versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.11 Rio de Janeiro nov. 2019 Epub 28-Out-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182411.02752018
Há um consenso mundial de que a dependência da nicotina é um grave problema de saúde pública, cuja mortalidade anual é de aproximadamente 5,4 milhões de pessoas, superior quando comparada à letalidade por doenças infectocontagiosas, como a AIDS, tuberculose e malária1. O tabaco é a principal causa de morte evitável no mundo, com estimativa ascendente até 2030 de aproximadamente 8 milhões de óbitos ao ano2. No Brasil, o número de fumantes tem se reduzido desde a década de 1990, mas estima-se que a população de fumantes seja de 27,9 milhões, e que o tabagismo cause 200 mil óbitos anualmente1.
De acordo com a décima revisão do Código Internacional de Doenças (CID10 F-17.2)3, o tabagismo possui potencial para ocasionar dependência da nicotina, e desencadear transtornos mentais e comportamentais, dentre os quais sintomas depressivos, transtorno bipolar, ansiedade, transtorno da personalidade e de défice de atenção. Os fumantes que apresentam dependência da nicotina têm de 2,7 a 8,1 vezes mais probabilidade de desenvolver estes transtornos, respectivamente, quando comparados com fumantes esporádicos, ex-fumantes e indivíduos que nunca fumaram4. Assim, o tabagismo se classifica como uma doença crônica3, associada à diversos sintomas, que pode comprometer substancialmente as condições de saúde4.
O tabagismo é uma causa evitável de vários agravos crônicos à saúde, associados às neoplasias, doenças cardiovasculares, pulmonares, alterações oftalmológicas, entre outras5. Em meio a essas comorbidades, a associação com outras variáveis são apontadas por pesquisadores, como: sexo masculino6, idade adulta7, condições econômicas desfavoráveis8, situação de desemprego, baixo nível de escolaridade6,8-10, baixo escore do índice de massa corporal (IMC), o consumo atual de bebidas alcoólicas11 e residir em zonas rurais8,12.
O contexto das relações familiares, em particular a disfuncionalidade familiar, é um importante fator de risco para o desenvolvimento de dependência de substâncias psicoativas. Alguns estudos realizados com adolescentes têm demostrando que conviver em um ambiente familiar disfuncional está associado com o aumento da probabilidade de se tornar tabagista. Embora as consequências da dependência nicotínica apresentem impactos relevantes no âmbito mundial, investigações referentes à influência das relações familiares no consumo do tabaco ainda são insuficientes13.
No entanto, consideram-se, para este estudo, as associações com outras morbidades, no campo da saúde mental, e/ou comportamentos que agravariam ainda mais a condição de transtornos ocasionados pelo uso recorrente de tabaco. Diante do exposto, tem-se por hipótese que as comorbidades psiquiátricas e o uso de outras substâncias psicoativas associam-se à dependência ao tabaco, condição que potencializa os agravos crônicos à saúde e que impacta nas relações destes indivíduos, sobretudo a familiar.
Este estudo inovou ao testar a variável funcionalidade familiar em meio à condição de vulnerabilidade à qual estão expostos indivíduos com níveis de dependência nicotínica. Para tanto, objetivou-se estimar a força de associação entre características do grupo tabagista com variáveis referentes à saúde mental, à funcionalidade familiar e ao uso de outras substâncias psicoativas.
Trata-se de um estudo caso-controle, com caráter observacional, empregado para investigar características que ocorrem com maior ou menor frequência no grupo caso, quando comparado ao controle14. No modelo, o grupo caso compreendeu os indivíduos com algum grau de dependência do tabaco, e o grupo controle envolveu os indivíduos que não foram expostos ao tabaco. O campo de estudo deu-se em um município de relevante papel econômico e social no Centro-Oeste do país.
