versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.1 no.1 São Paulo jan./mar. 2018
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20180005
São escassos os dados epidemiológicos sobre a frequência e as consequências da dor neuropática (DN) em pacientes com diabetesmellitus (DM). Pesquisas sobre esse tema são importantes norteadores ao melhor tratamento desses pacientes. A DN é definida como dor crônica, causada por lesão ou doença, que acometa o sistema somatossensitivo1. É considerada mais grave que outros tipos de dor. É caracterizada clinicamente como dor contínua, lacerante, de intensidade moderada a intensa, com sensação de agulhadas, presença de formigamento, dormência e queimação. Está localizada preferencialmente nas extremidades, de forma simétrica e bilateral, com alterações de sensibilidade local2.
Além de seus sintomas extremamente desagradáveis, a DN é frequentemente associada a transtorno de ansiedade, depressão, distúrbios do sono e disfunções sexuais, o que leva a diminuição significativa da qualidade de vida e da funcionalidade, além de contribuir com o isolamento social e gerar altos custos com os serviços de saúde, por invalidez e abstenção no trabalho3.
Dentre as principais causas de DN está a neuropatia periférica diabética4, estimando-se que pelo menos 10% de pessoas com DM tipo 1 (DM1) e 20% das pessoas com DM tipo 2 (DM2) apresentam dor intensa2, o que é preocupante, visto que, segundo aInternational Diabetes Federation5 a previsão é que o número de diabéticos suba de 387 milhões, registrados até 2014, para 592 milhões, até o ano de 2035.
A patogênese da DN em diabéticos ainda não é totalmente conhecida, podendo estar relacionada com a hiperglicemia por tempo prolongado, que leva ao acúmulo de substâncias tóxicas derivadas da glicose nos tecidos corporais6. Quando ocorre a lesão neurológica, a transmissão e a percepção do estímulo doloroso na medula espinhal são alteradas, modificando a condução nervosa e seu controle, tanto nas vias ascendentes quanto nas descendentes, com consequente aumento da excitabilidade do neurônio sensorial espinhal7.
O diagnóstico de DN é complexo, visto que se trata de uma avaliação subjetiva, difícil de ser descrita e mensurada, não existindo ainda um consenso sobre o diagnóstico desse tipo de dor1. No entanto, acredita-se que para uma avaliação apropriada, deve-se considerar a história clínica do paciente; o exame físico com testes quantitativos de sensibilidade; e a aplicação de instrumentos específicos para DN8.
Além desses métodos diagnósticos, é de grande importância a realização de exames laboratoriais e de imagem, imprescindíveis para a diferenciação com outros tipos de dor, a fim de alcançar um diagnóstico possível, provável ou definitivo de DN9, classificação esta, desenvolvida para fins clínicos e de investigação utilizada para a obtenção de um diagnóstico mais fidedigno1.
AInternational Association for the Study of Pain (IASP) sugere a utilização de alguns instrumentos para detecção da DN, como o questionário de DN em quatro questões, conhecido comoDouleur Neuropathique4questions (DN4); o ID Dor; a Avaliação de Sinais e Sintomas Neuropáticos de Leeds (LANSS); o questionário para detecção de dor, oPainDETECT;e o questionário de Dor Neuropática4.
Vale ressaltar que é através da atenção básica que, preferencialmente, pessoas com diabetes, ingressam na rede de atenção à saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), responsável por atender a todos os usuários com qualidade e resolutividade10. Dada a abrangência e capacidade da atenção básica, é de grande importância que a detecção da dor com características neuropáticas ocorra ainda na atenção primária, por ser um acometimento de elevado grau incapacitante, que necessita de tratamento distinto, que pode ser fornecido pelo médico de cuidados primários11.
