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Desigualdades de gênero na mortalidade por causas externas no Brasil, 2010

Desigualdades de gênero na mortalidade por causas externas no Brasil, 2010

Autores:

Erly Catarina de Moura,
Romeu Gomes,
Marcia Thereza Couto Falcão,
Eduardo Schwarz,
Alice Cristina Medeiros das Neves,
Wallace Santos

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123

Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.3 Rio de Janeiro mar. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015203.11172014

Introdução

Desigualdades e gênero são temas que se encontram mutuamente relacionados. No século passado, o movimento feminista começou a empregar a expressão gênero para denunciar a inadequação das explicações existentes para as desigualdades entre mulheres e homens1. Nesse sentido, as explicações decorrentes das diferenças entre sexos podem se libertar de um determinismo biológico e ampliar a discussão, situando-a no âmbito da organização social da relação entre os sexos. A partir das últimas décadas do século XX o campo da saúde tem progressivamente incorporado a perspectiva de gênero visando compreender as relações que se estabelecem entre homens e mulheres na sociedade e suas repercussões para o estado de saúde, adoecimento e morte, bem como o acesso e a utilização de serviços de saúde2. Assim, gênero - utilizado como uma categoria analítica - pode subsidiar o desenvolvimento de hipóteses explicativas para as diferenças dos perfis de mortalidade e morbidade, incluindo as causas externas, segundo sexo.

No Brasil, as causas externas (acidentes e violências) têm sido o grupo que mais revela a desigualdade entre homens e mulheres na população adulta de 20 a 59 anos de idade3. Embora tenha havido uma queda destas taxas na última década, a redução ainda é discreta (7%) e coloca o país num padrão mundial de mortalidade diferenciada conforme ilustra Abouzhar et al.4, desafiando diversos setores para a reflexão e resolução da complexidade deste fenômeno.

Há mais de uma década, a literatura5 - 7 tem chamado especial atenção para o comportamento mais agressivo e arriscado dos homens, o que pode explicar a maior ocorrência de mortes por causas externas em comparação às mulheres. Por outro lado, se forem levadas em conta as considerações de Bourdieu8 sobre a violência simbólica, mulheres podem ser alvo da dominação masculina sem que sejam reconhecidas como vítima de violência9. Coloca-se, ainda, que a compreensão dos modelos diferenciais de gênero é fundamental para a elaboração de estratégias direcionadas à redução desta desigualdade e da taxa de mortes por causas externas no geral.

Neste sentido, este artigo estima as razões das taxas de mortalidade por causas externas e, em específico, por agressões e suicídios, nas unidades federativas do país e avalia o risco de morrer conforme características sociodemográficas, sob a perspectiva relacional de gênero.

Métodos

Os dados foram obtidos do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) da Secretária de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, num total de 241.276 óbitos no sexo masculino e 112.386 no feminino para o ano de 2010. Por conta da extensão territorial do país, da investigação de causas de óbitos e da busca ativa há uma delonga no fechamento do banco de dados nacional, que varia de dois a três anos, sendo mundialmente considerado um dos mais rápidos.

Em 2010, a cobertura estimada dos óbitos ocorridos no país foi igual a 94,2%, de modo que os dados brutos foram corrigidos utilizando-se fatores do estudo sobre busca ativa de óbitos10 conforme unidade federada (UF), sexo e faixa etária11.

A causa básica do óbito foi nomeada segundo os capítulos da Classificação Internacional de Doenças - CID-1012, sendo o capítulo XX - causas externas o foco deste estudo.

Utilizou-se método direto para padronização das taxas de mortalidade por idade, tendo a média da população masculina e feminina de 2010 por faixa decenal de idade (20 a 59 anos de idade) como padrão. Foram calculados os coeficientes brutos (por faixa etária e total) e padronizados por idade conforme local de moradia (Unidade da Federação, regiões e país). Adicionalmente, a razão entre os coeficientes de mortalidade entre homens e mulheres também foi computado.

