versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.3 São Paulo mar. 2019 Epub 21-Fev-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190022
O câncer (CA) tornou-se a segunda causa de mortalidade no Brasil a partir de 2006 e há previsão de que ultrapasse as doenças cardiovasculares (DCV), atualmente consideradas a causa principal, entre 2020 e 2025.1 As DCV e o CA partilham fatores de risco em comum tais como a obesidade, o sedentarismo, a hipertensão arterial, o tabagismo, o diabetes mellitus, a faixa etária elevada e o padrão alimentar. Portanto, a coprevalência de CA e DCV é elevada. O diagnóstico e a prevenção de ambas as doenças devem ser realizados de forma integrada.2 O tratamento oncológico com a quimioterapia (QT) combinada trouxe aumento da sobrevida, porém também levou ao risco de cardiotoxicidade (CTX); à incidência de disfunção ventricular assintomática; ou até mesmo de miocardiopatia.3 O diagnóstico precoce da CTX é importante, posto que quanto mais precoce for o diagnóstico do acometimento miocárdico, maior é a chance de recuperação da função sistólica.4
A monitorização da função ventricular esquerda (VE) durante o tratamento do CA objetiva detectar a disfunção cardíaca em uma fase subclínica, e não quando já houver fração de ejeção reduzida em paciente sintomático. Os grupos de quimioterápicos que mais frequentemente causam agressão ao miocárdio são as antraciclinas (ANT), largamente usadas no tratamento dos tumores sólidos e doenças malignas hematológicas, e os anticorpos monoclonais, cujo exemplo típico é o trastuzumabe (TZU).5,6 A CTX das ANT foi inicialmente descrita como dose-cumulativa, irreversível e por lesão mitocondrial. Em contraste àquela relacionada ao TZU que não é dose-dependente, é reversível e não causa lesão mitocondrial, entretanto em ambas as agressões relatou-se a possibilidade do remodelamento reverso e da recuperação da função ventricular. Séries de casos de pacientes sob uso de ANT referiram incidência entre 15% e 17% de algum grau de redução da fração de ejeção do VE (FEVE) pelo método de Simpson e 2% a 3% de insuficiência cardíaca (IC) grave,7 entretanto séries mais recentes relatam incidência menor.
Há diferentes definições arbitradas para o diagnóstico de disfunção ventricular relacionada à terapêutica do CA, extrapoladas de situações clínicas diversas e com escassa validação específica. Atualmente, uma das mais usadas é a redução da FEVE em valores superiores a 10% do valor basal para valores abaixo do corte de 53%, com ou sem sintomas, repetindo-se o exame duas a três semanas após a aferição inicial.8 Para Zamorano et al.9 este limite inferior de normalidade da FEVE é de 50%, também com uma redução de 10%. Outras definições quantificam em queda da FEVE maior que 10% para FEVE abaixo de 55%, em pacientes assintomáticos, ou queda maior que 5% para FEVE menor que 55% em sintomáticos.10 Inicialmente, a biópsia endomiocárdica foi utilizada como padrão-ouro de cardiotoxicidade, mas seu caráter invasivo e o risco de complicações fizeram com que fosse progressivamente substituída pelos métodos de imagem. Várias técnicas foram propostas como ferramentas para o diagnóstico e o prognóstico da CTX associada à QT, com destaque para os biomarcadores séricos, o ecocardiograma convencional, o strain bidimensional, a ventriculografia radionuclídica (VRN) e a ressonância magnética cardíaca (RMC). O objetivo da presente revisão é trazer ao clínico as principais vantagens e desvantagens dos diversos métodos de imagem, com respeito à análise crítica, acurácia, limitações e perspectivas clínicas, no diagnóstico e monitoramento da disfunção ventricular esquerda por quimioterápicos.