A fim de melhorar os serviços de cuidados primários, foram criados vários programas como a Estratégia Saúde da Família (ESF), responsável pela reorganização do modelo assistencial, por meio da criação de equipes multiprofissionais12, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), compostos por profissionais de diversas especialidades, que agem em apoio às equipes de saúde da família e da atenção básica13. Criou-se também o Sistema de Acompanhamento e Cadastramento de Hipertensos e Diabéticos (HIPERDIA), responsável por acompanhar os pacientes com diabetes e hipertensão, tornando-se um instrumento fundamental para o conhecimento dos usuários, mapeamento de riscos, prevenção e minimização das complicações desses agravos14.
Dessa forma, o Ministério da Saúde tem fomentado a realização de novas pesquisas sobre a DN com o intuito de suprir a carência de dados epidemiológicos e de estudos sobre o manuseio da dor15. Nesse sentido, o presente estudo teve por objetivo detectar a presença de dor com características neuropáticas em pessoas com DM, atendidos pelo programa Hiperdia, em Santarém-Pará.
Realizou-se um estudo prospectivo de coorte transversal no período de abril a novembro de 2016, em sete Unidades Básicas de Saúde (UBS) do distrito da grande área da Aldeia em Santarém-Pará. Os pacientes inseridos na população deste estudo cumpriram os seguintes critérios de inclusão: (a) ter DM1 e 2; (b) de ambos os sexos; (c) com idade a partir de 18 anos; (d) cadastrados no programa Hiperdia das UBS do distrito da grande área da Aldeia; (e) que estavam presentes no momento da coleta de dados e (f) que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram excluídos os pacientes que não preencheram os pré-requisitos de inclusão, os que não tinham assiduidade nas reuniões do Hiperdia (no mínimo 3 reuniões nos últimos 6 meses) e pessoas que não dispuseram de tempo para realizar a avaliação.
A abordagem aos usuários ocorreu de forma aleatória e individual, realizada por uma das pesquisadoras, durante a espera pela distribuição de fármacos, consulta de enfermagem ou médica, no salão das UBS, onde eram realizadas as reuniões do Hiperdia, que ocorreram uma vez ao mês, no turno da manhã.
Todos foram orientados quanto aos objetivos e procedimentos do estudo e convidados a participarem do estudo mediante assinatura do TCLE, elaborado de acordo com a orientação da Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde (CNS)16, garantindo os princípios da bioética (beneficência, não maleficência, justiça e respeito à autonomia) ao longo de todos os passos deste estudo, assim como a garantia da confidencialidade das informações trazidas pelos participantes.
No município de Santarém, segundo a Secretaria Municipal de Saúde, existem registradas no Hiperdia, 5.100 pessoas com diagnóstico de DM, sendo a grande maioria com DM2 (4.610 pessoas). O distrito da Grande área da Aldeia, escolhido para a realização deste estudo possui 60.859 habitantes e oito UBS, no entanto, apenas sete estavam realizando, mensalmente, as reuniões do Hiperdia.
Conforme informações repassadas pelos enfermeiros de cada unidade de saúde, nas sete UBS estudadas, havia 1.389 pacientes com diabetes, cadastrados. No entanto, os dados não estavam atualizados quanto ao número de falecidos e pessoas que não comparecem mais às reuniões. Ao avaliar a lista de frequência dos pacientes dos três últimos meses, obteve-se uma média mensal de 47 pessoas com DM presentes nas reuniões do Hiperdia nas unidades de saúde estudadas.
Para o cálculo amostral, os parâmetros utilizados foram nível de confiança de 95%, erro de 5% e prevalência esperada de 10%.
A seleção dos participantes foi realizada por meio de amostragem aleatória simples. Os instrumentos utilizados nesta pesquisa foram: o questionário clínico e sociodemográfico, elaborado pelas pesquisadoras deste estudo; o questionário DN417; e a escala analógica visual (EAV)18.
