versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.1 São Paulo jan./mar. 2018 Epub 19-Abr-2018
http://dx.doi.org/10.1590/1678-4685-jbn-3776
O vírus BK (BKV) é um importante agente infeccioso em receptores de transplante renal. A infecção por BKV pode levar a disfunção grave do enxerto e, eventualmente, à perda de enxerto.1 A prevalência da nefropatia associada ao BKV (BKVAN) em pacientes transplantados renais varia de 1-10% no primeiro ano após o transplante; perda de enxerto pode ocorrer em até 80% desses indivíduos.2-4 O BKV é geralmente adquirido no início da vida através de aerossóis, resultando principalmente em infecção assintomática. Estima-se que 80-90% da população adulta apresenta anticorpos contra BKV.3,7,8
Uma vez que nenhuma terapia antiviral eficaz está disponível para tratar a infecção pelo BKV, a melhor estratégia depende da prevenção da BKVAN. A prevenção pode ser realizada através de monitoramento frequente da carga de DNA de BKV em amostras de urina e/ou plasma, seguido da redução da terapia imunossupressora sempre que replicação viral significativa for detectada.9 As sociedades internacionais recomendam 4 log de DNA de BKV no plasma como o melhor valor de corte preditor de BKVAN. No entanto, os testes comerciais baseados em reação em cadeia da polimerase quantitativa em tempo real (qPCR) podem ser onerosos para uso rotineiro na prática clínica e dados limitados estão disponíveis sobre o desempenho de testes de qPCR desenvolvidos internamente para BKV. Portanto, é fundamental que as instituições conduzam estudos de validação clínica para garantir que seus métodos sejam úteis para orientar com precisão a tomada de decisões clínicas.10-17
O objetivo do presente estudo foi estabelecer um valor de corte clinicamente significativo para viremia de BKV enquanto preditor de BKVAN em uma coorte de receptores de transplante renal. Também relatamos o desempenho de um teste de qPCR interno para quantificação da carga viral de BKV e o desempenho do teste citado em relação a um kit de qPCR comercialmente disponível.
Entre abril de 2012 e maio de 2013, 200 pacientes que receberam transplante renal em dois grandes hospitais universitários (Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e Hospital de Clínicas de Porto Alegre) foram incluídos em um estudo prospectivo. As amostras de plasma foram colhidas nos meses 3, 6 e 9 após o transplante renal para determinação da carga viral de BKV. DNA foi extraído de 140 µL de plasma por meio do QIAamp RNA Mini Kit (QIAGEN, EUA). Em todas as reações, β-globina foi adicionada como controle interno positivo.
A amplificação do DNA de BKV foi realizada por qPCR usando um kit comercial (BKV Q-PCR Alert Ampliprobe, ELITechGroup Nanogen, Buttigliera Alta, Itália) em um termociclador ABI 7500 para qPCR (Applied Biosystems), como descrito anteriormente.18
Projetamos um ensaio qPCR com base em química TaqMan em uma região altamente conservada do genoma do BKV tendo como alvo o gene da VP1 (Gene ID: 1489515, Sequência genômica NC_001538.1) com primers 5’-AGTGTTGAGAATCTGCTGTTGCTT-3’ e5’-GGGATGAAGATTTATTTTGCCATGAAGAT-3’; sonda FAM-CATCACTGGCAAACAT-NFQ). Primers e sondas para proteína ácida ribossomal humana (HuPO) foram adquiridos da Applied Biosystems (ABI) (primers 5’-GACAATGGCAGCATCTACAAC-3’ e 5’-GTTGCCAGTGTCTGTCTGC-3’; sonda FAM-ATTGCGGACACCCTCC-NFQ) e utilizados como controle interno. Resumidamente, o ensaio interno de qPCR consistia em 1 µL de ensaio 20X TaqMan, 10 µL de 2X TaqMan® Gene Expression Master Mix, 4 µL de DNA e 5 µL de água sem RNase. A amplificação por PCR foi realizada num termociclador ABI 7500 da seguinte forma: 95ºC por 10 minutos e 40 ciclos a 95ºC por 15 segundos e 60ºC por um minuto.
Para construir com precisão uma curva de calibração, desenvolvemos uma sequência de DNA sintético de 351 pb com base na sequência da cepa JQ713822.1 de poliomavírus BK do GenBank. O DNA sintético foi eluído, quantificado e diluído em série para as curvas de calibração que foram construídas como um painel de nove frascos com concentrações variando de 12,9 a 12,9×109 cópias/mL. O limite de detecção do ensaio foi estabelecido em 12,9 cópias genômicas/mL.
