versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.17 no.1 São Paulo 2019 Epub 31-Jan-2019
http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2019ao4515
O gênero Streptococci representa a maioria das bactérias que colonizam a cavidade oral nos primeiros meses de vida.(1)A colonização inicial de Streptococcus mutans ocorre principalmente após a erupção dentária e está associada ao desenvolvimento de cáries. As bactérias S. mutans colonizam a superfície dentária, acumulam-se no biofilme e produzem ácidos que promovem a desmineralização do esmalte dentário.(2)A cárie é uma doença infecciosa e um problema de saúde pública, especialmente no Brasil, pois as crianças são colonizadas por S. mutans precocemente, mesmo antes da erupção dos dentes.(3)A colonização precoce pode estar associada a alto consumo de sacarose, contato com indivíduos altamente infectados(4-6)e imaturidade do sistema imunológico das mucosas em crianças.(7,8)
A aquisição e o estabelecimento iniciais dos microrganismos ocorrem por meio de uma sucessão microbiana que depende de hábitos, contato com outros indivíduos e alimentação. O aleitamento materno é prática comum no Brasil, e investigação acerca dos componentes do colostro se faz necessária. Sabe-se que o colostro tem grande diversidade bacteriana,(9)incluindo Streptococci, Staphylococci, bactérias do ácido láctico e bifidobactérias,(10)que podem determinar a colonização do organismo de crianças amamentadas. A microbiota intestinal de crianças que passaram pelo aleitamento é rapidamente invadida por bifidobactérias(11,12)e, mais tarde, com suplementação alimentar, é colonizada predominantemente por Enterobacteriaceae , Streptococcus , Bacteroides e Clostridium .(11)
O colostro possui diversas propriedades que beneficiam os recém-nascidos, pois é importante fonte de componentes nutricionais e imunológicos.(13,14)Os benefícios do leite materno em diversas infecções respiratórias e intestinais já foram amplamente descritos, mas, em relação à cárie, são controversos e ainda não estão claros. Há evidências de que as cáries representem um desfecho negativo associado ao aleitamento, devido ao aumento de cáries em períodos mais longos de amamentação.(15,16)Por outro lado, sugere-se que períodos reduzidos de amamentação estejam associados ao aumento no risco de cáries precoces.(17)
Estudos anteriores sobre análise imunológica de colostro de mulheres brasileiras relataram altos níveis de imunoglobulina A contra S. mutans e seus antígenos de virulência, o que poderia contribuir para a modulação de infecções por S. mutans. (18,19)Porém, há poucas informações com relação à contribuição do colostro na composição da colonização oral.
Avaliar a presença de Streptococcus mutans em amostras de colostro, compará-las com amostras de saliva de mães e dos recém-nascidos, e associar os achados a dados sobre saúde oral.
Trata-se de estudo observacional com recém-nascidos e mães saudáveis, que deram consentimento para participar. O Comitê de Ética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo aprovou o estudo, CAAE: 02166713.4.0000.5145. Mulheres multíparas voluntárias foram incluídas no estudo e submetidas a exame dentário, apresentando boa saúde sistêmica e oral (sem cáries ou doença periodontal). Foram submetidas a cesárea eletiva para gestação a termo. Foram excluídos do estudo recém-nascidos com malformações congênitas, hipóxia perinatal, hemorragia intracraniana, peso ou altura incompatíveis com idade gestacional, ou em antibioticoterapia. As informações sobre história pregressa e gestacional foram obtidas por entrevista com a mãe. As instruções sobre a higiene oral e materna foram dadas após as coletas. Todos os voluntários (mães e recém-nascidos) foram encaminhados para seguimento na Clínica Odontológica da universidade. Um total de 43 amostras foram elegíveis, de 203 coletadas de mães que deram à luz na maternidade do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e passaram por exame na cavidade oral.
No primeiro dia de internação, as gestantes foram entrevistadas e passaram por exame da cavidade oral; as amostras de saliva não estimulada foram coletadas. A saliva dos recém-nascidos foi coletada logo após o nascimento e antes de qualquer contato com a mãe, incluindo a primeira mamada, para evitar-se contaminação por componentes não salivares. As amostras de saliva foram coletadas com pipetas de transferência de polipropileno. Foi adicionada solução de EDTA de 250mM, pH 5.2 (Sigma, St. Louis, Missouri, EUA) a cada amostra antes do transporte em gelo para o laboratório, onde foi armazenada a -80°C até a análise.