A variável dependente - causas externas - foi dicotomizada em sim ou não. As variáveis independentes foram: idade (50-59, 40-49, 30-39 e 20-29 anos), região de residência (Sudeste, Sul, Centro-Oeste, Nordeste e Norte), raça/cor (preta, amarela, branca, parda e indígena), escolaridade (≥ 8 e < 8 anos de estudo) e estado conjugal estável (sim e não), ordenadas conforme ordem decrescente de ocorrência, de modo a facilitar o uso do teste de tendência conforme as categorias de cada variável. Razões de probabilidade bruta de morte por causa externa foram calculadas por sexo, separadamente para cada variável independente, utilizando-se modelo de regressão de Poisson e nível de significância (p) de 5%. Razões de probabilidade ajustadas por todas as variáveis também foram calculadas por regressão de Poisson com intervalo de confiança de 95%. A aplicação do modelo de Poisson permite avaliar a forma e a intensidade da associação entre morte por causa externa - evento incidente - e demais variáveis, tendo sido utilizado em outros estudos sobre mortalidade13 para avaliação de tendências.

Identificaram-se os principais tipos de óbitos, segundo grupamentos do CID-10. A fim de diferenciar casos de violência, computaram-se os coeficientes específicos de mortalidade por agressões e por suicídios.

Resultados

A Tabela 1 mostra que o coeficiente padronizado de mortalidade por causas externas é muito maior entre os homens (178 por cem mil habitantes) do que entre as mulheres (24 por cem mil habitantes). Os coeficientes são maiores entre os homens mais jovens (20 a 29 anos) em todas as regiões e diminuem com o aumento da idade. Entre as mulheres, este padrão acontece somente na região Centro-Oeste. Nas demais regiões, os coeficientes diminuem da primeira faixa etária (20 a 29 anos) para a segunda (30 a 39 anos), voltando a aumentar na terceira (40 a 49 anos) ou na quarta (50 a 59 anos), atingindo valores muito próximos ao das mulheres mais jovens, à exceção da região Sul, que basicamente estabiliza a queda a partir dos 30 anos de idade.

Tabela 1. Coeficiente (por 100 mil habitantes) de mortalidade ajustada e razão de risco de mortalidade por causas externas, segundo local de residência e sexo. Brasil, 2010. 

Homens Mulheres
Bruto Ajustado Bruto Ajustado
Local Idade (anos) Idade (anos) Razão de
20-29 30-39 40-49 50-59 20-29 30-39 40-49 50-59
risco*
Norte 294 218 194 172 229 28 24 24 27 26 8,9
RO 272 230 237 207 241 27 37 33 61 37 6,5
AC 158 187 120 139 154 32 24 11 17 22 6,9
AM 262 184 158 147 197 21 19 20 25 21 9,4
RR 243 235 203 154 216 41 45 49 43 44 4,9
PA 333 239 202 170 249 29 23 23 18 24 10,3
AP 294 211 179 208 230 21 12 28 26 21 11,1
TO 269 183 213 203 221 35 30 26 35 31 7,0
Nordeste 308 223 174 156 227 28 24 24 27 26 8,8
MA 285 204 158 138 208 29 28 23 27 27 7,7
PI 217 177 140 142 175 24 24 20 28 24 7,3
CE 301 238 189 189 238 26 20 27 31 25 9,4
RN 228 188 167 140 188 28 26 21 26 26 7,3
PB 307 221 158 147 221 25 19 23 24 23 9,7
PE 306 216 179 155 226 27 23 26 26 25 8,9
AL 458 303 239 176 316 32 32 24 22 29 11,1
SE 283 248 199 176 235 29 27 25 35 29 8,2
BA 334 225 163 145 232 28 24 24 26 26 9,0
Sudeste 172 137 120 117 140 21 19 21 22 21 6,8
MG 193 151 129 123 155 25 25 25 25 25 6,2
ES 305 223 199 185 237 35 36 33 30 34 7,0
RJ 228 153 126 118 165 22 17 23 23 21 7,8
SP 130 117 106 107 117 18 15 17 19 17 6,9
Sul 197 160 136 119 159 27 23 24 23 24 6,5
PR 258 193 150 134 194 33 25 25 24 27 7,1
SC 148 140 127 113 135 26 23 26 27 25 5,3
RS 168 139 129 109 141 21 21 21 21 21 6,7
Centro-Oeste 246 184 160 155 193 31 30 29 27 29 6,6
MS 220 169 168 149 182 32 29 28 24 29 6,3
MT 274 220 202 199 229 32 40 35 27 34 6,7
GO 273 194 151 152 202 35 30 29 30 31 6,4
DF 178 135 120 109 141 21 18 21 24 21 6,7
Brasil 230 173 144 132 178 25 22 23 24 24 7,5

* coeficiente ajustado de homens/ coeficiente ajustado de mulheres.