Os prontuários dos pacientes foram analisados para coleta de dados clínicos e informações demográficas. Entre as variáveis de interesse figuraram doenças renais subjacentes, incompatibilidades de HLA, resultados de biópsia renal e alterações nos regimes imunossupressores. As biópsias renais foram realizadas por indicação clínica. A taxa de filtração glomerular (TFG) foi estimada pela equação CKD-EPI.19 O estudo foi aprovado pelo Conselho de Ética Institucional (números de protocolo 3531/11, 12-154 e 915/12) e seguiu as diretrizes e normas regulatórias para pesquisa envolvendo seres humanos do Conselho Nacional de Saúde (Resolução CNS/196).
Estatísticas descritivas foram utilizadas para resumir os dados. O testes do qui-quadrado e o teste exato de Fisher foram utilizados na avaliação das variáveis categóricas. A normalidade dos dados foi verificada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov. As variáveis escalares normalmente distribuídas foram analisadas utilizando ANOVA ou teste t de Student quando adequado. Variáveis escalares não normalmente distribuídas foram avaliadas como não paramétricas por meio do teste de Mann-Whitney. O desempenho dos testes de qPCR foi avaliado pelas curvas de característica de operação do receptor (COR), usando biópsia renal como padrão-ouro para diagnosticar BKVAN. Gráficos lineares foram utilizados para testar a linearidade entre os testes de qPCR para BKV comercial e interno. Para todas as comparações, significância estatística foi atribuída a diferenças com p <0,05. Os preditores do desenvolvimento de BKVAN foram determinados em um modelo de regressão de Cox. Todas as variáveis com relevância clínica e p ≤ 0,05 na análise univariada foram incluídas no modelo de regressão de Cox. As análises estatísticas foram realizadas no SPSS 20.0.
A Tabela 1 resume as principais características dos pacientes incluídos no estudo. Os pacientes transplantados renais que desenvolveram infecção por BKV durante o estudo apresentaram semelhanças em vários aspectos em relação aos que não evoluíram com infecção. Os anticorpos reativo ao painel (ARP) diferiram entre os grupos. O grupo BKV-positivo apresentou percentuais mais baixos de pacientes com ARP <10% e entre 10-49%. A distribuição das incompatibilidades de HLA não diferiu entre os grupos. Noventa e nove pacientes foram submetidos a biópsia renal e oito (4,0%) desenvolveram BKVAN. Perda de enxerto ocorreu em sete pacientes (3,5%), mas BKVAN foi considerada causa de perda de enxerto em apenas um caso (14,3%; incidência geral 0,5%). Sete pacientes foram a óbito durante o estudo (3,5%).
Tabela 1 Características demográficas e clínicas da população estudada. A condição dos pacientes em relação ao BKV refere-se à presença de teste molecular positivo para BKV plasmático
Variável | Todos os pacientes (n=200) | BKV-negativos (n=75) | BKV-positivos (n=125) | p-valor |
---|---|---|---|---|
Idade dos receptores, média (dp) | 46,3 (13,2) | 47,4 (12,9) | 45,7 (13,4) | 0,659 |
Idade dos doadores, média (dp) | 44,5 (16,3) | 43,5 (17,3) | 45,2 (15,8) | 0,409 |
Sexo masculino, receptores (%) | 58,0 | 54,7 | 60 | 0,459 |
Sexo masculino, doadores (%) | 52,0 | 51,4 | 52,8 | 0,843 |
Doador falecido (%) | 82,0 | 82,4 | 81,6 | 0,883 |
Patologias subjacentes (%) | ||||
Diabetes mellitus | 19,5 | 26,7 | 15,2 | 0,048 |
DRPAD | 13,5 | 9,3 | 16 | 0,182 |
HAS | 12,0 | 13,3 | 11,2 | 0,653 |
Glomerulonefrite | 10,0 | 12 | 8,8 | 0,465 |
Nefropatia do refluxo | 6,0 | 6,7 | 5,6 | 0,758 |
Uropatia obstrutiva | 2,5 | 2,7 | 2,4 | 0,907 |