As amostras de colostro foram coletadas por expressão manual em tubos Falcon de polipropileno estéril, no primeiro dia de lactação. Após a coleta, as amostras foram transportadas em gelo ao laboratório, centrifugadas a 1.300g, por 5 minutos, e armazenadas a -80°C até o momento dos procedimentos laboratoriais.
O DNA foi extraído com o kit PowerLyzer PowerSoil DNA Isolation Kit (MO-BIO, Carlsbad, Califórnia, EUA), de acordo com as instruções do fabricante. Primeiramente, as amostras foram incubadas com solução de lisozima de 20mg/mLl-1(Sigma, Tóquio, Japão), contendo 50mM de Tris-HCl (pH 8,0) e EDTA de 20mM, e incubadas a 37°C, por 30 minutos. As amostras foram imediatamente transferidas para um tubo Eppendorf de 1,5mL, com bead solution . Após, foi feita agitação em vórtex por 2 minutos para obter a suspensão bacteriana, que foi, então, transferida para o tubo Powerlyzer Glass Bead Tube (MO-BIO, Carlsbad, Califórnia, EUA). A concentração do produto purificado da reação em cadeia da polimerase (PCR) foi medida com o espectrofotômetro NanoDrop 2000 (Thermo Scientific, Waltham, Massachusetts, EUA). O par de primers (Sm479F: 5′-TCGCGAAAAAGATAAACAAACA-3′; e Sm479R: 5′-GCCCCTTCACAGTTGGTTAG-3′)(20)foi obtido da Invitrogen (Tóquio, Japão). A PCR em tempo real foi realizada pelo sistema StepOne™ Real-Time PCR System (Thermo Scientific, Waltham, Massachusetts, EUA). Cada tubo de reação continha uma mistura de reação, incluindo 6,5µL de SYBR Green (Roche, Illinois, EUA), 1µL de cada primer , 4,5µL de água ultrapura, e 2µL de DNA extraído das amostras. Foram feitos 45 ciclos de 15 segundos, a temperatura de 94°C para desnaturação; 30 segundos a 56°C, para recozimento; e 30 segundos a 72°C, para extensão, seguidos pela análise da curva de fusão do produto da PCR. Foram feitos dois testes PCR para todas as amostras. Para controle positivo, foi utilizado o DNA de S. mutans (UA159).
As diferenças nas frequências de detecção de S. mutans nas amostras foram obtidas por meio do teste do χ2. A correlação entre a detecção positiva de S. mutans e os dados obtidos em entrevistas foi testada pelo coeficiente de correlação de Pearson. Valores de p<0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
Streptococcus mutans não foi detectado na maioria das amostras de colostro (84%) e nem de saliva dos recém-nascidos (70%) e mães (51%) ( Tabela 1 ). A análise comparativa entre as frequências da detecção positiva e negativa de S. mutans nas amostras mostrou que houve diferenças estatisticamente significativas entre as amostras de colostro e saliva total das mães, ou seja, a saliva materna apresentou maior presença de S. mutans do que o colostro (teste do χ2; p<0,05). Foi encontrada correlação positiva entre a detecção positiva e negativa de S. mutans entre a saliva dos recém-nascidos e a materna (correlação de Spearman; p<0,05; rs=0,36).
Tabela 1 Amostras positivas e negativas de colostro, saliva materna e saliva do recém-nascido para detecção de Streptococcus mutans
Amostras n=43 | Positiva n (%) | Negativa n (%) |
---|---|---|
Colostro | 7 (16)* | 36 (84)* |
Saliva materna | 21 (49)* | 22 (51)* |
Saliva do recém-nascido | 13 (30) | 30 (70) |
*Teste do χ2; p<0,003; q=10,37.
