. Esta análise não oferece elementos suficientes para captar se o máximo de recursos disponíveis foi efetivamente mobilizado para a ampliação do acesso na década. Contudo, é possível presumir que maiores avanços seriam factíveis, pois a Região Metropolitana de Belo Horizonte conta com elevada capacidade de geração de receitas em serviços de água e esgotos e, por outro lado, a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA) - principal prestadora de serviços na região - vem sistematicamente transferindo seus superávits financeiros para seus acionistas, reduzindo sua capacidade de investimento 26.
Os baixos valores observados no Índice de Moran Global, para ambos os serviços, nos dois períodos, indicam que na Região Metropolitana de Belo Horizonte não se observou dependência espacial entre os municípios na prestação desses serviços.
Os resultados sugerem não existir uma relação entre os municípios no que se refere à proporção de domicílios com serviços adequados de água e esgoto. Tais variáveis se manifestam em cada município de forma independente, não havendo um padrão espacial global na distribuição dessas proporções na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Mesmo não se identificando um perfil geral da distribuição espacial dos municípios, em ambos os períodos foram observados clusters e outliers, sugerindo instabilidade em certas porções da Região Metropolitana de Belo Horizonte e demonstrando as desigualdades espaciais no acesso a ambos os serviços.
Os resultados demonstram que, em 2010, domicílios com rendimentos acima de dez salários mínimos tinham cerca de três vezes mais chances de acesso adequado ao serviço de abastecimento de água e 4,5 mais chances ao serviço de esgotamento sanitário, quando comparados com domicílios de até 1,5 salário mínimo de rendimentos. Tal distância de oportunidade de acesso se torna mais grave porque, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, observou-se um número maior de domicílios com baixa renda.
Esses resultados corroboram o fato de que nas áreas de privação socioeconômica mais elevada se concentram a falta de investimento em infraestrutura de saneamento 27,28,29. Dessa forma, os pobres têm o usufruto dos direitos humanos restringido, vivendo muitas vezes em assentamentos informais, sem prestação adequada de serviços.
A promoção da igualdade implica tratar o que é desigual de forma desigual, requerendo a adoção de políticas públicas voltadas para populações de menor renda, dado o caráter multidimensional da pobreza 30.
Quanto à situação do domicílio, observou-se que a Região Metropolitana de Belo Horizonte abriga reduzida proporção de residências localizadas em área rural (cerca de 2%). No entanto, domicílios localizados na área urbana tinham 6,5 vezes mais chances de contar com abastecimento de água adequado e quase 12 vezes mais chances de ter acesso a esgotamento sanitário adequado, se comparados aos de áreas rurais.
As desigualdades de acesso especialmente ao esgotamento sanitário seguem a tendência brasileira e de diversos outros países, em que há déficit mais elevado nas áreas rurais. O primeiro relatório global sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 203031, de 2015, revela que 2% da população mundial em área urbana não tinham acesso a uma fonte melhorada de água, contra 10% da população rural. Nas áreas urbanas, 5% da população não tinham acesso melhorado ao esgotamento, contra 19% em áreas rurais.
Quase 60% dos responsáveis pelos domicílios registrados na Região Metropolitana de Belo Horizonte eram do sexo masculino. No entanto, observou-se que a chance de um domicílio com responsável do sexo feminino ter acesso à água de forma adequada, em 2010, era 19% mais elevada do que em domicílios com responsável do sexo masculino. No caso do serviço de esgotamento sanitário, essa chance estava acima de 31%.
Tais resultados foram também observados por Rezende et al. 32 (p. 98), sugerindo que, no Brasil, “entre os homens, a chance de chefiar um domicílio atendido com redes de água e esgotos é menor que a das mulheres...”.
Esse é um resultado positivo para a Região Metropolitana de Belo Horizonte no que se refere aos grupos vulneráveis, pois mulheres e meninas sofrem maior discriminação no que diz respeito ao usufruto de tais direitos 30.
