versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.25 no.5 São Paulo set./out. 2013 Epub 23-Out-2013
http://dx.doi.org/10.1590/S2317-17822013005000008
A saúde, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é o estado de completo bem-estar que envolve aspectos físicos, mentais e sociais. Esse conceito tem sido constantemente ampliado, com a inclusão de considerações importantes sobre a qualidade de vida, que é a percepção que o indivíduo tem em relação à sua posição na vida, de acordo com o contexto socioeconômico-cultural, ao sistema de valores nos quais ele vive e aos seus objetivos, expectativas, padrões e interesses( 1 ).
Medir a qualidade de vida dos indivíduos que apresentam distúrbios e/ou doenças tem sido objetivo de diversos estudos na área da saúde. A fonoaudiologia também tem focado esse aspecto, pois a avaliação objetiva, que fornece dados importantes a respeito do processo patológico, não informa o ponto de vista do paciente sobre seu problema e suas perspectivas profissionais e sociais( 2 , 3 ).
Assim como na avaliação do estado de saúde geral de um indivíduo, a avaliação da saúde vocal, para ser completa, deve também analisar a perspectiva que o paciente tem em relação a sua qualidade de vida, mensurando quanto esta se modifica frente ao problema( 4 , 5 ). Assim, pode-se apreender as consequências funcionais, sociais e emocionais no desempenho profissional e financeiro decorrentes da alteração vocal( 4 ).
A partir da década de 1990( 6 ), instrumentos que avaliam a percepção vocal do indivíduo passaram a ser desenvolvidos de forma mais cuidadosa e incluíram em seu processo de construção métodos de validação com demonstração de medidas psicométricas de autoavaliação.
Seguindo esses métodos de validação, para melhor compreender a percepção que o paciente tem de sua voz, foram desenvolvidos protocolos gerais, tais como: o Índice de Desvantagem Vocal (IDV)( 7 ), que é um instrumento que avalia a desvantagem causada por um problema na voz falada( 7 - 11 ), o questionário de Qualidade de Vida e Voz (QVV)( 4 ), que mede o impacto de um problema de voz na qualidade de vida; e o Perfil de Participação e Atividades Vocais (PPAV)( 12 ), que é uma forma de avaliação da percepção da disfonia, com foco na limitação de atividades e restrição de participação. Esses três protocolos já estão validados para o português brasileiro( 13 ).
Para que os protocolos de autoavaliação sejam instrumentos mais eficientes, eles devem ser específicos para doenças, populações, profissões etc. Assim na área de voz, após a implementação do protocolo IDV, hoje o instrumento de autoavaliação mais disseminado internacionalmente( 7 , 8 ), pesquisadores preocuparam-se em desenvolver protocolos específicos para determinados grupos, entre eles, o da voz cantada. Os cantores parecem apresentar maior suscetibilidade a fatores que potencializam o comprometimento vocal, como, por exemplo, refluxo gastroesofágico e alergias. Tais distúrbios, somados a uma maior demanda vocal e/ou utilização de técnicas de canto inadequadas, resultam em fadiga vocal, a qual pode acarretar em disfonia, que, embora na maior parte das vezes não ofereça risco de vida ao indivíduo, pode comprometer o rendimento no canto( 14 ). Assim, para a avaliação de qualidade de vida de cantores foram desenvolvidos alguns protocolos direcionados para essa profissão, como o Índice de Desvantagem Vocal para o Canto (IDV-C)( 14 ), Índice de Desvantagem Vocal para o Canto IDV-C 10( 15 ), Adaptação do Índice de Desvantagem Vocal à Voz Cantada( 16 ), Índice de Desvantagem Canto Moderno (IDCM) e Índice Desvantagem Canto Clássico (IDCC)( 17 ), sendo esses dois últimos, duas versões de um mesmo instrumento para contemplar aspectos específicos do canto moderno e do clássico, os quais possuem versões adaptadas para o português brasileiro( 18 , 19 ). Não se sabe, ainda, se esses protocolos são intercambiáveis, complementares ou se refletem perspectivas diversas do mesmo problema. Portanto, o presente estudo tem como objetivo realizar uma análise comparativa entre o protocolo IDV-30, geral para avaliação do impacto de uma disfonia, e duas propostas específicas para o canto - IDV-C e IDCM - identificando semelhanças e diferenças entre eles, em um grupo de cantores populares com e sem queixa vocal. Pretende-se também averiguar a influência do gênero na percepção da desvantagem e se a quantidade de estilos de canto exercida influencia na percepção da desvantagem vocal, bem como o tempo de prática.