Esta revisão seguiu adaptações dos princípios da metodologia Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA). A pesquisa de artigos incluiu as bases de dados MEDLINE, ScIELO e LILACS. Os descritores utilizados foram “Cardiotoxicidade”; “Disfunção Ventricular Esquerda”; “Antineoplásicos”; “Antraciclinas”; “Técnicas e Procedimentos Diagnósticos”; “Ecocardiografia”; “Ecocardiografia Doppler”; “Ecocardiografia Bidimensional/Tridimensional/de contraste”; “Cintilografia”; “Medicina nuclear”; “Tomografia computadorizada”; “Ressonância magnética”. Também foram consultadas as listas de referências dos artigos encontrados na busca eletrônica e, assim, foram identificados artigos relevantes. Objetivou-se responder qual é o método de imagem mais apropriado para a detecção precoce de disfunção ventricular em pacientes submetidos à QT do CA dentro do contexto da prática clínica. Todos os resumos foram analisados de forma independente por dois pesquisadores. Foram considerados nesta revisão os artigos originais do tipo ensaio clínico, coorte, caso-controle, meta-análises e artigos de revisão que dispusessem consenso de especialistas, publicados no período de janeiro de 1998 até junho de 2017, com textos disponíveis na íntegra, em inglês, espanhol ou português. Os estudos foram selecionados conforme os seguintes critérios: (a) a doença de base fosse CA com diagnóstico comprovado por histopatologia; (b) o tratamento incluísse QT com ANT, TZU ou outros sabidamente depressores do miocárdio; e (c) os métodos de diagnóstico como ecocardiografia, tomografia computadorizada, medicina nuclear ou ressonância magnética tivessem sido utilizados. Foram excluídos relatos de caso, artigos com outros tipos de terapia oncológica e os artigos que apresentaram duplicidade entre as bases. Duzentos e vinte e um resumos preencheram os critérios de pesquisa nas bases de dados. Foram excluídos 162 artigos.
Doravante faremos a análise crítica de cada um dos métodos, ressaltando-se suas vantagens, desvantagens e aplicabilidade clínica no tocante a detecção de CTX causada pela QT. Um resumo desta análise encontra-se na tabela 1.
Tabela 1 Vantagens, desvantagens e aplicabilidade dos métodos de imagem na detecção de cardiotoxicidade por quimioterápicos
Método | Vantagens | Desvantagens | Aplicabilidade |
---|---|---|---|
2D-ECO | • Disponível• Permite repetições seriadas • Avalia anatomia e função |
• Elevada variabilidade • Detecta alterações tardias |
• Exame de triagem• Diagnóstico de doença estabelicida |
2D-ECO + Simpson + Contraste | • Melhora a acurácia em relação ao 2D-ECO | • Eleva o custo • Maior tempo de exame |
• Permite avaliação acurada com tecnologia mais simples e acessível |
3D-ECO | • Acurácia e reprodutibilidade próximas à RMC | • Baixa disponibilidade | • Detecção acurada |
2D-STE | • Detecta disfunção subclínica | • Baixa disponibilidade • Depende de janela ecocardiográfica • Variabilidade entre valores de referência |
• Triagem inicial dos pacientes que necessitarão de acompanhamento |
VRN | • Excelente acurácia e reprodutibilidade | • Baixa disponibilidade • Não avalia outras estruturas como válvulas, pericárdio |
• Dúvidas da aferição da FEVE ao ECO • Imagens inadequadas ao ECO |
RMC | • Padrão-ouro para avalição de volumes e da FEVE • Permite diagnóstico de outras etiologias de miocardiopatias • Permite caracterização tecidual |
• Baixa disponibilidade • Tempo prolongado de exame • Custo |
• Nas dúvidas etiológicas • Dúvidas na aferição da FEVE ao ECO |
2D ECO: ecocardiograma bidimensional; 3D ECO: ecocardiograma tridimensional; 2D STE: ecocardiograma bidimensional com strain; VRN: ventriculografia com radionuclídeos; RMC: ressonância magnética cardíaca; FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo.