A maioria das participantes (70%) não passou por tratamento dentário durante a gestação ( Tabela 2 ). Mais de 60% informaram que iam regularmente ao dentista e escovavam os dentes mais de três vezes ao dia ( Tabela 2 ). Embora 69% das mães que não passaram por tratamentos dentários durante a gravidez tenham apresentado S. mutans , este dado não se mostrou estatisticamente significativo (p>0,05). A ausência de tratamento dentário durante a gestação resultou em maior número de amostras positivas para S. mutans na saliva total das mães do que no colostro e na saliva dos recém-nascidos (p<0,05).
Tabela 2 Amostras com detecção positiva e negativa de Streptococcus mutans em colostro, saliva materna, saliva do recém-nascido de acordo com os dados de saúde oral
Dados | n (43) | Colostro | Saliva materna | Saliva do recém-nascido | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
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Positiva n (%) | Negativa n (%) | Positiva n (%) | Negativa n (%) | Positiva n (%) | Negativa n (%) | ||
Saúde oral | |||||||
Consultas frequentes com dentista | 16 | 2 (13) | 14 (87) | 7 (44) | 9 (56) | 6 (38) | 10 (62) |
Não | 27 | 5 (19)* | 22 (81)* | 14 (52)* | 13 (48)* | 7 (26) | 20 (74) |
Tratamento dentário durante a gestação | |||||||
Sim | 13 | 3 (23) | 10 (77) | 4 (31) | 9 (69) | 5 (38) | 8 (62) |
Não | 30 | 4 (13)† | 26 (87)† | 17 (57)†‡ | 13 (43)†‡ | 8 (27)‡ | 22 (73)‡ |
Número escovações de dente por dia | |||||||
1-2 | 16 | 4 (25)§ | 12 (75)§ | 10 (63)§ | 6 (37)§ | 6 (38) | 10 (62) |
Mais de 3 | 27 | 3 (11)¶ | 24 (89)¶ | 11(41)¶ | 16 (59)¶ | 7 (26) | 20 (74) |
* teste exato de Fisher, p<0,05;†teste exato de Fisher, p=0,001;‡teste do χ2, p<0,001, q=18,47;§teste exato de Fisher, p<0,01;¶teste exato de Fisher, p<0,01.
Não foram detectadas diferenças estatisticamente significativas na frequência de detecção de S. mutans nas amostras, de acordo com o número de vezes que as mães escovam os dentes por dia (p>0,05). Também não houve diferenças estatisticamente significativas entre o colostro e a saliva dos recém-nascidos, nem entre a saliva materna e a saliva dos recém-nascidos (p>0,05). Foi encontrada diferença estatisticamente significativa na frequência da detecção de S. mutans quando comparada entre o colostro e a saliva materna na variável escovação dentária diária para as opções uma a duas vezes e três vezes (p<0,01).
Analisar a presença de S. mutans pela detecção de material genético no colostro e na saliva de mães e recém-nascidos, e comparar os resultados a dados sobre higiene oral e hábitos higiênicos. O par de primers Sm479F/R é altamente específico e sensível para a identificação de S. mutans em amostras de DNA purificadas ou misturadas.(20)Embora a PCR tenha sido eficaz na detecção de S. mutans nas amostras e no controle positivo, deve-se considerar que a detecção do material genético com a utilização dos ensaios não diferencia entre microrganismos vivos e não vivos, ou fragmentos bacterianos. Todas as amostras eram de bebês que nasceram de parto cesáreo, e o tipo de nascimento é fator que influencia na composição da microbiota intestinal na primeira infância.(21)
Embora estudos prévios tenham detectado espécies de Streptococcus em abundância no colostro,(22)em nosso estudo apenas 16% das amostras de colostro apresentaram presença da S. mutans. As vias de entrada das bactérias pelas glândulas mamárias, e de saída pelo colostro e leite maduro ainda não estão claras. Há algumas hipóteses sobre a presença das bactérias nas glândulas mamárias, como o contato com o ambiente externo, a entrada das bactérias por vias dentro do corpo humano e possível associação das duas primeiras hipóteses.(23)A contaminação externa pode ocorrer pelo contato da microbiata neonatal bucal com a microbiata da pele durante o aleitamento.(24)Isso poderia explicar a predominância de Staphylococcus e Streptococcus no leite materno, ambos comensais típicos da microbiota oral e da pele.(25,26)Contudo, a coleta do colostro foi feita antes do primeiro contato da mãe com o recém-nascido e após assepsia das mamas. Outra via envolve a rota interna bacteriana, que ocorre quando microrganismos orais alcançam o intestino materno, saem por meio da internalização em leucócitos (como as células dendríticas), migram para os vasos linfáticos através da circulação sanguínea e chegam às glândulas mamárias.(27,28)Portanto, os recém- nascidos que recebem S. mutans da mãe pelo colostro no primeiro dia de vida foram minoria, mas esse processo de translocação bacteriana pode ser mais intenso, quando o estímulo da sucção e a liberação hormonal estimulam maior funcionamento das glândulas mamárias e, consequentemente, a secreção de bactérias que devem ser investigadas.