A população para o grupo caso foi fumante regular (últimos 30 dias15) e, para controle, indivíduos não fumantes, ambos moradores no município em questão. O cálculo amostral foi realizado no programa Stata Software Package (STATA), versão 14.0, utilizando-se os comandos sampsi .15. 25, power (.80) a(.05)16, considerando 15% de prevalência de tabagismo regular na população brasileira5, aumento hipotético de 25% para os problemas relacionados ao consumo de tabaco (aplicado para caso), poder de teste de 80% e nível de significância de 5%. Ao resultado obtido, somaram-se 20%, prevenindo-se perdas, resultando para n1 (controle) 322 indivíduos e, para n2 (caso), 323 indivíduos, totalizando 645 indivíduos para serem entrevistados.
Toda a amostra foi pareada por sexo e idade, para controle de possível viés de confusão14. Como critério de elegibilidade de casos, foram estipulados ter idade ≥ 17 anos, ser morador na cidade onde a pesquisa foi desenvolvida e ser fumante regular por tempo ≥ 12 meses, resultado menos ou igual ao grau mínimo de dependência ao tabaco mensurado pelo instrumento Fagerström Test For Nicotine Dependence (FTND)17. Os não elegíveis, tanto para o caso, como para o controle, foram os não fumantes que relataram doenças cardiovasculares congênitas sem correção e diagnóstico médico de transtorno mental de natureza psicótica.
A amostra para o grupo controle foi orientada pelos critérios de elegibilidade: ≥17 anos, residir no mesmo município da realização da pesquisa, nunca ter fumado na vida (não ser fumante atual e/ou ex-fumante) e não ter convivência domiciliar com fumantes. Excluíram-se não fumantes que autorreferiram ter problemas cardiovasculares congênitos sem correção, e que apresentaram diagnóstico psiquiátrico de transtorno mental grave e persistente (com sintomas psicóticos).
Recrutaram-se indivíduos para o grupo caso por conveniência, de acordo com os critérios de elegibilidade em cenários conveniados com a universidade para prática de ensino, extensão e pesquisa. Eram eles comunidade (domicílios, espaços acadêmicos e sociais), dispositivos de Atenção Primária à Saúde (Unidades Básicas de Saúde e Estratégia Saúde da Família), de urgência e emergência (unidade de pronto atendimento), e outros de Atenção especializada e média complexidade (hospitais e centros de testagem e aconselhamento). Como controle, aplicou-se o critério de vizinhança14. Os indivíduos não fumantes foram convidados nas localidades em que se abordou um fumante, mantendo-se proporção semelhante entre os dois grupos.
O teste piloto constituiu um ensaio que reproduziu todas as estratégias e métodos que seriam utilizados no estudo, aplicado a dez indivíduos (cinco fumantes e cinco não fumantes) que estavam no município onde o estudo foi realizado, porém não residiam ali. A aplicação do questionário na versão piloto objetivou treinar a equipe de pesquisadores de campo e identificar os aspectos logísticos e operacionais, a fim de ajustar o instrumento de coleta de dados. Estas informações não entraram na análise final dos dados.
Os dados foram coletados nos meses de março a novembro do ano de 2016 por pesquisadores de campo, estudantes de graduação de curso na área da saúde devidamente treinados.
As entrevistas foram face a face, respeitando-se a disponibilidade de cada indivíduo, em local reservado. Nesse momento, receberam orientações acerca do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para os indivíduos com idade ≥ 18 anos ou Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE) para aqueles com idade de 17 anos completos.
O instrumento com dados sociodemográficos e históricos clínicos foi elaborado pelos pesquisadores orientados pelos referenciais na saúde mental4. Para seleção do grupo caso e descrição do padrão de dependência nicotínica, aplicou-se o FTND17,18, com seis questões que rastreavam a dependência nicotínica. Os escores de zero a 2 pontos refereriram-se a muito baixa dependência; de 3 a 4, a baixa dependência; 5, média dependência; de 6 a 7, elevada dependência; e de 8 a 10 pontos, muito elevada dependência.