Inicialmente foi aplicado o questionário clínico e sociodemográfico contendo informações sobre: unidade de saúde onde faz acompanhamento, idade, sexo, naturalidade, raça/cor, estado civil, escolaridade e ocupação, diagnóstico clínico de DM1 ou 2, tempo de doença, queixa de dor, fármacos em uso e perguntas sobre o local da dor e tratamento para os pacientes que relataram o sintoma.
Os pacientes que afirmaram sentir dor responderam ao questionário DN4, considerado um instrumento eficaz na detecção de DN em pessoas com diabetes. É constituído por quatro questões, sendo as duas primeiras compostas por sete descritores sensoriais que caracterizam a DN (queimação; sensação de frio doloroso; choque elétrico; formigamento; alfinetada e agulhada; adormecimento e coceira). As outras duas questões compõem o exame físico para a avaliação de sinais indicativos de lesão neurológica (hipoestesia ao toque; hipoestesia à picada de agulha e escovação)19. Para todos os itens, os participantes responderam "sim" ou "não". A cada resposta positiva foi atribuído "1" e para cada negativa "0". O resultado foi obtido a partir da soma dos 10 itens, em que foi confirmada a presença de DN em escores ≥417.
Em seguida, os pacientes da amostra foram avaliados quanto à intensidade da dor, por meio da EAV, considerando uma pontuação de zero a 2, para dor leve, de 3 a 7, para dor moderada e de 8 a 10, para dor intensa8.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa envolvendo seres humanos (CEP) do Núcleo de Medicina Tropical, da Universidade Federal do Pará, sob parecer número 2.003.985.
Realizou-se uma análise descritiva dos dados, apresentando-se a frequência absoluta, relativa, medidas de tendência central (média aritmética, mínimo e máximo) e medidas de dispersão (desvio padrão). As informações foram registradas em banco de dados criado no programa Excel® 2010 e importado para o Bioestat® 5.0, onde foram analisadas possíveis associações entre DN e fatores relacionados, como tempo de diagnóstico de DM, intensidade da dor, localização e tratamento para dor. Realizou-se a análise por meio do teste Qui-quadrado, com nível de significância para valores de p≤0,05.
A amostra foi composta por 129 pacientes, na qual obteve-se 100% de pessoas com DM2. Observou-se predomínio do sexo feminino (76,7%); com idade média de 65,1±9,4 anos; casadas (54,3%) e com ensino fundamental incompleto (45%). O quadro álgico foi relatado por 51,9% (n=67) dos participantes, sendo a DN o principal tipo de dor (Tabela 1).
Tabela 1 Prevalência de dor com características neuropáticas em pacientes com diabetes mellitus, atendidos pelo programa Hiperdia
Tipos de dor | n | % |
---|---|---|
Não neuropática (DN4<4) | 23 | 34,3 |
Neuropática (DN4≥4) | 44 | 65,7 |
Total | 67 | 100 |
Avaliados por meio do questionário Douleur Neuropathique 4 questions.
A média de tempo de diagnóstico de DM foi maior em pessoas que relataram dor com características neuropáticas (10,05±7,07). Pessoas com dor de características não neuropáticas apresentaram média de 7,67±5,48, já indivíduos sem dor, 7,55±6,21.
O local de dor mais referido pelos pacientes foram os pés, tanto por pessoas com características neuropáticas quanto as com características não neuropáticas, como demonstra a tabela 2.
Tabela 2 Local da dor entre os pacientes com dor com características neuropáticas e não neuropáticas
Local da dor | Dor neuropática | Totaln (%) | x2 | |
---|---|---|---|---|
Sim (%) | Não (%) | |||
Mãos | 2 (4,55) | 3 (13,04) | 5 (7,46) | p=0,1634 |
Pernas | 3 (6,82) | 2 (8,70) | 5 (7,46) | |
Pés | 22 (50) | 16 (69,57) | 38 (56,72) | |
Mãos e pés | 10 (22,73) | 2 (8,70) | 12 (17,91) | |
Pernas e pés | 6 (13,64) | 0 (0) | 6 (8,96) | |
Braços e pernas | 1 (2,27) | 0 (0) | 1 (1,49) | |
Total | 44 (100) | 23 (100) | 67 (100) |
Avaliada por meio do questionário clínico e sociodemográfico elaborado pelo autor.