A diferença entre sexos é nitidamente identificada na razão da mortalidade por causas externas, que chega a 7,5 vezes mais entre os homens comparativamente às mulheres. Acrescenta-se, ainda, a diferença regional, cuja razão chega a 8,9 no Norte e 8,8 no Nordeste versus 6,5 no Sul, 6,6 no Centro-Oeste e 6,8 no Sudeste. Destacam-se Pará e Amapá na região Norte e Alagoas na Nordeste, a menor razão (4,9) foi verificada em Roraima.

A padronização das taxas de mortalidade por idade (taxa bruta de cada Unidade Federada aplicada a uma mesma estrutura etária populacional) permite a comparabilidade entre os locais de residência. Notadamente, a região Sudeste apresenta as menores taxas em ambos os sexos. As maiores taxas de mortalidade por causas externas em homens são observadas, em ordem decrescente, nas regiões Norte (63% maior que na Sudeste), Nordeste (62%), Centro-Oeste (38%) e Sul (13%). Entre as mulheres há uma inversão, com a região Centro-Oeste (38%, maior que na Sudeste) apresentando o maior coeficiente, seguida da Norte e Nordeste (24%) e Sul (14%). Entre as UF, destaca-se o estado de Pará com as mais altas taxas padronizadas em homens e Roraima em mulheres.

A Tabela 2 mostra que a incidência de óbitos por causas externas é muito maior entre os homens do que entre as mulheres (36,4% versus 10,9%), o que representa para os homens um risco quase cinco vezes maior de morrer precocemente por causas externas do que nas mulheres.

Tabela 2. Incidência (%), razão de coeficiente de incidência, bruta (RI) e ajustada (RIaj) com intervalo de confiança de 95% (IC95%), de óbitos por causas externas segundo variáveis sociodemográficas e sexo. Brasil, 2010. 

Masculino Feminino
% RI RIaj IC95% % RI RIaj IC95%
Total 36,4 4,7 10,9 1
Idade (anos) 12,2 1 1 4,2 1 1
50-59
26,9 2,2 2,15 2,09-2,21 8,8 2,1 2,01 1,88-2,15
40-49
53,7 4,4 4,27 4,16-4,38 18,4 4,4 4,01 3,76-4,28
30-39
77,5 6,3* 6,00 5,86-6,16 34,9 8,3* 7,36 6,92-7,83
20-29
Região de residência 29,2 1 1 9,2 1 1
50-59
34,3 1,2 1,19 1,17-1,21 11,5 1,2 1,24 1,17-1,31
40-49
41,1 1,4 1,10 1,08-1,13 14,2 1,5 1,22 1,14-1,32
30-39
43,9 1,5 1,15 1,13-1,16 11,9 1,3 1,14 1,08-1,20
20-29
47,6 1,6* 1,18 1,16-1,21 12,9 1,4* 1,00 0,93-1,08
Raça/cor
50-59 28,5 1 1 6,5 1 1
40-49
23,2 0,8 0,90 0,77-1,06 10,1 1,5 1,37 0,96-1,96
30-39
29,8 1,0 1,08 1,05-1,11 10,4 1,6 1,47 1,35-1,61
20-29
44,8 1,6 1,28 1,25-1,31 12,9 2,0 1,66 1,52-1,82
Estudo
42,5 1,5* 1,09 0,96-1,24 15,1 2,3* 1,66 1,13-2,44
(anos)
≤ 8 28,6 1 1 6,7 1 1
> 8
39,4 1,4* 1,20 1,18-1,22 12,4 1,8* 1,44 1,37-1,51
Estado conjugal estável
sim 23,5 1 1 8,0 1 1
não
43,1 1,8* 1,03 1,02-1,05 12,6 1,6* 1,17 1,12-1,23

* p < 0,05.

A associação com as variáveis sociodemográficas apresenta comportamento semelhante nos dois sexos, isto é, o risco é maior entre os mais jovens (6,3 entre os homens e 8,3 entre as mulheres), e é menor entre os residentes da região Sudeste (para os homens é maior entre os residentes na região Norte e para as mulheres na Centro-Oeste), também é maior entre os de raça/cor parda e indígena, entre os indivíduos com maior escolaridade e estado conjugal não estável.

Todavia, após ajuste para todas as variáveis verifica-se que a idade mantém o gradiente inverso (maior entre as mulheres, 7,36 versus 6,00), mas há uma redução das diferenças conforme região de moradia (ligeiramente maior na região Sul e Norte para os homens e menor na Sudeste e Norte para as mulheres), maior para os homens pardos e mulheres pardas e indígenas (destacando-se que no geral há sobreposição nos intervalos de confiança), há aumento do risco conforme aumento da escolaridade (homens com maior escolaridade têm 20% mais risco e mulheres 44% do que as respectivas categorias de menor escolaridade) e estado conjugal não estável (homens 3% e mulheres 17%).