A boca é o local do corpo com a maior diversidade de bactérias, em comparação à microbiota intestinal e vaginal.(29)Assim como em outras interfaces do corpo, a mucosa oral está constantemente lutando pela integridade de seu tecido. O sistema imune trabalha para prevenir a invasão de tecidos por bactérias da cavidade oral.(30)Porém, durante a gestação, há aumento na permeabilidade gengival devido a mudanças hormonais, o que pode contribuir para a transferência de bactérias da boca para a circulação sanguínea. Alguns estudos confirmam a presença de bactérias da cavidade oral nos tecidos fetais, especialmente aquelas associadas à doença periodontal, como Fusobacterium nucleatum em mulheres que tiveram partos prematuros.(31)Sabe-se pouco das bactérias cariogênicas do nicho oral materno no desenvolvimento do sistema imune e na colonização oral do feto.
Os resultados mostram que, embora o microrganismo esteja presente em algumas amostras de saliva materna, nem sempre entra na circulação, alcança as glândulas mamárias e é secretado com o colostro. Algumas mães apresentaram S. mutans na saliva, mas não no colostro. E, ao contrário, a presença de S. mutans foi observada em três amostras de colostro de mães cuja saliva não apresentou S. mutans. Considerando-se que a S. mutans pode ser transitória na cavidade oral, é possível que a bactéria não estivesse presente na cavidade oral na hora da coleta. Em geral, 33% das mulheres infectadas transmitiram a bactéria pelo colostro.
Dos recém-nascidos, 30% apresentavam presença de S. mutans na saliva, assim como suas mães. Isso sugere que a exposição à bactéria e a consequente colonização podem ocorrer ainda durante a vida intrauterina. A S. mutans é transmitida ao feto pela via enteromamária, chegando à cavidade oral quando o líquido amniótico é engolido. Este mecanismo poderia explicar o estímulo imune e a consequente produção da IgA salivar contra S. mutans em recém-nascidos.(7,8)Esses achados são diferentes de outros que não detectaram as bactérias no nascimento pela técnica checkerboard ,(8)mas que utilizaram apenas crianças entre 5 e 11 meses de vida.(3)
Os dados obtidos nas entrevistas com as mães são importantes com relação à higiene oral e aos hábitos de comportamento e sua associação com a presença de S. mutans nas amostras. As mães que disseram não ir ao dentista regularmente e que não passaram por tratamento dentário durante a gestação apresentaram maior frequência de S. mutans na saliva. Por outro lado, o colostro e a saliva dos recém-nascidos dessas mesmas participantes apresentava baixa frequência de S. mutans detectável. A frequência da detecção de S. mutans nas pacientes que disseram escovar os dentes mais do que três vezes por dia mostrou-se mais baixa em todas as amostras. O número de escovações por dia não apresentou diferenças na detecção positiva e negativa de S. mutans em cada grupo de amostras. A comparação entre as amostras demonstrou diferenças entre o colostro e a saliva das mães – houve mais amostras de colostro com detecção negativa do que amostras de saliva materna, para as opções de escovação uma a duas vezes ao dia, e mais de três vezes por dia.
Streptococci mutans pode ser detectado na minoria das amostras de colostro. Dados sobre comportamento e hábitos de higiene parecem influenciar na detecção de Streptococci mutans nas amostras maternas de saliva e colostro. Tratamentos dentários e prevenção de cáries durante a gravidez e após o nascimento do bebê devem ser usados para evitar a transmissão de Streptococci mutans pela saliva e leite maternos.