De acordo com os dados do questionário DN4 (Tabela 3), os pacientes com DN (n=44) apresentaram maior número de queixas clínicas (n=279) relacionadas à sensibilidade dolorosa, principalmente em relação ao formigamento, à alfinetada/agulhada e ao adormecimento.
Tabela 3 Distribuição dos itens do questionário Douleur Neuropathique 4 questions entre os pacientes com dor com características neuropáticas e não neuropáticas
Descritores sensoriais | Dor neuropática | Total | |
---|---|---|---|
Sim (%) | Não (%) | n (%) | |
Formigamento | 42 (15,05) | 9 (3,33) | 51 (15,55) |
Alfinetada/agulhada | 41 (14,70) | 10 (3,70) | 51 (15,55) |
Adormecimento | 39 (13,98) | 8 (2,96) | 47 (14,33) |
Choque elétrico | 32 (11,47) | 5 (1,85) | 37 (11,28) |
Coceira | 17 (6,09) | 3 (1,11) | 20 (6,10) |
Queimação | 25 (8,96) | 7 (2,59) | 32 (9,76) |
Sensação de frio dolorosa | 25 (8,96) | 2 (0,74) | 27 (8,23) |
Exame físico de sensibilidade | |||
Hipoestesia ao toque | 30 (10,75) | 4 (1,48) | 34 (10,37) |
Hipoestesia a picada de agulha | 19 (6,81) | 1 (0,37) | 20 (6,10) |
Escovação | 9 (3,23) | 0 (0) | 9 (2,74) |
Total | 279 (100) | 49 (100) | 328 (100) |
Na tabela 4 encontram-se os resultados da EAV, que atestou a dor de intensidade moderada como mais frequente. O presente estudo revela que não há diferença estatisticamente significativa na associação entre DN e intensidade da dor.
Tabela 4 Distribuição da intensidade da dor em pacientes com dor com características neuropáticas e não neuropáticas
Dor neuropática | |||
---|---|---|---|
Intensidade da dor | Sim (%) | Não (%) | x2 |
Leve (0-2) | 9 (20,45) | 6 (26,09) | |
Moderada (3-7) | 19 (43,18) | 14 (60, 87) | p= 0,1307 |
Intensa (8-10) | 16 (36,36) | 3 (13,04) | |
Total | 44 (100) | 23 (100) |
Avaliada por meio da escala analógica visual.
Ao ser questionada sobre a realização de tratamento para a dor, grande parte dos indivíduos com características neuropáticas afirmou utilizar analgésicos convencionais como tratamento farmacológico (52,27%), conforme a tabela 5.
Tabela 5 Distribuição dos pacientes com dor com características neuropáticas e não neuropáticas quanto ao tratamento para a dor
Tratamento para dor | Dor neuropática | Totaln (%) | x2 | |
---|---|---|---|---|
Sim (%) | Não (%) | |||
Não | 21 (47,73) | 17 (73,91) | 38 (56,72) | p=0,0400 |
Sim | 23 (52,27) | 6 (26,09) | 29 (43,28) | |
Total | 44 (100) | 23 (100) | 67 (100) |
Avaliada por meio do Questionário clínico e sociodemográfico elaborado pelo autor.
Nesta pesquisa obteve-se uma amostra composta, em sua totalidade, por pessoas com DM2. Dois estudos semelhantes também demonstraram prevalência elevada de DM2, um com 90,4% da amostra20 e outro 86,3%21. A alta frequência do tipo 2 observada pode ser explicada pelo fato dessa classificação representar, nos adultos, cerca de 90 a 95% de todos os casos diagnosticados22.