Para a mensuração da funcionalidade familiar, utilizou-se o instrumento APGAR de família, que, a partir da pessoa índice, permite avaliar cinco aspectos: adaptation (adaptação), partnership (companheirismo), growth (desenvolvimento), affection (afetividade) e resolve (capacidade resolutiva). Cada letra inicial recebe pontuação de zero a 2 pontos. A elevada disfunção familiar (EDF) é caracterizada pela pontuação de zero a 4 pontos; 5 a 6 pontos indicam moderada disfunção familiar (MDF); de 7 a 10 pontos, trata-se de boa funcionalidade familiar (BFF). O instrumento APGAR de família foi desenvolvido por Smilkstein, em 197819. Sua validação no Brasil foi realizada por meio da tradução e da adaptação transcultural, com participação de oito juízes, em 2001, além de ter sido feita uma análise psicométrica, por estudo descritivo, de campo e transversal, com população de idosos20. Para determinar o padrão de uso de risco de álcool, utilizou-se o instrumento Alcohol Use Disorder Identification Test (AUDIT), validado no Brasil em 199921 como forma de rastreio para detecção precoce do uso de álcool, composto por dez questões, em que a pontuação máxima é 40 pontos. Adotaram-se ≥ 8 pontos como ponto de corte22. Para os instrumentos APGAR, FTND e AUDIT, realizou-se teste de confiabilidade alfa de Cronbach.
As variáveis foram de dois níveis: I (indivíduo) e II (contexto). No nível I, o pareamento da amostra deu-se por sexo (feminino vs. masculino) e categoria idade (< 30 vs. 30 a 39 vs. 40 a 49 vs. 50 a 59 vs. ≥ 60). As variáveis independentes foram cor da pele autorreferida (branca vs. não branca), anos de estudo (≤ 8 anos vs. > 8 anos); ter filhos (sim vs. não); estado civil (viver sem companheiro vs. viver com companheiro); trabalho formal (regime de trabalho segundo a legislação nacional) vs. informal (autônomo ou desempregado); possui religião (autorreferida sim vs. não); não possui plano de saúde (sim vs. não); morar com familiares, de acordo com o próprio conceito de família vs. outras pessoas; EDF - escore ≤4 pelo APGAR de família (não vs. sim); depressão - tem ou já teve diagnóstico médico de depressão (não vs. sim); já usou drogas ilícitas - já fez uso de drogas como maconha, cocaína, crack, dietilamida do ácido lisérgico (LSD) ou inalantes de comercialização ilegal (não vs. sim); AUDIT (escore < 8 vs. ≥8) e diagnóstico de doença isquêmica do coração - autorreferida por diagnóstico médico (sim vs. não).
Nas variáveis de nível II, as contextuais foram inseridas no modelo de análise multinível e orientadas pela importância no controle de confusão23, uma vez que situações de doença ou saúde relacionam-se com fatores contextuais. A compreensão do processo saúde-doença deve se fundamentar no intercâmbio entre indivíduo e contexto24. Estas variáveis foram comunidade vs. serviços de Atenção Primária à Saúde vs. hospitais e serviços de especialidade vs. rede de urgência com efeito na análise múltipla (conforme a localidade de abordagem do caso e controle). Foi covariável na análise do nível II Atenção Primária vs. Atenção Secundária (atendendo ao nível de complexidade de atenção à saúde correspondente às quatro categorias da variável contexto).
Para análise estatística das variáveis associadas ao grupo, utilizou-se o software STATA 14.0 e, como medida de associação, o odds ratio (OR), considerando o intervalo de confiança de 95% (IC95%). Pela obtenção da OR bruta, escolheram-se as variáveis com p < 0,10 para o modelo de regressão logística multinível. No nível I as variáveis de indivíduo foram inseridas seguindo o modelo teórico de inserção sempre ajustado pelo nível II (variável e covariável contextuais), representação gráfica na Figura 1.
A qualidade de ajuste entre os modelos foi avaliada por meio do teste de -loglikelihood, e pelos valores da variance do nível II, do coeficiente de erro padrão (CE) desvio do erro padrão (SE).
O estudo foi desenvolvido respeitando-se os princípios éticos que norteiam as pesquisas com seres humanos no Brasil25 e ocorreu após autorização do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
O estudo contou com amostras de 322 participantes no grupo controle e 323 grupo caso. As perdas amostrais foram repostas pelos pesquisadores, resguardando o cálculo amostral e o pareamento por categoria idade e sexo. O grupo controle constituiu-se de indivíduos com média de idade de 40,22 anos (desvio padrão - DP de 14,74) enquanto que, no grupo caso, a média de idade foi de 40,88 anos (DP de 13,21). Quanto ao tempo de tabagismo, a média de exposição do grupo caso foi de 25,65 anos (DP de 13,87). Na Tabela 1, estão expostas as informações das categorias de pareamento da amostra.