O presente estudo foi aprovado pelo comitê de ética da instituição (CEP 1316/08), e todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Participaram 50 cantores, amadores e profissionais, sendo 25 do gênero masculino e 25 do gênero feminino, 23 com queixa e 27 sem queixa vocal, voluntários para participar do estudo, entre eles cantores profissionais, amadores, alunos e professores. A distribuição dos participantes nesses dois grupos foi feita com base no número de sintomas relatados no questionário de sinais e sintomas de Roy et al.( 20 ). Foram considerados com queixa vocal aqueles que referiram três ou mais sintomas vocais( 21 ). Os participantes tinham entre 16 e 74 anos, média de 34,8 anos, sendo 27 dos indivíduos estudantes de canto, 12 cantores amadores, 11 cantores profissionais e 7 deles também atuavam como professores de canto. O tempo médio de canto da amostra foi de 13 anos, mínimo de 1 ano e máximo de 55 anos. Quanto ao tipo de canto, houve a possibilidade de participação em mais de um estilo (a amostra apresentou indivíduos com prática entre 1 e 5 estilos), sendo que 27 deles cantavam em coro, 26 eram cantores clássicos, 18 cantores populares, 13 cantores gospel, 6 cantores de roque, 5 cantavam outros estilos, 4 cantores country/sertanejo e 3 cantores de samba/pagode. Dos indivíduos da pesquisa, 24 tinham o canto como fonte de renda (17 primária e 7 secundária) e 26 tinham rendimentos de outras atividades. Quanto aos sintomas vocais apresentados atualmente, foram referidos os seguintes: pigarro (24); garganta seca (21); rouquidão e dor na garganta (17); dificuldade para cantar agudo (11); desconforto para falar, sua voz "fica cansada ou muda depois do uso por um curto tempo" e gosto ácido ou amargo na boca (8); dificuldade em projetar a voz (7); instabilidade ou tremor na voz (6); problemas para cantar ou falar baixo e esforço para falar (4) e voz monótona e dificuldade para engolir (2).
Os cantores responderam aos três protocolos (IDV-30, IDV-C e IDCM), sem ajuda da pesquisadora, em ordem casual de apresentação e sem consultar questionários respondidos anteriormente.
O IDV-30 é um protocolo, especificamente desenvolvido para avaliar a desvantagem vocal do paciente disfônico, composto por 30 itens e 3 domínios: emocional, funcional e orgânico. Cada item é respondido em uma escala do tipo Likert de cinco pontos: zero - nunca, um - quase nunca, dois - às vezes, três - quase sempre e quatro - sempre. O escore total e os parciais dos domínios são calculados por somatória simples. O escore total pode variar de 0 a 120 pontos, sendo que 0 indica nenhuma desvantagem e 120 desvantagem máxima devido a um problema de voz. Os escores dos domínios variam de 0 a 40.
O IDV-C é composto por 36 itens desenvolvidos para medir a desvantagem de um prejuízo vocal no canto, sendo também respondidos em uma escala do tipo Likert cinco pontos: zero - nunca, um - quase nunca, dois - às vezes, três - quase sempre e quatro - sempre. O escore total pode variar de 0 a 144 pontos, sendo que quanto maior o valor, maior é desvantagem vocal. Esse protocolo não apresenta domínios ou subescalas.
O IDCM é um protocolo também desenvolvido para medir a desvantagem vocal no canto, composto por 30 itens, divididos em 3 subescalas: incapacidade, desvantagem e defeito, que correspondem, respectivamente, aos domínios funcional, emocional e orgânico( 18 ). Cada subescala é composta por dez itens, respondidos da mesma forma que os protocolos anteriormente citados. Os itens desse instrumento também são respondidos em uma escala do tipo Likert cinco pontos: zero - nunca, um - quase nunca, dois - às vezes, três - quase sempre e quatro - sempre. O cálculo dos escores do IDCM é realizado da mesma forma que os do IDV-30 e do IDV-C, sendo que o escore total pode variar de 0 a 120 pontos, como no IDV, e as subescalas de 0 a 40 pontos.
Os escores dos três protocolos foram transformados em valores percentuais, para facilitar a comparação dos diferentes resultados finais e, assim, os valores apresentados correspondem à porcentagem de desvantagem e não aos escores brutos obtidos.