O resultado alcançado revelou ainda que 51,9% dos indivíduos da amostra queixaram-se de dor, obtendo-se uma prevalência global de 34,1% de dor com características neuropáticas e 17,8% não neuropáticas. Em estudo semelhante realizado no Reino Unido com 326 diabéticos, 63,8% referiram dor, distribuindo-se em 19% com DN (menor que o observado nos resultados desta pesquisa) e 36,8% com dor não neuropática23.
A prevalência de DN obtida nesta pesquisa é semelhante ao de estudos realizados em outros países, como na África do Sul24 em pessoas com DM1 e 2, utilizando também o questionário DN4, demonstrando uma frequência de 30,3% de DN em uma amostra de 1.046 pessoas. No noroeste da Inglaterra, um estudo desenvolvido com 204 pessoas com DM1 e 2, em que foi aplicada a escala de dor LANSS, a prevalência global de neuropatia diabética dolorosa foi de 30,4%25.
Por outro lado, a literatura revela menor prevalência de DN que a obtida nesta pesquisa. Na Nigéria, em pesquisa realizada com 250 diabéticos, com a aplicação do questionáriopainDETECT, notou-se uma prevalência de 21,6%26. Tal situação também foi observada em estudos com o DN4, em Istambul20, na Turquia, com 1.357 diabéticos, cuja prevalência foi de 23%; no município de Tubarão27 em Santa Catarina, com 72 pessoas, a taxa de foi de 16,7%; e na Coreia28 14,4%. Em contrapartida, em pesquisa feita com 2.358 diabéticos chineses, obteve-se valor abaixo do que se tem visto na literatura, de apenas 7,6%29.
Na Arábia Saudita30, onde foram avaliados 1.039 diabéticos, utilizando o DN4, a prevalência de DN foi superior ao esperado (65,3%), explicado pelos pesquisadores como consequência do mal controle glicêmico, visto que, a hiperglicemia por tempo prolongado pode causar lesões irreversíveis nos tecidos31.
Nota-se uma grande variedade da prevalência de DN no mundo. Isso se deve ao fato dos estudos epidemiológicos serem realizados com metodologias distintas, de seleção da amostra, de critérios diagnósticos e instrumentos de avaliação, além da influência das diversidades culturais e sociodemográficas8,32.
Outro fator importante observado nos estudos sobre a DN é que muitos estudiosos realizaram suas pesquisas em amostras compostas por pessoas com diagnóstico clínico de neuropatia diabética. Acredita-se que a dor associada com a polineuropatia diabética é claramente neuropática, podendo existir neuropatia com ou sem a DN1,33, sugerindo que há relação entre a presença de neuropatia e um maior risco de desenvolver DN34. Bem como o observado em um estudo com diabéticos com e sem neuropatia em uma amostra de 15.692 pessoas, em que se obteve uma prevalência de 34% de DN35. Nesta investigação, o grupo sem neuropatia foi o que apresentou maior frequência de DN.
A partir desse resultado, os autores destacaram a importância de avaliar os sinais e sintomas relativos a dor em todos os pacientes e não apenas naqueles com neuropatia confirmada, indicando que os sintomas neuropáticos dolorosos são negligenciados nos serviços de saúde. Vale ressaltar, que o estudo atual não investigou a presença de neuropatia, fazendo busca apenas pela dor com características neuropáticas em indivíduos com diabetes, visto que a DN pode ocorrer mesmo que não haja a neuropatia23.
No estudo atual, houve predominância do sexo feminino em 76,74% da amostra, fato evidenciado em outros estudos que obtiveram entre 60 e 70% de mulheres27,36. Outras pesquisas, no entanto, relataram pouca diferença entre os sexos, mas ainda com predomínio feminino20,21,24. Maior prevalência de homens também já foi observada em pessoas com diabetes e DN25,37.