Tabela 1 Dados de pareamento da amostra caso e controle. Centro-Oeste, 2016.
Variáveis categóricas | Controle (n = 322) | Caso (n = 323) | ||
---|---|---|---|---|
N | % | N | % | |
Sexo | ||||
Feminino | 175 | 54,9 | 175 | 53,9 |
Masculino | 145* | 45,1 | 148 | 46,1 |
Idade | ||||
< 30 | 67 | 21,0 | 67 | 20,7 |
30-39 | 93 | 29,2 | 94 | 29,1 |
40-49 | 85 | 26,6 | 85 | 26,3 |
50-59 | 40 | 12,5 | 44 | 13,6 |
≥60 | 34* | 10,7 | 33 | 10,6 |
Variável contextual | ||||
Urgência | 88 | 49,16 | 91 | 50,84 |
Comunidade | 105 | 55,56 | 84 | 44,44 |
Atenção Primária | 55 | 45,86 | 65 | 57,17 |
Hospitais e serviços de especialidade | 72* | 46,45 | 83 | 53,55 |
*Número válido para casela.
Nas Tabelas 2 e 3, observa-se a OR bruta e ajustada. Cabe salientar que a OR ajustada foi realizada no modelo com o fator contextual.
Tabela 2 Análise bivariada entre grupo controle e grupo caso com variáveis independentes. Centro-Oeste, 2016.
Variável | Controle (n = 322) n (%) |
Caso (n = 323) n (%) |
OR bruta*
(IC95%) |
Valor de p |
---|---|---|---|---|
Cor de pele | ||||
Branca | 125 (66,49) | 63 (33,51) | 1 | |
Não branca | 195 (42,86) † | 260 (57,14) | 2, 65 (1,86-3,79) | < 0,001 |
Anos de estudo | ||||
> 8 | 246 (62,44) | 148 (37,56) | 1 | |
≤ 8 | 74 (29,72)† | 175 (70,28) | 3, 93 (2,79-5,52) | < 0,001 |
Tem filhos | ||||
Não | 116 (63,74) | 66 (36,26) | 1 | |
Sim | 203 (44,13)† | 257 (55,87) | 2,22 (1,56-3,16) | < 0,001 |
Vive com companheiro | ||||
Não | 169 (54, 34) | 142 (45,66) | 1 | |
Sim | 148 (44,98)† | 181 (55,02) | 1,45 (1,06-1,98) | 0,018 |
Trabalho | ||||
Formal | 282 (51,74) | 263 (48,26) | 1 | |
Informal | 37 (38,14)† | 60 (61,86) | 1,73 (1,11-2,70) | < 0,001 |
Plano de saúde | ||||
Sim | 137 (43,77) | 55 (17, 03) | 1 | |
Não | 176 (56, 23)† | 268 (82,97) | 3,79(2,63-5,46) | < 0,001 |
EDF | ||||
Não | 299 (52,92) | 266 (47,08) | 1 | |
Sim | 20 (25,97)† | 57 (74,03) | 3, 20 (1,87-5,47) | < 0,001 |
Pontuação do AUDIT | ||||
< 8 | 281 (59,51) | 191 (40,47) | 1 | |
≥ 8 | 39 (22,94)† | 131 (77,06)† | 4,94 (3, 30-7,38) | < 0,001 |
Depressão | ||||
Não | 304 (95,00) | 265 (82,04) | 1 | |
Sim | 16 (5,00)† | 58 (17,96) | 4,15 (2,33-7,40) | < 0,001 |
Já usou droga ilícita na vida | ||||
Não | 305 (56,27) | 237 (43,73) | 1 | |
Sim | 15 (14,85)† | 86 (85,15) | 7, 37 (4,15-13,10) | < 0,001 |
Morar com outras pessoas | ||||
Familiares | 281 (53,52) | 244 (46,48) | 1 | |
Outras pessoas | 38 (32,48)† | 79 (67,52) | 2, 39 (1, 56-3, 65) | < 0,001 |
Possui religião | ||||
Sim | 287 (53,25) | 252 (46,75) | 1 | |
Não | 32 (31,10)† | 71 (68,93) | 2,52 (1,61-3, 96) | < 0,001 |
*OR não ajustada;
†Número válido para casela. Teste de confiabilidade Alfa de Cronbach instrumentos APGAR 0,858, FTND 0,861 e AUDIT 0,967. OR: odds ratio; IC95%: intervalo de confiança de 95%; EDF: elevada disfunção familiar; AUDIT: Alcohol Use Disorder Identification Test.