Os resultados foram submetidos a tratamento estatístico, sendo que o nível de significância adotado foi de 0,05 (5%), e os intervalos de confiança construídos ao longo do trabalho foram construídos com 95% de confiança estatística. Para análise das variáveis não paramétricas, foi utilizado o teste de Mann-Whitney para comparar os resultados entre os gêneros em todos os domínios e para comparar os resultados de todos os protocolos entre o grupo com queixa e o grupo controle, o teste de Friedman para comparar os escores totais dos três protocolos, o teste de Wilcoxon, para comparações par a par dos escores totais, o teste de Spearman, para medir o grau de relação entre quantidade de estilos musicais e os resultados dos protocolos, e o Teste de Correlação, para confirmar os valores de correlações obtidas por meio do teste de Spearman. Estudou-se a correlação entre o estilo musical e a desvantagem percebida e assinalada nos protocolos IDV-30, IDCM e IDV-C, por meio da correlação de Spearman. Foi produzida uma Matriz de Correlação com a determinação dos sinais de correlação (positivo ou negativo) e qualidade das mesmas, além do Índice de Concordância Kappa, que mede o grau de concordância entre duas variáveis qualitativas (qualidade <20% = desprezível; 21 a 40% = mínima; 41 a 60% = regular; 61 a 80% = boa; acima de 81% = ótima)( 22 ).
A Tabela 1 apresenta os escores totais e parciais dos três protocolos analisados, em porcentagem. Os escores totais do IDCM e IDV-C apresentaram valores estatisticamente semelhantes (p=0,723), porém estatisticamente diferentes do IDV (p=0,001).
Tabela 1 Escores médios dos domínios dos protocolos Índice de Desvantagem Vocal, Índice de Desvantagem Canto Moderno e Índice de Desvantagem Vocal para o Canto de toda a amostra
Protocolos | Média | Desvio-padrão | |
IDV-30 | |||
Total | 11,4 | 12,5 | |
Emocional | 8,1 | 15,3 | |
Funcional | 10,9 | 11,8 | |
Orgânico | 15,2 | 15,0 | |
IDCM | |||
Total | 15,8 | 17,6 | |
Incapacidade | 5,4 | 7,7 | |
Desvantagem | 5,3 | 7,1 | |
Defeito | 8,3 | 7,9 | |
IDV-C | 16,6 | 17,0 |
Teste Friedman: IDV-30xIDCMxIDV-C - valor de p do escore total = 0,001; Teste de Wilcoxon: IDV-30xIDCM - p=0,004; IDV-30xIDV-C - p=0,001; IDV-CxIDCM=0,723 Legenda: IDV-30 = Índice de Desvantagem Vocal; IDCM = Índice de Desvantagem Canto Moderno; IDV-C = Índice de Desvantagem Vocal para o canto
A Tabela 2 apresenta a comparação dos escores totais e parciais dos três protocolos entre os grupos com e sem queixa vocal. Todos os escores dos três protocolos foram diferentes quando os dois grupos foram comparados, com exceção do escore funcional do IDV (p=0,054). Além disso, o grupo com queixa vocal apresenta escores mais elevados do que o grupo sem queixa vocal.
Tabela 2 Escores médios dos domínios dos protocolos Índice de Desvantagem Vocal, Índice de Desvantagem Canto Moderno e Índice de Desvantagem Vocal para o Canto para os grupos com e sem queixa vocal
Protocolos | Com queixa | Sem queixa | Valor de p | |||
Média | Desvio-padrão | Média | Desvio-padrão | |||
IDV-30 | ||||||
Total | 17,5 | 15,0 | 6,2 | 6,4 | 0,001 | |
Emocional | 15,0 | 20,1 | 2,2 | 4,6 | <0,001 | |
Funcional | 14,1 | 13,1 | 8,1 | 10,0 | 0,054 | |
Orgânico | 23,4 | 17,3 | 8,2 | 7,7 | <0,001 | |
IDCM | ||||||
Total | 25,2 | 21,3 | 7,7 | 7,6 | 0,001 | |
Incapacidade | 9,5 | 9,6 | 1,9 | 2,2 | 0,004 | |
Desvantagem | 8,5 | 8,8 | 2,5 | 3,5 | 0,004 | |
Defeito | 12,2 | 9,0 | 5,0 | 4,8 | 0,004 | |
IDV-C | 24,9 | 21,2 | 9,5 | 7,3 | 0,012 |
Teste de Mann-Whitney Legenda: IDV-30 = Índice de Desvantagem Vocal; IDCM = Índice de Desvantagem Canto Moderno; IDV-C = Índice de Desvantagem Vocal para o canto
A Tabela 3 apresenta a média e o desvio padrão encontrados nos escores parciais e totais dos protocolos de acordo com o gênero.