Adicionando-se o sexo ao modelo de regressão ajustado, o risco entre os homens cai para 2,7. Isto significa que mantendo iguais todas as demais variáveis o risco dos homens morrerem precocemente por causas externas é 170% maior do que o das mulheres.

Os principais tipos de óbitos por causas externas (Figura 1) entre homens são agressões, seguidas por acidentes de transporte terrestre (envolvendo todos os tipos), inverso das mulheres. A distribuição proporcional por tipo de óbito referente às causas externas mostra que as mulheres morrem mais por suicídios do que os homens.

Figura 1. Distribuição (%) dos óbitos conforme tipo de causa externa segundo sexo, Brasil, 2010. 

As agressões respondem por quase 80 óbitos por cem mil homens (Figura 2), o que corresponde a 12 vezes mais do que entre as mulheres. Os coeficientes diminuem gradativamente com o aumento da idade em todas as regiões do Brasil, nos dois sexos. Taxas maiores de 115 por cem mil homens foram observados nas regiões Norte e Nordeste e menores do que 60 no Sudeste e no Sul do país. Entre as mulheres variou de 5,0 no Sudeste a 8,5 no Norte. Destacam-se os altos coeficientes entre os homens mais jovens do Norte e Nordeste, que chegam a representar 18 vezes mais do que entre as mulheres mais jovens das mesmas regiões.

Figura 2. Coeficiente (por 100.000 habitantes) de mortalidade por agressão segundo faixa etária e região de moradia em homens e mulheres. Brasil, 2010. 

Quanto às taxas de suicídios (Figura 3), no Brasil, morreram 10,7 homens e 3,4 mulheres por cem mil habitantes. No total, entre os homens, os coeficientes diminuem gradativamente com o aumento da idade, mas aumentam entre as mulheres. As maiores taxas foram observadas no Centro-Oeste (16,4 entre homens e 4,3 entre as mulheres) e as menores no Norte para os homens (10,7) e no Norte e Sudeste para as mulheres (3,1). As maiores diferenças ocorrem na região Sudeste (20 a 29 anos de idade) e na região Nordeste (30 a 39 anos de idade), com os homens apresentando coeficientes quase oito vezes maiores do que as mulheres.

Figura 3. Coeficiente (por 100.000 habitantes) de mortalidade por suicídio segundo faixa etária e região de moradia em homens e mulheres. Brasil, 2010. 

Discussão

Este estudo mostrou que a diferença entre sexos é nitidamente identificada na razão da mortalidade, que estimou, para cada mulher, quase oito homens morrendo por causas externas, no Brasil. Esta diferença pode ser mais bem compreendida a partir das desigualdades entre homens e mulheres, numa perspectiva de modelos culturais de gênero. Segundo Souza14, os homens se expõem mais a situações de acidentes e violência por conta de comportamentos reafirmadores da masculinidade, próprios da sociedade contemporânea, que simbolizam maior poder e exigem maior virilidade e agressividade, tornando-os paradoxalmente mais vulneráveis a eventos de risco de morte precoce por agravos evitáveis.

Cumpre salientar que, no último período intracensitário, as mulheres apresentaram aumento das taxas brutas de óbitos por causas externas e também por neoplasias15.

Além da diferenças entre sexos, também se observa uma regional, em que as regiões Norte e Centro-Oeste são, em ordem decrescente, as mais afetadas no caso dos homens; sendo a Sudeste a menos afetada para ambos os sexos. Estes dados têm se mantido nas duas últimas décadas, conforme identificado em estudo sobre mortalidade de jovens de 15 a 29 anos por violências e acidentes no Brasil16, o qual apontou, no período de 1990 a 2005, a região Centro-Oeste em primeiro lugar na taxa de mortalidade por causas externas e com a região Norte com incremento gradual na mesma. A Região Sudeste, por outro lado, foi a única que mostrou declínio, influenciada, principalmente, pelo estado de São Paulo, que continua mantendo a posição.

A regressão de Poisson, ajustada para todas as variáveis estudadas (sexo, idade, região de moradia, raça/cor, escolaridade e união conjugal), mostra que os homens têm um risco 2,7 vezes maior de morrer precocemente por causas externas do que as mulheres.