Tabela 3 Modelos para análise múltipla de regressão logística com fator contextual de local de entrevista. Centro-Oeste, 2016
Nível I | Modelo Vazio* | Modelo 1* | Modelo 2* | Modelo 3* | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
CE | SE | OR | IC95% | Valor de p | OR | IC95% | Valor de p | OR | IC95% | Valor de p | |
-1,00 | 0,32 | 0,53 | 0,27-1,44 | 0,277 | 0,70 | 0,29-1,65 | 0,419 | 0,62 | 0,25-1,53 | 0,309 | |
Variável sociodemográfica | |||||||||||
Cor de pele não branca | 2,29 | 1,54-3,39 | < 0,001 | 2,08 | 1,34-3,24 | 0,001 | 2,08 | 1,31-3,32 | 0,002 | ||
Anos de estudo ≤ 8 | 2,70 | 1,85-3,96 | < 0,001 | 3,40 | 2,22-5,21 | < 0,001 | 3,41 | 2,19-5,31 | < 0,001 | ||
Tem filhos | 1,47 | 0,96-2,26 | 0,074 | 1,86 | 1,12-3,08 | 0,015 | 3,31 | 1,87-5,86 | < 0,001 | ||
Viver com companheiro† | 1,14 | 0,78-1,67 | 0,475 | 1,47 | 0,96 -2,24 | 0,074 | 1,45 | 0,93-2,26 | 0,095 | ||
Trabalho informal | 1,79 | 1,08-2,96 | 0,023 | 1,91 | 1,10-3,33 | 0,021 | 1,97 | 1,09-3,55 | 0,024 | ||
Não possui plano de saúde | 3,19 | 2,13-4,76 | < 0,001 | 2,68 | 1,71-4,18 | < 0,001 | 2,92 | 1,82-4,68 | < 0,001 | ||
Diagnósticos/problemas detectados | |||||||||||
EDF | 2.96 | 1,49-5,86 | 0,002 | 2,70 | 1,31-5,56 | 0,007 | |||||
AUDIT ≥8 | 7,68 | 4,66-12,65 | < 0,001 | 4,81 | 2,83- 8,18 | < 0,001 | |||||
Depressão | 3,72 | 1,91-7,25 | < 0,001 | 3,77 | 1,88-7,55 | < 0,001 | |||||
Comportamentais | |||||||||||
Já usou droga ilícita na vida | 7,66 | 3,61-16,25 | < 0,001 | ||||||||
Morar com outras pessoas | 2,42 | 1,36-4,31 | 0,003 | ||||||||
Não possui religião | 2,86 | 1,54-5,29 | 0,001 | ||||||||
Nível II | |||||||||||
Variance‡ | CE 0,221405 | CE 0,235036 | CE 0,216696 | CE 0,208209 | |||||||
SE 7,820006 | SE 0,00002 | SE 0,000051 | SE 0,000022 | ||||||||
-2loglikelihood | -447,38 | -373,32 | -318,12 | -289,02 | |||||||
2loglikelihood positivo | 894,76 | 746,64 | 636,24 | 578,04 |
*Ajuste dos modelos pela variável e covariavel contexto;
†para o uso da variável viver com companheiro controlou-se a variável morar com outras pessoas;
‡variance: variação do nível II do local de entrevista dos indivíduos (número de localidade). CE: coeficiente erro padrão; SE: erro padrão; OR: odds ratio; IC95%: intervalo de confiança de 95%; EDF: elevada disfunção familiar; AUDIT: Alcohol Use Disorder Identification Test.