Observou-se que domicílios com responsáveis com “pele branca” apresentavam uma chance mais elevada em 32% de ter acesso adequado ao abastecimento de água e em 39% de ter acesso ao esgotamento sanitário, quando comparados com domicílios com chefes de pele “não branca”. Tal diferença se agrava porque, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, 60% dos chefes de domicílio são da categoria “pele não branca” (cor da pele preta, parda, indígena ou amarela).
Embora os números registrados na Região Metropolitana de Belo Horizonte não sejam suficientes para evidenciar um “racismo ambiental” nos moldes estadunidenses 33,34, são importantes para melhor analisar e compreender as desigualdades presentes nas cidades brasileiras 35.
Conforme já assinalado, esta variável mostrou-se estatisticamente significante somente para o acesso ao esgotamento sanitário, observando-se que residências cujos responsáveis tinham curso “superior completo” apresentavam quatro vezes mais chances de ter acesso adequado ao serviço do que aquelas com responsáveis sem instrução ou com ensino fundamental incompleto. Tal discriminação é agravada porque 44% dos responsáveis pelos domicílios da Região Metropolitana de Belo Horizonte apresentam tal escolaridade, refletindo a realidade brasileira, em que 51% dos responsáveis pelo domicílio, no ano de 2010, possuíam este nível de instrução (IBGE. Sistema de Recuperação Automática. https://sidra.ibge.gov.br/tabela/3517#resultado, acessado em 20/Set/2016).
Os resultados aqui apresentados estão de acordo com estudo anterior, que indica melhorias na Região Metropolitana de Belo Horizonte no decorrer da última década, evidenciadas pelos indicadores econômicos, de escolaridade, ocupação e longevidade da população, inclusive no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal 36. Contudo, não foram observadas transformações nas profundas desigualdades dos municípios periféricos em relação aos municípios mais centrais da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Aqueles municípios são marcados pela falta de planejamento 37, indicando a necessidade de maior atenção governamental a essas localidades, priorizando políticas públicas que promovam a equidade e a não discriminação no acesso aos serviços.
A legislação existente aponta nessa direção. No âmbito estadual, leis complementares estabelecem que na gestão da Região Metropolitana de Belo Horizonte devem ser observados os princípios de redução das desigualdades sociais e territoriais 38 e preconizam a integração dos sistemas de abastecimento e esgoto sanitário do aglomerado metropolitano 39. Mais recentemente, o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte propõe uma Política Metropolitana Integrada de Saneamento Básico 40, o que poderá alterar o quadro de dispersão e baixa dependência espacial evidenciado pelos resultados apresentados. Além disso, a Lei Federal do Saneamento Básico preconiza a universalização e equidade dos serviços de saneamento no Brasil 41.
Dessa forma, o reconhecimento dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário corrobora a ideia do acesso universal, sem discriminação a estes serviços, que são de suma importância para a dignidade do cidadão. Nesse campo, o Brasil e seus entes subnacionais têm claras obrigações legais de cumprir progressivamente com esses direitos e, sobretudo, de não os violar, o que é respaldado pelos tratados internacionais e pela legislação nacional.
É evidente que todos ou alguns desses atributos frequentemente são aplicados aos mesmos moradores, mas a visibilização desses padrões de discriminação pode ter papel relevante no enquadramento das políticas públicas. Além disso, uma política de saneamento voltada a não discriminação deve levar em conta outros padrões de exclusão, não abordados neste trabalho, como de pessoas que vivem em situação de rua, migrantes e refugiados, habitantes de ocupação urbana, estudantes de escolas rurais e da periferia urbana, pessoas privadas de liberdade.
É importante destacar que, no Brasil, existem poucos estudos que analisam o acesso à água e ao esgotamento sanitário na perspectiva dos direitos humanos 42,43,44,45. Dessa forma, o presente trabalho representa uma contribuição original e a metodologia empregada tem potencial de replicação em outras regiões metropolitanas e territórios do país.
Por fim, cabe assinalar a importância de se desenvolver estudos que focalizem o alcance dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário para além dos princípios de igualdade e não discriminação, evocando a base normativa dos direitos, ou seja: disponibilidade, acessibilidade física, aceitabilidade, acessibilidade econômica, qualidade e segurança, além de privacidade e dignidade para o esgotamento sanitário.