A ecocardiografia bidimensional (2D ECO) com Doppler é o método mais frequentemente utilizado no acompanhamento pré-, per- e pós-QT por não ser invasivo, não utilizar radiação ionizante, ter alta disponibilidade e custo-efetividade. Avalia as funções sistólica e diastólica, as valvas cardíacas e o pericárdio, oferecendo desta forma análise das diversas manifestações de CTX.11 A quantificação da FEVE é a mais aceita para a aferição da função sistólica do VE e é um importante parâmetro no algoritmo de monitorização de CTX induzida pela QT, capaz de diagnóstico e prognóstico de resultados clínicos, sustentando decisões de seguir ou parar com a terapêutica antineoplásica.8 É importante que esta medida seja acurada com mínima variabilidade temporal. No entanto, a FEVE pelo 2D ECO tem uma elevada variabilidade temporal, em torno de 10% [9,1% - 11,8%] e para que se possa detectar com segurança uma alteração na FEVE de 10%, esta medida deveria ter uma variabilidade temporal menor. Desta forma é possível afirmar que a FEVE medida pelo 2D ECO é menos confiável.12
A redução da FEVE após QT é considerada um achado tardio que pode indicar uma agressão miocárdica irreversível e impedir mudança da evolução com a terapia adequada. A disfunção diastólica poderia preceder e predizer uma disfunção sistólica tardia, entretanto nenhum parâmetro da função diastólica mostrou definitivamente ser preditivo de CTX e os estudos são conflitantes.13-17
O ventrículo direito (VD) é comumente acometido pela QT, de modo precoce, com maior número de segmentos acometidos do que o VE e com a predominância do septo interventricular.18 Sua rotina de avaliação deve seguir as recomendações de Lang et al.19 Deste modo, a quantificação da função sistólica e diastólica do VD seria importante para a monitorização seriada, porém há significativa dificuldade técnica que restringe seu uso rotineiro na prática clínica.
Em suma, pesa sobre o 2D ECO a elevada variabilidade intra- e inter-examinador que comprometem a reprodutibilidade do método.
A avaliação dos volumes e da FEVE pelo 3D ECO não se baseia em suposições geométricas; não é afetada por exibições encurtadas20 e é quantificada por um algoritmo automatizado de rastreamento de borda,21 diferente do 2D ECO. Estudos com RMC mostraram que a avaliação da FEVE e dos volumes do VE através do 3D ECO tem melhor acurácia e reprodutibilidade22,23 e menor variabilidade temporal para a monitorização seriada da FEVE.12
No estudo de Walker et al.23 avaliou-se a acurácia da medida da FEVE através do 2D ECO, VRN e 3D ECO em relação à RMC, de pacientes que usaram doxorrubicina (DOXO) e TZU. O volume diastólico final do ventrículo esquerdo (VDFVE) demonstrou modesta correlação entre 2D ECO e a RMC (r = 0,64 basal, r = 0,69 aos 12 meses); a correlação do VDFVE entre 3D ECO e RMC demonstrou ser mais forte (r = 0,87 basal; r = 0,95 aos 12 meses); a FEVE pelo 2D ECO apresentou uma fraca correlação com a RMC (r = 0,31 basal, r= 0,42 aos 12 meses). Ambos 3D ECO e VRN mostraram uma forte correlação quando comparados com a RMC (r = 0,91 basal, r = 0,90 aos 12 meses). Quando comparado com a VRN, a medida seriada da FEVE através da 3D ECO mostrou ser viável, precisa e reprodutível para o monitoramento seriado da FEVE nesses pacientes.