Na análise bivariada associaram-se positivamente as variáveis: cor de pele não branca (p < 0,001; OR 2,65; IC95% 1,86-3,79); anos de estudo ≤8 (p < 0,001; OR 3,93; IC95% 2,79-5,52); ter filhos (p < 0,001; OR 2,22; IC95% 1,56-3,16); viver com companheiro (p = 0,018; OR 1,45; IC95% 1,06-1,98); trabalho informal (p < 0,001; OR 1,73; IC95% 1,11-2,70); não possui plano de saúde (p < 0,001; OR 3,79; IC95% 2,63-5,46); EDF (p < 0,001; OR 3,20; IC95% 1,87-5,47); AUDIT ≥8 (p < 0,001; OR 4,94; IC95% 3,30-7,38); depressão (p < 0,001; OR 4,15; IC95% 2,33-7,40); já ter usado droga ilícita na vida (p < 0,001; OR 7,37; IC95% 4,15-13,10); morar com outras pessoas (p < 0,001; OR 2,39; IC95% 1,56-3,65); e não possuir religião (p < 0,001; OR 2,52; IC95% 1,61-3,96).
Após a análise múltipla de regressão logística com fator contextual de local de entrevista, permaneceram associadas positivamente as variáveis: cor de pele não branca (p = 0,002; OR 2,08; IC 95% 1,31-3,32); anos de estudo ≤8 (p < 0,001; OR 3,41; IC95% 2,19-5,31); ter filhos (p < 0,001; OR 3,31; IC95% 1,87-5,86); trabalho informal (p = 0,024; OR 1,97; IC95% 1,09-3,55); não possuir plano de saúde (p < 0,001; OR 2,92; IC95% 1,82-4,68); EDF (p = 0,007; OR 2,70; IC95% 1,31-5,55); AUDIT ≥8 (p < 0,001; OR 4,81; IC95% 2,83-8,18); depressão (p < 0,001; OR 3,77; IC95% 1,88-7,55); já ter usado droga ilícita na vida (p < 0,001; OR 7,66; IC95% 3,61-16,25); morar com outras pessoas (p = 0,003; OR 2,42; IC95% 1,36-4,31); e não possuir religião (p < 0,001; OR 2,86; IC95% 1,54-5,29).
Na Tabela 3, notou-se a redução do teste -2 loglikelihood na medida que os modelos foram inseridos, conferindo à análise melhor qualidade de ajuste conforme se inseriram os grupos de variáveis individuais; a melhor qualidade da variação pelo ajuste do nível II está expressa no valor maior que o dobro do coeficiente erro padrão em relação ao desvio erro padrão no modelo final. No estudo múltiplo, peraneceram associadas ao grupo caso cor da pele não branca, anos de estudo ≤ 8 anos, ter filhos, trabalho informal, não possui plano de saúde, referir EDF, AUDIT ≥ 8, referir diagnóstico de depressão, já ter usado droga ilícita na vida e não possuir religião.
O presente estudo trouxe como principal evidência a associação ao grupo tabagista de variáveis já conhecidas (tanto na dimensão sociodemográfica, na de doenças mentais, como relacionadas ao uso de outras substâncias psicoativas e comportamentais) e outra ainda não investigada, relativas à funcionalidade familiar, como o escore do instrumento APGAR de avaliação para EDF, corrobora nas implicações de saúde mental da população tabagística26. Também ressalta-se a aplicação da variável contexto na análise múltipla, na busca de uma evidência mais ampliada sobre o fenômeno estudado e controle de possível viés.
Os limites da investigação relacionam-se ao delineamento da pesquisa de caso-controle, especialmente em relação à memória e à seleção do grupo controle. Na tentativa de minimizá-los, a equipe foi treinada para a abordagem e a obtenção dos dados relatados, e o indivíduo controle foi o mais representativo possível em relação a sexo, faixa etária e critério de vizinhança.