Tempos atrás, as mulheres tinham prevalência expressamente maior, explicada pelo fato de procurarem mais os serviços de saúde que os homens, obtendo o diagnóstico precocemente. Esse cenário está mudando com o avanço da busca ativa por diabetes, pela qual a diferença entre os sexos está desaparecendo38.
A média de idade dos componentes da amostra foi de 65,1±9,4 anos, com pouca diferença entre os grupos. Acredita-se que há maior ocorrência de DN com o aumento da idade35. Vários autores ressaltaram a predominância de pessoas acima de 60 anos na composição de suas amostras21,25-27,29, apontando que idosos têm maior risco de desenvolver DN, visto que, grande parte das doenças que causam esse tipo de dor têm maior incidência com o avançar da idade39.
No entanto, alguns estudos demonstraram a prevalência de DN em pessoas com diabetes com média de idade inferior a 60 anos20,36. Essa diminuição da faixa etária revela que, apesar de evidências apontarem o aumento da prevalência de diabetes em idosos (≥65 anos), há o crescimento da doença em adultos de meia-idade (35-64 anos)40, evento justificado pelo estilo de vida sedentário e maus hábitos alimentares adotados por grande parte da população, que levam à obesidade5.
Quanto aos níveis de escolaridade, o ensino fundamental incompleto teve maior expressão na amostra, demonstrando significância entre os grupos, como o observado em outro estudo, que obteve 62%41. Esses resultados estão de acordo com a realidade brasileira, registrada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de que a população idosa tem até 4 anos de estudo42. Essa ocorrência pode estar relacionada com o perfil dos usuários, que utilizam os serviços da ESF, caracterizado por pessoas idosas, com baixa renda e baixa escolaridade, que têm percepção ruim da própria saúde e necessitam de mais cuidados por estarem mais suscetíveis ao adoecimento43,44.
No que se refere ao estado civil, mais da metade da amostra foi composta por pessoas casadas (54,26%), fato considerado positivo por se acreditar que o indivíduo inserido em um ambiente familiar tende a receber maior apoio e suporte durante o tratamento e o autocuidado41.
No presente estudo, a média global de tempo de diagnóstico de diabetes foi de 8,09±6,55 anos. Pessoas com dor com características neuropáticas tiveram maior média (10,05±7,07), entretanto, não houve significância estatística entre os grupos estudados, bem como em pesquisa realizada na Coréia28. No entanto, muitos autores têm relatado que o tempo de diagnóstico de diabetes está relacionado com o desenvolvimento de DN25,27,29,45.
A amostra foi composta por 92,54% de indivíduos que referiram dor em membros inferiores, a maioria nos pés em ambos os grupos. Contudo, não houve associação entre o local da dor e a dor com características neuropáticas (p=0,1634). A dor costuma afetar com maior frequência as extremidades inferiores, caracterizando o "padrão em meia"46.
Quanto ao DN4, o item "formigamento" foi o mais relatado pelas pessoas que referiram dor (15,55%), juntamente com o sintoma "alfinetada e agulhada" com a mesma percentagem. Por fim, teve-se o "adormecimento" com 14,33%. Esses três sintomas foram os mais frequentes também entre pessoas com dor de características não neuropáticas, com maiores proporções observadas nas com dor do tipo neuropática.
Resultado semelhante foi observado na África do Sul24, em que se obteve a "queimação" (36,5%) como queixa mais relatada, seguida dos itens "alfinetada e agulhada" (35,4%) e "adormecimento" (31,2%). Esses resultados estão em concordância com o previsto na literatura, que apontam o formigamento, a dormência, a queimação, dor contínua, lacerante e com sensação de agulhadas como manifestações clínicas da DN2,47.