Segundo Victora et al.17, esses tipos de óbitos estão dentre os problemas de saúde que têm níveis inaceitavelmente elevados e que, constam, desde a década de 1980, entre as principais causas de mortalidade, o que se agrava pela desigualdade de gênero, desafiando diversos setores para a resolução deste fenômeno18.

De modo geral, os dados mostram que o principal fator de risco nos dois sexos é a idade. Considerando-se que estudos nacionais e internacionais apontam que a mortalidade por causas externas atinge sobremaneira os jovens do sexo masculino moradores de grandes centros urbanos em áreas com superposição de desvantagens sociais, importa considerar indicadores como violência comunitária e criminal, presença de tráfico de drogas e outras atividades ilegais como fatores importantes para o entendimento dos diferenciais entre os sexos segundo as diferentes faixas etárias19 , 20.

Quando analisadas as mulheres, observa-se que aquelas com maior escolaridade e união conjugal não estável se arriscam mais do que os homens das mesmas categorias, assim como as de cor branca e de cor parda.

O presente estudo aponta que homens de raça/cor parda têm maior probabilidade de morte por causas externas (28%) do que os de raça/cor preta, amarela e indígena, bem como os de cor branca (8%). Um estudo realizado em Salvador (BA), abrangendo os óbitos ocorridos entre 1998 e 2003 por causas externas, mostrou que a população de cor parda perde mais anos potenciais de vida (13,0 vezes mais para os homens e 6,2 para as mulheres) por causas externas do que a população branca21, assim como os homens de cor preta (3,0 vezes mais) Esses dados são parcialmente corroborados pelos dados apresentados por Soares Filho22, em estudo sobre as mortes por homicídios acontecidas entre 2000 e 2009, que mostra maior (e crescente) risco de morte para a população negra (pretos e pardos) do que a branca, independentemente da escolaridade. Ressalta-se que os estudos citados excluíram as populações indígena e amarela pela baixa ocorrência do evento avaliado nestas categorias.

Quanto à região de moradia, o risco de morte precoce por causas externas é igual no Sul (19% maior) e no Norte (18% maior), pouco menor no Nordeste (13%) e no Centro-Oeste (10%), em relação à região Sudeste.

Andrade et al.23, avaliando mortes por homicídios em homens de 15 a 29 anos de idade no estado do Paraná entre 2002 e 2004, identificaram associação com desigualdade social (expressa pelo índice de Gini) e não com a pobreza, constatando que a iniquidade de acesso a bens e serviços é determinante da situação de violência. O que corrobora com Peres et al.24, que sustentam a hipótese de que alterações demográficas, aceleração da economia, investimentos em políticas sociais e mudanças nas políticas de segurança pública atuaram em conjunto para a redução da taxa de mortalidade por homicídio no município de São Paulo de 1996 a 2008. Já, estudo ecológico sobre morte por homicídios em homens de 20 a 39 anos de idade, no período de 1999 a 2010, indica aumento de risco: nos municípios de maior porte populacional, na fecundidade, na desigualdade de renda e urbanização e na menor proporção de alfabetizados25.

Especificamente em relação ao suicídio, observa-se que, embora a porcentagem de mortes por esta causa entre as mulheres seja maior, as taxas são menores do que entre os homens, que por sua vez apresentam maior proporção de mortes por agressão. Lovisi et al.26, quando discutem as taxas masculinas de suicídio maiores do que as femininas, apresentam estudos internacionais que refletem questões de gênero relacionadas à propensão de suicídio e destacam que mulheres são mais propensas tentar se matar, mas os homens frequentemente obtêm mais êxito em suas tentativas, sugerindo que os métodos mais letais entre estes deve-se à intenção masculina de morte ser mais forte. Ainda, segundo os mencionados autores, a menor taxa de mortalidade por suicídio feminina pode estar associada a: baixa prevalência de alcoolismo, crenças religiosas mais fortes, apoio social e procura de ajuda frente aos transtornos mentais e às ideações suicidas.

Souza14 já chamava a atenção para o crescimento das mortes por causas externas em jovens da classe média e alta, na medida em que o uso de armas (mortes por violência) e de carros (mortes por acidentes) são símbolos e representações de força: poder de submissão/controle da vida/controle da morte e poder de locomoção/velocidade/liberdade, o que ficou evidente neste estudo, no qual a maior escolaridade age como fator de risco. A probabilidade de morte por causas externas é 22% maior, comparado ao grupo de menor escolaridade, assim como a união conjugal não estável (risco 3% maior).