Tabela 3 Escores médios dos protocolos Índice de Desvantagem Vocal, Índice de Desvantagem Canto Moderno e Índice de Desvantagem Vocal para o Canto de acordo com o gênero
Protocolos | Feminino | Masculino | Valor de p | |||
Média | Desvio-padrão | Média | Desvio-padrão | |||
IDV-30 | ||||||
Total | 12,8 | 15,7 | 10,0 | 8,2 | 0,823 | |
Emocional | 11,6 | 20,3 | 4,6 | 6,3 | 0,401 | |
Funcional | 11,5 | 14,2 | 10,2 | 9,0 | 0,769 | |
Orgânico | 15,2 | 16,7 | 15,2 | 13,4 | 0,689 | |
IDCM | ||||||
Total | 16,9 | 21,2 | 14,6 | 13,5 | 0,801 | |
Incapacidade | 5,5 | 9,1 | 5,3 | 6,1 | 0,319 | |
Desvantagem | 6,3 | 9,1 | 4,2 | 4,2 | 0,791 | |
Defeito | 8,5 | 8,6 | 8,1 | 7,2 | 0,953 | |
IDV-C | 18,3 | 20,1 | 14,9 | 13,4 | 0,915 |
Teste de Mann-Whitney Legenda: IDV-30 = Índice de Desvantagem Vocal; IDCM = Índice de Desvantagem Canto Moderno; IDV-C = Índice de Desvantagem Vocal para o canto
A Tabela 4 apresenta as correlações entre os escores dos protocolos e o tempo de canto. Verificou-se que a correlação entre tempo de canto foi negativa em todos escores dos protocolos (variando entre -37,70 a -13,10%). Nos demais domínios, as correlações foram positivas. A correlação foi ótima entre o IDV-30 Escore Total e IDV-30 (Escores Emocional, Físico e Orgânico), entre o IDCM Total e o IDCM (Incapacidade, Desvantagem e Defeito), e entre o IDV-C e o IDCM (Defeito e Total). A correlação foi boa entre o IDV-30 Escore Total e o IDCM (Incapacidade, Desvantagem, Defeito, Total) e o IDV-C, e entre o IDV-30 Emocional e o IDV-30 (Escores Físico e Orgânico) e IDCM Total. A correlação foi regular entre o IDV-30 Escore Emocional e o IDCM (Incapacidade, Desvantagem e Defeito) e o IDV-C, e entre IDV-30 Escore Funcional e o IDCM (Incapacidade e Desvantagem) e o IDV-C. Análise feita conforme o índice de Concordância Kappa( 22 ).
Tabela 4 Valores da correlação entre escores dos protocolos Índice de Desvantagem Vocal, Índice de Desvantagem Canto Moderno e Índice de Desvantagem Vocal para o Canto e Tempo de canto
Protocolos | Tempo de canto | IDV-30 (Escore total) | IDV-30 (Escore emocional) | IDV-30 (Escore funcional) | IDV-30 (Escore orgânico) | IDCM (Incapacidade) | IDCM (Desvantagem) | IDCM (Defeito) | IDCM (Total) | |
IDV-30 | Corr | -25,90% | ||||||||
Total | Valor de p | 0,069# | ||||||||
Emocional | Corr | -13,10% | 85,40% | |||||||
Valor de p | 0,363 | <0,001* | ||||||||
Físico | Corr | -37,10% | 83,80% | 64,20% | ||||||
Valor de p | 0,008* | <0,001* | <0,001* | |||||||
Orgânico | Corr | -30,00% | 92,50% | 73,10% | 68,20% | |||||
Valor de p | 0,034* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | ||||||
IDCM | Corr | -20,50% | 73,60% | 59,50% | 58,80% | 74,70% | ||||
Incapacidade | Valor de p | 0,153 | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | ||||
Desvantagem | Corr | -37,60% | 64,50% | 57,90% | 48,70% | 63,50% | 65,80% | |||
Valor de p | 0,007* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | ||||
Defeito | Corr | -26,40% | 74,90% | 57,90% | 61,00% | 78,40% | 79,30% | 71,90% | ||
Valor de p | 0,064# | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | |||
Total | Corr | -33,40% | 78,10% | 64,80% | 63,10% | 79,60% | 86,00% | 85,80% | 94,50% | |
Valor de p | 0,018* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | ||
IDV-C | Corr | -37,70% | 69,50% | 53,70% | 51,10% | 78,00% | 71,20% | 70,50% | 80,10% | 81,10% |
Valor de p | 0,007* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* | <0,001* |
*Valores de p considerados estatisticamente significativos perante o nível de significância adotado; # Valores de p que, por estarem próximos do limite de aceitação, tendem a ser significativos Legenda: Corr = correlação; IDV-30 = Índice de Desvantagem Vocal; IDCM = Índice de Desvantagem Canto Moderno; IDV-C = Índice de Desvantagem Vocal para o canto
A Tabela 5 apresenta o valor das relações entre os escores e a quantidade de estilos praticada. As correlações encontradas nesta análise foram classificadas como desprezíveis, pois todos os valores foram inferiores a 20%, conforme Índice de Concordância Kappa( 22 ).