A ecocardiografia é o método de escolha para a avaliação seriada de pacientes submetidos à QT ao se ponderar disponibilidade, custo e risco. O cálculo preciso da FEVE deve ser realizado com o melhor método disponível no laboratório de ecocardiografia, idealmente pelo 3D ECO. Caso se utilize o 2D ECO, a técnica de Simpson é a de eleição.8 Ao se utilizar o 2D ECO, dever-se-ia associar o contraste, com melhora da acurácia e reprodutibilidade das medidas dos volumes e na FEVE.24
O ecocardiograma bidimensional com Speckle tracking (2D STE) é uma técnica acurada, de fácil realização e boa reprodutibilidade. Mede a deformação miocárdica através do strain e do strain rate nos três planos espaciais: longitudinal, circunferencial e radial. O strain sistólico global longitudinal do VE (GLS VE) tem uma variabilidade intra e interobservadora de 4,9% a 8,6%, portanto menor do que na medida da FEVE.25 Tem um valor prognóstico incremental à FEVE para a predição de todas as causas de mortalidade na população geral.26 Ao strain e strain rate são imputadas a capacidade de detecção da disfunção subclínica do VE e a predição da disfunção cardíaca relacionada à QT, especialmente com o uso das ANT e do TZU.
No estudo de Charbonnel et al.27 o GLS VE aferido precocemente antes do tratamento e após doses baixas de ANT - 150 mg/m2 - demonstrou ser preditor de alteração na FEVE doze meses após a dose inicial. A CTX ocorreu em seis de 86 pacientes (7,0%). Observou-se um valor preditor do GLS VE na avaliação pré-QT, com uma área sob a curva ROC de 0,76 e um limiar preditor do GLS VE de (-) 19,95%; na avaliação com doses baixas, o GLS VE mostrou uma informação preditiva incremental de CTX, com uma área sob a curva ROC de 0,82, para um limiar preditor do GLS VE de (-)17,45%.
O estudo de Mousavi et al.28 demonstrou que o GLS VE foi um forte preditor de IC sintomática, na avaliação pré-QT, de pacientes submetidos a QT com ANT. A idade e o GLS VE também foram preditores de todas as causas de mortalidade. Um GLS VE maior que (-)16% esteve associado a um aumento de 4,7 vezes na ocorrência de IC sintomática.
Nosso grupo de pesquisa em cardio-oncologia estudou o GLS VE pré-QT como preditor de disfunção VE e encontrou dados, ainda não publicados, semelhantes aos dos autores supracitados.27,28
Em 52 pacientes com CA de mama submetidos à QT com ANT, estudados uma semana antes da QT e após o ciclo completo, ocorreu queda significativa do GLS VE não acompanhada por queda da FEVE maior que 10%, o que sugere ser o GLS VE mais sensível do que a FEVE em detectar alteração da função sistólica.17
Em pacientes com linfoma não-Hodgkin, seguidos por seis meses, ocorreu uma redução significativa no GLS VE e aumento da troponina T cardíaca (cTnT), porém a FEVE se manteve dentro dos valores de referência. Quando alterações no GLS VE e da cTnT foram incluídas na análise multivariada, somente a diminuição no GLS VE entre o basal e o terceiro ciclo de QT foi preditor independente de CTX, porém não houve acompanhamento em longo prazo para determinar a relevância clínica destes achados em predizer eventos cardíacos tardios.29
Sawaya et al.30 acompanharam 43 pacientes com CA de mama tratados com ANT e TZU, realizando 2D STE e medida de biomarcadores, no basal e a 3 e 6 meses. A troponina de alta sensibilidade (hsTnI) e o GLS VE foram marcadores precoces de subsequente queda da FEVE. Aqueles que não apresentaram uma queda maior que 10% do GLS VE ou elevação da hsTnI no terceiro mês tiveram 3% de probabilidade de queda da FEVE no sexto mês. Aqueles com uma queda do GLS VE acima de 10% e/ou elevação da hsTnI apresentaram risco de CTX no sexto mês nove vezes maior do que aqueles sem uma destas alterações. Os autores inferem que a presença destes marcadores não autoriza a suspender a QT, mas sim alerta para a necessidade de monitorização cardíaca mais frequente, ou início precoce de medidas “cardioprotetoras”, ou uso de terapias alternativas menos cardiotóxicas.30
Sawaya et al.31 acompanharam 81 pacientes tratados com ANT, taxanos e TZU, dos quais 26 desenvolveram CTX, cinco com sintomas de IC. O GLS VE e a hsTnI foram preditores de CTX e um GLS VE maior que (-)19% esteve presente em todos que desenvolveram sintomas de IC.