Quanto à intensidade da dor, observou-se que 36,36% dos voluntários referiram dor intensa, por meio da aplicação da EAV, enquanto pessoas com dor com características não neuropáticas, apenas 13,04%. Porém não houve diferença significativa em relação à intensidade, entre os grupos da pesquisa (p=0,1307). Pesquisadores franceses também observaram que a intensidade da dor foi significativamente maior em indivíduos com DN (p<0,001)37. Na investigação atual, a dor moderada foi mais frequente em ambos os grupos, corroborando com o encontrado na África do Sul, onde a maioria dos participantes (67,7%) também referiu dor moderada24. Tais estudos divergiram dos resultados de outros autores que relataram a dor intensa como a mais frequente em suas amostras36.
Sabe-se que as manifestações clínicas da DN se apresentam com intensidade de moderada a intensa2, todavia, a experiência da dor varia conforme a percepção de cada indivíduo, podendo estar associada com aspectos próprios de cada cultura, crenças religiosas e até mesmo às diferentes formas de percepção de saúde48. Estudo realizado com asiáticos demonstraram que essa população relatou problemas menos graves, comparados com pessoas da América Latina e do Oriente Médio36.
Todos os participantes da presente amostra relataram tomar algum fármaco para diabetes, revelando uma boa adesão ao tratamento. Porém, vale lembrar que apesar do tratamento da diabetes ser fundamental para prevenir complicações e o surgimento da DN, o controle da doença de base, não deve ser a única forma de combater a DN, pois tem atuação coadjuvante em seu tratamento49. Entretanto, quando questionados sobre a realização de tratamento para a dor, 52,27% das pessoas com dor de características neuropáticas relataram fazer algum tipo de intervenção, enquanto pessoas com dor de características não neuropáticas, apenas 26,09%, revelando associação (0,0400). Acredita-se que essa diferença entre os grupos pode ter ocorrido devido às características extremamente desagradáveis da DN, frequentemente relatadas pelos pacientes2, fazendo com que buscassem tratamento para a dor.
De forma semelhante, um estudo revelou que o grupo de pacientes com neuropatia diabética e DN era mais medicado em comparação ao grupo com neuropatia, mas sem dor33. Da mesma forma, em pesquisa realizada no Brasil, obteve-se um total de 72% de pacientes com DN, que faziam algum tipo de tratamento analgésico, afirmando que adultos que experimentam a DN procuram mais por cuidados de saúde em relação a pessoas que não referem esse sintoma47.
Outra possibilidade seria a maior intensidade da dor observada em pacientes com características neuropáticas desta pesquisa, uma vez que 36,36% de seus componentes referiram dor intensa, por meio da aplicação da EAV, enquanto em indivíduos com características não neuropáticas, apenas 13,04%.
Apesar de mais da metade da amostra (52%) referir dor, percebeu-se que o único tratamento realizado nas unidades de saúde aqui estudadas foi o tratamento da doença de base. Ao serem questionados sobre qual tratamento faziam para aliviar a dor, os relatos dos pacientes da amostra foram sobre a utilização de analgésicos comuns, associados a relaxantes musculares, chás e géis de massagem.
Em estudo realizado na Nigéria26, 81,5% utilizavam fármacos para a dor, contudo apenas 20,5% estavam usando os recomendados para DN. Em alguns estudos epidemiológicos, a maioria das pessoas com DN faziam tratamento com analgésicos inapropriados para esse tipo de dor, como anti-inflamatórios não esteroides e paracetamol21,24.
O uso de analgésicos convencionais é ineficaz no tratamento de DN, sendo necessária a administração de fármacos adequados, como antidepressivos, anticonvulsivantes e opioides50. Apesar da Organização Mundial de Saúde ter incluído fármacos para DN em sua lista de fármacos essenciais, na maioria dos países emergentes e em desenvolvimento essa lista modelo é deficiente em fármacos eficazes para a DN51.
Através dos resultados obtidos, constatou-se a necessidade de identificar a dor com características neuropáticas, nas unidades de saúde da atenção básica, a fim de que, através da busca ativa, seja possível elaborar estratégias para a prevenção desse tipo de dor, estabelecendo uma intervenção adequada e gerando informações epidemiológicas capazes de auxiliar no manuseio da dor.