Tabela 5 Valores da correlação entre os escores dos protocolos Índice de Desvantagem Vocal, Índice de Desvantagem Canto Moderno e Índice de Desvantagem Vocal para o Canto e quantidade de estilos praticada
Protocolos | Estilo | ||
Correlação | Valor de p | ||
IDV-30 | |||
Total | 7,00% | 0,628 | |
Emocional | 0,20% | 0,987 | |
Funcional | -0,70% | 0,963 | |
Orgânico | 5,80% | 0,692 | |
IDCM | |||
Total | -3,30% | 0,819 | |
Incapacidade | -1,90% | 0,895 | |
Desvantagem | -8,40% | 0,562 | |
Defeito | 1,20% | 0,933 | |
IDV-C | -1,10% | 0,938 |
Teste de Spearman Legenda: IDV-30 = Índice de Desvantagem Vocal; IDCM = Índice de Desvantagem Canto Moderno; IDV-C = Índice de Desvantagem Vocal para o canto
O cantor é um profissional da voz que pertence a um grupo de risco para desenvolvimento de problemas vocais; portanto, sua saúde vocal exige um cuidado maior( 14 , 15 ).
O que se sabe atualmente é que os distúrbios vocais nesses indivíduos resultam em mudanças, adaptações e/ou interrupções na rotina diária e/ou profissional. Além disso, o estilo de vida, o ambiente social e o local onde se utiliza profissionalmente a voz podem contribuir para o surgimento ou manutenção dos distúrbios vocais( 23 , 24 ).
Medir o quanto tais mudanças e adaptações afetam a vida do paciente facilita a avaliação e a conduta com esses indivíduos que cantam profissionalmente( 14 ), pois o grau de limitação na qualidade de vida do indivíduo não apresenta necessariamente relação direta com o grau da disfonia apresentado( 25 ). Assim, a utilização de protocolos de qualidade de vida em pacientes disfônicos faz-se importante( 26 ), principalmente em cantores, pois pode oferecer um direcionamento adequado na conduta terapêutica e no uso da voz durante o tratamento.
Desta forma, para a otimização do processo de avaliação de cantores, analisamos comparativamente o protocolo IDV-30, o questionário mais amplamente utilizado no mundo, e duas propostas específicas para o canto, IDV-C e IDCM, identificando suas semelhanças e diferenças.
Observa-se que o IDV-30 subavaliou a amostra, o que já era esperado por ser um protocolo genérico. Em relação ao IDCM, na comparação entre as três subescalas, o defeito, que corresponde ao domínio orgânico, apresentou os maiores escores, seguido pelas subescalas incapacidade e desvantagem, que representam respectivamente o domínio funcional e emocional. Como o grupo avaliado é composto em sua maioria por estudantes de canto, amadores, os quais não possuem o canto como fonte de renda primária, a percepção da restrição ou diminuição da habilidade de exercer a atividade e a limitação no cumprimento da função não evidenciou grande desvantagem por meio desse protocolo. Quanto ao IDV-C, o escore médio para o grupo de cantores avaliados indicou discreta desvantagem percebida. Como não há estudos brasileiros que administraram esses protocolos, não temos valores para comparação (Tabela 1).