Para Negishi et al.32 uma redução relativa maior que 11% do GLS VE, em relação ao exame pré-QT, seria o melhor preditor de CTX. Na ausência do exame pré-QT um GLS VE maior que (-)20,5% também seria um preditor de CTX, porém com uma área sob a curva ROC menor (0,67); deste modo, ele sugere que se use a redução relativa e não o valor absoluto.
Quarenta e dois pacientes em regime de ANT e TZU foram seguidos por 12 meses e 10 deles desenvolveram CTX. O GLS VE, o strain sistólico global radial (GRS) do VE e o S' detectaram uma redução pré-clínica no terceiro mês, com uma redução da FEVE no sexto mês em todos que desenvolveram CTX.33
Embora exista consenso para a necessidade de monitorização da função cardíaca por imagem não invasiva após a exposição à QT, o método utilizado e o tempo de vigilância não estão definidos. As evidências sugerem que a diminuição do GLS VE precede a queda da FEVE, entretanto faz-se necessário o acompanhamento em longo prazo para determinar a relevância clínica destes achados.
A VRN foi o primeiro método cintilográfico de avaliação seriada da FEVE em paciente sob QT.34,35 Ela tem como vantagens a excelente acurácia, a variabilidade inter e intraobservadora estimada em menos que 5%, a independência da geometria do VE, e o fato de ser exequível em pacientes de grande superfície corporal.36,37 Atualmente, o gated single-photon emission computed tomography (SPECT) tem sido utilizado para medir a FEVE; contudo, a American Society of Nuclear Cardiology recomenda que a monitorização seriada seja realizada por VRN como indicação classe I, enquanto que a técnica do gated blood-pool SPECT é indicação IIb.36 As limitações para o uso rotineiro da imagem nuclear incluem os pacientes com arritmias; a incompletude de informações sobre o ventrículo direito, os átrios, as valvas, e o pericárdio; a repetida exposição à radiação ionizante; e um custo mais elevado que a ecocardiografia. A American Society of Clinical Oncology publicou uma diretriz em 2016 sobre a prevenção e a monitorização da disfunção cardíaca em pacientes adultos com CA e recomendou a utilização da VRN ou da RMC quando o ecocardiograma não estiver disponível ou não for tecnicamente exequível, como em casos de janela ultrassonográfica inadequada.38 Além da avaliação da função sistólica, a VRN tem demonstrado o valor do acompanhamento da função diastólica em pacientes expostos a fármacos cardiotóxicos.
A VRN foi mais sensível do que a ecocardiografia em detectar diminuição precoce da FEVE,39,40 porém nestes pequenos estudos houve alta incidência de CTX (maior que 48%) sem seguimento em longo prazo. Tal limitação não permitiu traçar correlação com incidência de IC. Em um estudo de pacientes com CA de mama que receberam ANT e TZU a medida da FEVE por 3D ECO foi comparável à VRN, usando a RMC como referência.23 No documento intitulado "American Society of Echocardiography Expert Consensus Statement for Multimodality Imaging Evaluation of Adult Patients During and After Cancer Therapy"8 preconizam a utilização do 2D ECO ou 3D ECO para avaliação da FEVE antes, durante e após a QT. Em caso de imagem inadequada, recomenda-se a utilização da RMC, não tendo sido mencionada a VRN como método de rotina. Seguramente as disponibilidades específicas de cada serviço interferem na eleição do método. Há atualmente novos métodos cintilográficos com outros marcadores de injúria miocárdica precoce,35 capazes de detecção subclínica da disfunção VE, que poderiam predizer o desenvolvimento de subsequente disfunção VE ou IC, como a imagem neuronal simpática pela técnica do 123Metaiodobenzilguanidina (123I-mIBG), imagem de morte celular (111In antimiosina), imagem de terapêutica alvo (111In TZU), e imagem metabólica molecular do PET. Todas essas técnicas continuam ainda sem validação para uso clínico nesta situação da CTX.