Dados mundiais mostram que as causas externas responderam em 2011 por aproximadamente 3,5 milhões de mortes entre indivíduos de 15 e 69 anos de idade, o que corresponde a 15,4% da mortalidade global e a 73 óbitos a cada 100 mil habitantes27. Esses mesmos dados revelam, ainda, que a proporção de óbitos por essas causas é quase o dobro dentre homens (18,8%) do que entre mulheres (10,3%) e que a taxa de mortalidade é aproximadamente três vezes maior nesse sexo (105,6 em homens e 39,8 em mulheres). Ao contrastar os valores dos anos 2000 e 2011, observa-se que a mortalidade por causas externas tem minguado, contudo, a diferença entre os sexos tem aumentado26.

No Brasil, os óbitos por causas externas giram em torno de 21,6% do total de mortes, em pessoas de 15 a 69 anos de ambos os sexos, sendo mais de três vezes maiores em homens (28,6% em homens e 8,3% em mulheres), acometendo 159 homens e 23 mulheres a cada 100 mil habitantes, segundo dados de 201028. Estes valores estão próximos aos de países da África, porém com desigualdade maior: aproximadamente 160 óbitos em homens e 59 em mulheres a cada 100 mil habitantes27.

Todavia, situações de violência, cujo desfecho não é o óbito, atingem principalmente as mulheres e os principais agressores são os homens29.

Neste contexto, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), instituída em 2009 pelo Ministério da Saúde18 , 30, com o objetivo de promover ações de saúde que ampliem a apreensão da realidade masculina e o acesso com qualidade dos homens entre 20 e 59 anos de idade, nos seus diversos contextos, aos serviços de assistência integral à saúde da Rede SUS - tem focado algumas de suas principais estratégias na população mais jovem, cujo risco de morte é seis vezes maior do que entre os homens de 50 a 59 anos, atentando para a força da associação entre causa de óbito e idade (4,27 entre 30 a 39 anos e 2,15 entre 40 e 49 anos).

Estas estratégias estão centradas, sobretudo, no planejamento e na execução de ações educativas nos territórios de saúde voltadas para a reconfiguração de estruturas e práticas da Atenção Básica, principalmente na Estratégia Saúde da Família (ESF), com especial foco na sensibilização e capacitação dos trabalhadores das equipes de saúde no que tange à prevenção de violências e acidentes, bem como ações de identificação, acolhimento e encaminhamento destas situações envolvendo homens na articulação em rede a partir da concepção de linhas de cuidado com os demais níveis de atenção da média e alta complexidade, contribuindo gradativamente para a redução da morbimortalidade por estes agravos e para a mudança de paradigma da esfera do cuidado e da valorização da vida como sendo exclusivamente do âmbito das mulheres, portanto, também disponível, cultivado e praticado por homens de todas as faixas etárias.

Este estudo foi realizado com dados secundários, obtidos a partir do Sistema de Informação sobre Mortalidade, não possibilitando análise de causalidade, mas simplesmente de associação. Todavia, reforça os achados da literatura e pontua diferenças importantes entre os dois sexos.

De qualquer forma, a discussão acerca do predomínio das mortes masculinas por causas externas em relação às femininas precisa ser ampliada com análise interdisciplinar, contemplando um maior aprofundamento na natureza singular dos modelos de masculinidade hegemônicos ainda presentes, atuantes e reforçados no imaginário social coletivo. A partir da compreensão desses modelos, as políticas públicas poderão ter melhores subsídios para compreender este fenômeno no qual os homens tanto morrem quanto matam mais porque - ao afirmarem sua condição viril como opção inalienável do que significa ser homem - acabam vivendo sob uma exacerbada tensão e contenção, atravessados tanto pela violência física quanto simbólica8.

Além do próprio sexo, a idade é o fator preditivo mais importante da mortalidade precoce por causas externas, desaparecendo as diferenças entre as categorias das demais variáveis após ajuste para a maioria delas. Urgem ações multissetoriais, centradas nos locais de vivência coletiva de homens, especialmente durante a formação de suas crenças e valores (escolares, adolescentes), a fim de reduzir esta perda tão drástica que o país vem experimentando e que corre o risco de aumentar, caso novos valores não sejam estabelecidos: desconstruir os padrões hegemônicos vigentes de virilidade e agressividade, criar novas identidades de não violência, permitir o fluxo de emoções e ampliar a aproximação emotiva masculina e feminina.

REFERÊNCIAS

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