Observa-se que os escores mais elevados do IDV-30 foram no domínio orgânico e emocional (p<0,001), como mostram outros estudos da literatura( 8 , 13 ) realizados com indivíduos disfônicos não cantores. Cantores com queixa apresentaram escores maiores que os disfônicos, provavelmente devido à atenção que despendem ao instrumento vocal, sendo mais exigentes com sua qualidade. No IDCM, o grupo de cantores com queixa apresentou maior escore na subescala defeito, seguido da incapacidade. Um estudo com cantores amadores( 18 ) também, encontrou resultados similares. O termo defeito é definido como qualquer perda ou anormalidade psicológica, fisiológica, anatômica, estrutural, temporária ou permanente. Incapacidade significa qualquer restrição ou diminuição da habilidade de exercer uma atividade habitualmente esperada para o indivíduo. Já a desvantagem é resultante do defeito ou da incapacidade, caracterizada pela limitação ou impedimento no cumprimento de um papel esperado para o indivíduo, ocasionando consequências sociais, culturais, de desenvolvimento e econômicas( 27 , 28 ). Desta forma, os cantores percebem que há algo de errado com a produção da voz e podem avaliar essa sensação como uma limitação ou desvantagem. Como comentado anteriormente, a amostra deste estudo foi composta, na sua maioria, por estudantes de canto e cantores amadores; portanto, a percepção de uma desvantagem vocal em suas vidas pode ter menos valor do que para cantores profissionais. Embora os resultados do IDV-C tenham sido estatisticamente diferentes entre os grupos com queixa e sem queixa vocal, como nos achados da literatura( 14 , 28 ), os escores foram menores que os observados por Cohen et al.( 14 ). Pode-se notar, ainda, que todos os escores médios do grupo sem queixa foram menores do que os do grupo com queixa (Tabela 2).
Em relação aos resultados referentes à variável gênero, observou-se que, embora na clínica fonoaudiológica mulheres busquem mais ajuda por causa de uma disfonia( 29 ), no presente estudo o impacto de um possível problema vocal foi percebido de maneira semelhante, por ambos os gêneros. O mesmo foi observado em outros estudos na literatura( 18 , 30 ), os quais verificaram o impacto autorrelatado de uma alteração vocal na qualidade de vida de indivíduos com queixa de voz, de acordo com o gênero, idade e uso vocal profissional (Tabela 3).
Observa-se que os valores das correlações entre a desvantagem vocal e tempo de canto indicou associação negativa, em todos os protocolos, evidenciando que há maior desvantagem quanto menor o período de desenvolvimento da voz cantada. Isso é compreensível, já que as aulas de canto propiciam o desenvolvimento de ajustes musculares diferentes dos da voz falada, o que pode gerar desconforto e alguns sintomas de problemas vocais nas fases iniciais do aprendizado( 22 ). Apesar dessa correlação negativa, sua força é baixa e, portanto, desvios no protocolo em cantores no início do treinamento devem ser avaliados criteriosamente. As demais correlações entre os protocolos foram todas positivas e estatisticamente significativas, o que indica que os escores dos protocolos tem relação entre si, embora com diferente força. Por exemplo, a correlação entre o IDV-C e o escore total do IDCM é forte e maior que a força de correlação entre o IDV-C e o IDV-30, que é apenas moderada; isso evidencia que os dois protocolos específicos de canto têm uma maior correspondência, que o protocolo genérico para disfonias, que tem menor sensibilidade para identificar as questões específicas da voz cantada(15,18,19) (Tabela 4).
Encontra-se a correlação entre o estilo musical e os protocolos IDV-30, IDCM e IDV-C. Os resultados mostram correlações com valores abaixo de 9%, sendo que os protocolos específicos para o canto apresentaram inclusive relação negativa. Assim, não houve relação significativa entre as variáveis estudadas, indicando que cantar mais de um estilo musical não aumenta a percepção da desvantagem vocal (Tabela 5).
Este estudo, realizado com cantores populares amadores e profissionais corrobora o fato de que, durante a avaliação vocal deve-se levar em conta a autoavaliação do paciente. Porém, para a otimização do processo, faz-se necessário utilizar o protocolo específico para esse grupo, deixando a critério do avaliador a escolha entre o IDV-C e IDCM, pois ambos são intercambiáveis.
Com base na análise comparativa entre diferentes protocolos de autoavaliação do impacto de uma alteração de voz no canto em cantores com e sem queixa vocal concluiu-se que o IDV-30 é um instrumento genérico e pode subavaliar um impacto de um problema de voz em cantores, sendo que o IDCM e IDV-C exploram melhor essa dificuldade e são intercambiáveis. Além disso, concluiu-se que as variáveis gênero e quantidade de estilos de canto não influenciaram na percepção da desvantagem vocal e que, quanto maior o tempo de experiência do cantor, menor é sua desvantagem vocal.
*KP foi responsável pela coleta, tabulação, análise dos dados e redação do manuscrito; GO e MB foram responsáveis pelo delineamento do estudo, orientação geral das etapas de execução e elaboração do manuscrito.