Estudos com o marcador de integridade neuronal adrenérgico 123I-mIBG conduzidos em pacientes em uso de ANT demonstraram que a cintilografia com mIBG é capaz de identificar com grande acurácia os pacientes em maior risco de CTX.41
A RMC é o padrão-ouro na avaliação dos volumes e da FEVE pela técnica de cine RM com a quantificação pelo método de Simpson. Sua utilização de rotina está limitada pela disponibilidade e custo.42,43 Além de avaliar com precisão a função ventricular esquerda e direita, a RMC pode identificar outras prováveis causas associadas de miocardiopatia tais como a invasão miocárdica do tumor, a amiloidose, a sarcoidose, a miocardite e a doença coronariana aterosclerótica. A RMC deve sempre ser considerada o primeiro degrau antes da biópsia endomiocárdica.8
Draft et al. 44 detectaram anormalidades subclínicas da geometria e função ventricular, como aumento significativo do volume sistólico final, redução da FEVE e aumento do strain circunferencial médio em pacientes submetidos à dose baixa ou intermediária de antracíclicos. Estes marcadores não são critérios usuais de CTX e se desconhece a relação com predição de eventos futuros. Armstrong et al.45 também detectaram disfunção cardíaca subclínica através da RMC, analisando FEVE e volume do VE. Até o momento nenhum estudo de RMC demonstrou que alteração nos índices de função miocárdica após QT com ANT fosse preditora de subsequente CTX ou IC. Um estudo observacional em andamento avalia se medidas da função do VE pela RMC, em pacientes em uso de ANT com ou sem TZU, será capaz de predizer a queda da FEVE em 24 meses.46
Para Plana et al.8 a RMC deve ser usada na confirmação de alteração na FEVE relatada por outra técnica, ou quando há conflito entre medidas de técnicas diferentes. Isto só se justificaria se houvesse um plano para modificar ou interromper a QT. O uso da RMC para análise da função diastólica é de pouco interesse devido a sua acurácia ser semelhante à de ecocardiografia.47,48
Há poucos trabalhos na avaliação do strain miocárdico pela RMC na avaliação da CTX por QT. No ensaio de Draft et al.44 houve aumento no strain circunferencial da parede média precocemente, com um mês de terapia por ANT, associado a anormalidade subclínica da função ventricular, como demonstrado por uma queda da FEVE avaliada pela RMC. Faz-se necessário determinar se estes marcadores estão associados com eventos cardiovasculares nos sobreviventes de CA.
A caracterização tecidual miocárdica da CTX remonta à década de 1980, quando os estudos de necropsia e biópsia já revelavam que a inflamação miocárdica e o edema do cardiomiócito são achados precoces de CTX, e que ocorreriam anteriormente à redução da função miocárdica, em oposição à fibrose miocárdica cujo achado é tardio.49,50 A RMC, além da avaliação funcional, é capaz de realizar a avaliação morfológica e tecidual de forma qualitativa (visual) e quantitativa em percentual do músculo acometido.51 A lesão intersticial miocárdica pode ser reversível ou não, dependendo de diversos fatores, incluindo o grau de fibrose intersticial. Desta forma, a RMC consegue estabelecer o diagnóstico diferencial entre a fibrose reacional, infiltrativa e a cicatricial.52
É possível avaliar a CTX em nível tecidual com as técnicas de realce precoce e tardio.52 O grande problema é que, na grande maioria dos casos de doença subclínica, não existe fibrose visualmente detectável para ser quantificada e esta técnica é negativa.