GESF | 2,5 | 1,3 | 3,2 | 0,413 |
LES | 1,5 | 0 | 2,4 | 0,176 |
Desconhecido | 32,5 | 28 | 35,2 | 0,293 |
Indução (%) | ||||
ATG | 32,5 | 41,3 | 27,2 | 0,039 |
Basiliximabe | 56,5 | 49,3 | 60,8 | 0,113 |
Outros | 0,5 | 0 | 0,8 | 0,437 |
Nenhum | 10,5 | 9,3 | 11,2 | 0,677 |
ARP (%) | ||||
Classe I | ||||
<10% | 64,0 | 55,4 | 69 | 0,033 |
≥10% to <50% | 22,0 | 31,1 | 16,7 | 0,037 |
≥50% | 14,0 | 13,5 | 14,3 | 0,641 |
Classe II | ||||
<10% | 62,0 | 53,3 | 67,2 | 0,050 |
≥10% - <50% | 31,0 | 42,7 | 24 | 0,006 |
≥50% | 7,0 | 4 | 8,8 | 0,198 |
Status CMV (%) | ||||
D- / R- | 1,6 | 0 | 2,5 | 0,185 |
D- / R+ | 17,2 | 17,4 | 17,5 | 0,995 |
D+ / R- | 4,2 | 4,3 | 4,2 | 0,943 |
D+ / R+ | 76,7 | 78,3 | 75,8 | 0,634 |
antigenemia +ve | 25,0 | 18,7 | 29,4 | 0,111 |
Incompatibilidade HLA, média (dp) | 4,2 (1) | 4,2 (1,3) | 4,6 (1,3) | 0,758 |
0 (%) | 0,5 | 0 | 0,8 | 0,437 |
1 - 3 (%) | 22 | 29,3 | 17,6 | 0,169 |
4 - 6 (%) | 77,5 | 70,7 | 81,6 | 0,730 |
DSA (%) | 11,6 | 22,7 | 4,8 | <0,001 |
Rejeição aguda (%) | 12,5 | 19,5 | 29,3 | 0,269 |
Legenda: DRPAD, doença renal policística autossômica dominante; ATG, globulina antitimocítica; BKV, vírus BK; CMV, citomegalovírus; D, doador; DSA, anticorpos doador-específico; GESF, glomeruloesclerose segmentar e focal; HLA, antígeno leucocitário humano; ARP, anticorpo reativo ao painel; R, receptor; dp, desvio padrão; HAS, hipertensão arterial sistêmica; LES, lúpus eritematoso sistêmico.
Viremia de BKV foi detectada em 32,5% (66/200) dos pacientes por meio do kit comercial de qPCR. Viremia de BKV foi detectada nos meses 3, 6 e 9 após o transplante em 16,5% (n=33), 19,4% (n=34) e 12,3% (n=18) dos pacientes, respectivamente. A carga viral plasmática de BKV foi mais elevada nos pacientes com BKVAN em comparação aos pacientes sem BKVAN (p<0,05).
A Tabela 2 mostra os valores de corte do qPCR para a predição de BKVAN, tanto para o teste comercial de qPCR quanto para o teste interno de PCR. Houve uma relação linear entre os testes de qPCR (R2 = 0,8389) (Figura 1).
Tabela 2 Desempenho da carga viral de BKV na predição de nefropatia associada ao BKV, utilizando um kit comercial e um teste desenvolvido internamente de QPCR
Sensibilidade % (IC 95%) | Especificidade % (IC 95%) | VPP % (IC 95%) | VPN % (IC 95%) | |
---|---|---|---|---|
Carga viral plasmática (cópias/ml) | ||||
≥3,8 log (kit PCR comercial) | 88 (47-98) | 96 (90-99) | 64 (31-89) | 99 (94-100) |
≥4,1 log (kit PCR comercial) | 88 (47-98) | 98 (93-100) | 77 (40-97) | 99 (94-100) |
≥6,1 log (método interno) | 87 (81-93) | 100 (94-100) | 73 (39-94) | 100 (91-100) |
Legenda: IC, intervalo de confiança; VPN, valor preditivo negativo; VPP, valor preditivo positivo; qPCR, reação em cadeia da polimerase quantitativa em tempo real.
A Tabela 3 mostra os resultados da análise multivariada para fatores de risco para BKVAN usando o kit comercial de qPCR. A viremia de BKV foi associada independentemente a BKVAN (p = 0,018), com o melhor valor de corte determinado em 3,85 log (7169 cópias/mL).
Tabela 3 Resultados do modelo de regressão de Cox para predição de BKVAN usando um kit comercial de qPCR
p-valor | Exp(B) | IC 95,0% para Exp(B) | ||
---|---|---|---|---|
Inferior | Superior | |||
Rejeição aguda | 0,487 | 2,846 | 0,149 | 54,214 |
Diabetes mellitus | 0,324 | 2,658 | 0,38 | 18,578 |
Viremia em 3,85 log | 0,018 | 35,903 | 1,85 | 696,868 |
TFG no mês 6 | 0,512 | 1,521 | 0,434 | 5,328 |
Legenda: IC, intervalo de confiança; TFG, taxa de filtração glomerular; qPCR, reação em cadeia da polimerase quantitativa em tempo real.