O mapa T1 foi validado para detecção de fibrose intersticial não detectada pelas técnicas do realce tardio e os resultados são informados mediante a quantificação do tempo de relaxamento miocárdico em milissegundos.53 No pós-contraste, quanto mais baixo o T1 do miocárdio, maior o grau de fibrose intersticial. Já no pré-contraste, quanto maior o T1 do miocárdio, maior o grau de fibrose intersticial. O mapa T1 se mostrou um preditor independente de CTX em pacientes que realizaram tratamento com ANT e foram acompanhados por um período de três anos.54 A fração do volume extracelular que demarca a expansão do espaço intersticial corrigido pelo hematócrito também foi um forte biomarcardor pela imagem.54
O mapa T2 fica responsável pela quantificação do edema do cardiomiócito e auxilia na caracterização de um dano agudo, subagudo ou crônico.55 Os resultados do mapa T2 também são representados pelo tempo em milissegundos. Estudo com nove pacientes que receberam ANT mostrou que valores médios de T2 > 59 ms foram associados à CTX.56
A caracterização do tecido miocárdico pela RMC pode detectar injúria miocárdica precoce durante a QT e identificar alterações miocárdicas subclínicas nos sobreviventes de CA, porém estudos prospectivos são necessários para a confirmação desta hipótese. A relação de custo-efetividade em usar RMC frente a outras técnicas de acompanhamento sequencial de pacientes sob QT ainda necessita ser quantificada.
A angio-TC de coronárias é um método de aplicabilidade clínica crescente que utiliza baixas doses de radiação (1-2 mSv) e de contraste iodado (50 mL).57 Além de suas indicações clássicas, é possível a quantificação dos volumes e da fração de ejeção dos ventrículos.58 Após o estudo de Nacif et al.,59 o uso da angio-TC para a quantificação de fibrose intersticial miocárdica pela técnica de quantificação do VEC pode ser de grande utilidade clínica. Valores do VEC maiores do que 35% estão associados com fibrose intersticial.
Na Figura 1, propomos um fluxograma de abordagem racional aos pacientes submetidos à QT. Tal algoritmo é baseado na revisão da literatura e expertise dos autores. Carece, portanto, de validação em ensaios clínicos randomizados e controlados. A abordagem deve ser adaptada à realidade das condições de oferta e demanda de cada serviço.8 Frente a um paciente com CA sugere-se adotar os seguintes passos: (a) Ações integradas, partilhadas por cardiologistas e oncologistas, dentro de equipe multidisciplinar; (b) Avaliação clínica com estimativa do risco cardiovascular global, doenças prévias, tratamento quimio- ou radioterápicos prévios e intervenção específica quando indicada previamente à QT; (c) Dentro das limitações institucionais, considerar o ecocardiograma bidimensional com medida do strain; (d) Caso não seja exequível uma avaliação cardíaca basal em todos, priorizar aqueles com alto risco para CTX, tais como aqueles com doença prévia ou fatores de risco cardiovascular; disfunção sistólica do VE; idade maior que 65 anos; programação de altas doses de ANT (DOXO), maior que 350 mg/m2; ou combinação de QT (figura 1).
Figura 1 Proposta de acompanhamento cardiovascular aos pacientes submetidos à quimioterapia baseada em informações da literatura e experiência dos autores. ECG: eletrocardiograma; QT: quimioterapia; RT: radioterapia; 2D ECO: ecocardiograma bidimensional; VRN: ventriculografia com radionuclídeos; RMC: ressonância magnética cardíaca; ECO: ecocardiografia.