O presente estudo definiu valores de corte clinicamente significativos do qPCR para a predição de BKVAN por meio de dois testes moleculares: um kit qPCR comercialmente disponível e um teste interno de qPCR. Aos nove meses pós-transplante, 32,5% dos pacientes apresentavam viremia de BKV, mas apenas oito (4%) desenvolveram BKVAN. Estudos anteriores realizados no Brasil mostraram frequências mais altas de BKVAN em receptores de transplante renal,20,21 o que pode estar relacionado a diferenças na estratégia de triagem (ex.: células decoy na urina utilizadas como referência para colher mais amostras de urina/plasma para qPCR), além de biópsias regulares e tempos de isquemia. A implicação mais relevante da infecção por BKV em receptores de transplante renal é a sua capacidade de levar à fibrose do enxerto, que pode ser seguida de disfunção renal e, eventualmente, perda do enxerto.13 Portanto, de forma a interpretar corretamente as cargas virais de BKV, as instituições devem validar suas próprias metodologias para determinar os valores de corte ótimos, em vez de usar o corte “universal” recomendado de 4 log cópias/mL enquanto valor clinicamente significativo.3 Para uma interpretação precisa da carga viral de BKV, os clínicos devem saber qual teste de PCR foi usado e seu desempenho. Vários estudos analisaram o impacto clínico da viremia de BKV usando metodologias as mais diversas. Portanto, os cortes gerados com diferentes ensaios de qPCR não podem ser comparados entre si devido à acentuada variabilidade metodológica.10-17 Uma ampla gama de fatores contribui para tal diversidade, incluindo diferentes protocolos para extração de DNA, variações no projeto de primers e sondas, alvos virais, condições da PCR, tipo de amostra e uso de diferentes curvas de calibração.17,22,23
O presente estudo demonstrou que a viremia de BKV pode prever a ocorrência de BKVAN e que diferentes cortes devem ser aplicados a diferentes ensaios de qPCR (≥3,8 log e ≥6,1 log cópias/mL, respectivamente, para os kits comerciais e internos). Além disso, nosso estudo demonstrou a relação entre ARP e infecção por BKV, considerando pacientes com ARP <50% das classes I e II, embora ARP ≥50 não tenha apresentado associação com BKV (Tabela 1). Estes dados contrastam com os achados de estudos prévios, que consideraram que ARP ≥ 10% não apresenta associação com infecção por BKV.24 Em nossa coorte, 11,6% dos pacientes apresentavam DSA, porém 69% desses indivíduos não evoluíram para infecção por BKV (p ≤0,001). Nosso teste interno de qPCR tem vários pontos fortes: (i) baseou-se em uma região altamente conservada do genoma do BKV, tendo como alvo o gene da proteína viral estrutural VP1 que é altamente conservado em cepas de BKV;25 e (ii) o processo quantitativo utilizou uma sequência de DNA sintético como curva de calibração, não requerendo, portanto, o uso de controles quantificados de DNA de BKV comerciais. Os resultados obtidos com o teste interno de qPCR mostraram linearidade com o kit comercial (ELITechGroup Nanogen, Itália), embora os valores de corte tenham diferido em ~ 2 log cópias/mL. Provavelmente, a principal vantagem do qPCR interno é seu custo reduzido em relação ao teste comercial. Por exemplo, os custos relacionados ao processamento de uma única amostra são US$ 35 e US$ 121 para o teste interno e o kit comercial, respectivamente. Se três amostras foram incluídas num ciclo, reduzindo as despesas com controles positivos, os custos por amostra sairiam a US$ 20 (qPCR interno) e US$ 55 (teste comercial).
Algumas limitações do presente estudo devem ser reconhecidas. O número de pacientes com BKVAN foi limitado, embora a frequência de BKVAN aqui relatada encontre ressonância na literatura.2,3 Além disso, medimos apenas as cargas virais de BKV nos meses 3, 6 e 9 após o transplante. É possível que um acompanhamento mais prolongado possa revelar uma maior incidência de BKVAN, ainda que o pico de incidência de BKVAN ocorra dentro do prazo de nossa observação.26,27
Em conclusão, o presente estudo multicêntrico prospectivo validou clinicamente dois ensaios de qPCR para quantificação de BKV - um kit comercial e um teste desenvolvido internamente. Com base nos resultados, os clínicos podem manejar melhor os pacientes infectados com BKV, modificando as terapias imunossupressoras em tempo hábil. A baixa frequência de BKVAN observada em nosso estudo (4%) provavelmente está relacionada a níveis adequados de conscientização sobre a doença, bem como ao monitoramento do DNA de BKV.