Nos pacientes sob acompanhamento, quando detectado uma FEVE < 53%, GLS VE abaixo do limite inferior da normalidade, e/ou troponinas elevadas, na ausência de sintomas, o cardiologista deve ser consultado, discutindo com o oncologista a relação risco-benéfico da QT, entretanto sua continuação ou não é uma decisão do oncologista. Os fluxogramas de atendimento dependem do potencial cardiotóxico do esquema quimioterápico. Segundo documento das sociedades norte-americana e europeia de ecocardiografia, pacientes com doses cumulativas menores que 240 mg/m2 de DOXO deveriam repetir a avaliação cardíaca após o término do esquema terapêutico e seis meses depois.8 Os pacientes com doses maiores que 240 mg/m2 deveriam passar por nova avaliação antes de cada ciclo adicional de 50 mg/m2. Os pacientes sob uso de TZU, idealmente, deveriam ter um ecocardiograma a cada três meses.8 Por indisponibilidade de dados, em pacientes com terapia por inibidores do fator de crescimento do endotélio vascular, sugere-se uma avaliação ecocardiográfica um mês depois da dose inicial e depois a cada três meses.8
Até o presente momento, não há evidências para o tratamento de pacientes assintomáticos com FEVE preservada e alteração exclusiva no strain. No entanto, o racional de se aferir o strain se fundamenta na possibilidade de monitorar amiúde os pacientes sob risco e, tão logo detectada a queda da FEVE, iniciar-se a terapêutica e obter-se o remodelamento reverso.
Para fins de detecção de disfunção subclínica, o GLS VE basal é o marcador para comparação com as medidas após QT. Uma redução relativa maior que 15% pode confirmar a disfunção. Este valor alterado deveria ser confirmado em um novo exame em duas a três semanas. A elevação da TnI com ou sem alteração do GLS VE também é considerada um marcador de lesão miocárdica, porém há múltiplas causas de elevação da TnI, assim como dúvidas quanto ao seu valor prognóstico de disfunção ventricular. Sempre que se cogite a necessidade de suspensão da QT em assintomáticos, faz-se necessário a medida da FEVE por outro método mais acurado como a VRN ou a RMC.8
Não há estudos com nível de evidência segura demonstrando o benefício do tratamento farmacológico “cardioprotetor” nos pacientes sob QT. Na hipótese de continuação da QT a despeito de alterações na função do VE, é necessária reavaliação ecocardiográfica antes de novo ciclo, ciente de antemão que o risco de CTX irá aumentar progressivamente.
Exames adicionais de imagem não são necessários para pacientes que não têm fatores concomitantes de risco, na presença de GLS ou troponina normais durante a QT e seis meses depois da última QT com ANT. Sugere-se que, após completar seu esquema terapêutico, deva haver avaliação clínica cardiovascular anual e o uso de imagem cardíaca condicionada à disponibilidade no serviço.8
A monitorização da FEVE pela 2D ECO é a estratégia mais exequível para se detectar doença cardiovascular relacionada à QT em grandes grupos de pacientes, entretanto deve ser considerada no contexto das inúmeras limitações do método. O 3D ECO é o método de escolha ao se ponderar acurácia com disponibilidade, limitações de repetição e facilidade de execução. Na sua indisponibilidade, a adição de contraste à 2D ECO deve ser recomendada, visto que isto aumenta acurácia. O GLS VE é o melhor parâmetro da deformação miocárdica para a detecção subclínica da disfunção VE, porém não há evidências sólidas mostrando o benefício de se iniciar a terapia “cardioprotetora” precoce baseada em seus resultados. A VRN tem elevada acurácia diagnóstica para disfunção ventricular e pode ser uma alternativa para os casos de dúvida à ecocardiografia. A RMC auxilia nos diagnósticos diferenciais com outras causas de miocardiopatias.
A decisão da interrupção ou manutenção de esquema quimioterápico é clínica, conjunta, multidisciplinar, fundamentada na relação risco versus benefício para cada paciente.
Ensaios clínicos randomizados, controlados, com seguimento em longo prazo, são necessários para que se possa definir se a detecção precoce da disfunção cardíaca é preditor de redução da FEVE e, sobretudo, de IC e eventos cardiovasculares maiores.