Quanto à cor da pele, os resultados sugerem que os indivíduos que se autodeclararam não brancos estavam em risco para algum nível de dependência nicotínica. Esta associação pode ser explicada devido ao tempo que o organismo demanda para metabolizar a nicotina, uma vez que indivíduos brancos apresentam taxas de metabolização mais elevadas do que os indivíduos afro-americanos. Logo, estes tendem a fumar em menores quantidades27 e demoram mais a fumar o primeiro cigarro do dia28. Ambos os mecanismos impactam em escores de avaliação de dependência da nicotina, quantidade e primeiro cigarro do dia, segundo o FTND. Outro estudo realizado em uma população multirracial mostrou que o nível plasmático da cotinina (metabólito da nicotina) apresentava-se seis vezes mais elevado nos participantes afro-americanos com histórico de exposição ao tabagismo passivo, quando comparados às outras raças29.
Em consonância com estes dados da literatura internacional, estudos recentes realizados no Brasil mostram que a prevalência de fumantes autodeclarados negros é relativamente maior do que os autodeclarados brancos30,31. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017 corroboram este achado ao afirmarem a existência de desigualdade social entre estes grupos raciais, sendo a população negra e parda a que possui maior restrição de acesso à saúde, educação e proteção social32.
Em relação ao baixo nível de escolaridade e o trabalho informal10,33 sugere-se que os indivíduos com baixo nível de escolaridade e os trabalhadores informais estão suscetíveis a fumarem mais e com maior variedade de produtos derivados do tabaco. O uso do tabaco associado ao baixo nível de escolaridade indica que há insuficiência de conhecimento sobre os malefícios que os produtos do tabaco ocasionam no indivíduo fumante7,8,34,tanto que há evidências de que residir em áreas de difícil acesso ao ensino favorece o abuso de tabaco8.
Quanto a variável ter filhos, esta análise apontou que os indivíduos que possuíam filhos tendiam a fumar mais. Contrariamente, na literatura, discute-se outro achado: o fato de que os filhos atuam como estratégia para encorajar a cessação do tabagismo, uma vez que pais e filhos compreendem que o tabagismo também pode afetar a saúde dos filhos futuramente35. Um outro achado também aborda que entre os indivíduos que possuem pelo menos um filho, há uma associação positiva quanto ao uso de bebidas alcoólicas36. No entanto, a variável ter filhos requer mais estudos, pois seu papel na associação com o uso de substâncias psicoativas não está bem esclarecida na literatura.
Quanto ao status trabalho, indivíduos desempregados ou que atuam como profissionais autônomos apresentam maiores chances de consumirem tabaco quando comparados aos indivíduos que possuem trabalho formal37,38. Destes, o grupo dos profissionais autônomos apresentaram maiores chances de uso39. Para algumas condições de trabalho, tal relação pode ser explicada por meio do controle exercido pela instituição empregadora e da imposição de regras internas antitabagismo aos trabalhadores durante o processo laboral, o que limita substancialmente o tempo dispensado para o hábito de fumar durante o período de cumprimento das horas de trabalho38. Os fatores de controle sobre o tabagismo em ambientes laborais, tanto quanto a irregularidade de atividade física e as condições econômicas, devem ser considerados em estudos futuros, para ampliação de conhecimento sobre tais aspectos relacionados com a dependência nicotínica.
Uma condição que complementa a discussão anterior é a variável não possuir plano de saúde, que foi positivamente associada ao uso do tabaco. Esta situação, inerente à condições de aquisição de serviços na área de saúde suplementar, pode se articular com as condições de trabalho com vínculo empregatício legalizado, no entanto, ainda são incipientes em estudos sobre o tabagismo. No Brasil, estudos mostram que as condições sociodemograficas estão diretamente relacionadas com o fato de possuir plano de saúde; indivíduos com baixa situação economica, baixa escolaridade, profissão informal e autodeclarados negros apresentam menor acesso aos serviços de saúde40,41. Ao se aproximar desta discussão, encontrou-se a evidência de que as pessoas atentidas nos serviços de saúde aos quais estão vinculadas podem receber orientações dos profissionais sobre os riscos relacionados ao tabagismo, além de questionarem seus hábitos e fornecerem conselhos para cessação31. Este dado implica que indivíduos que possuem planos de saúde são melhores assistidos, favorecendo a adoção de um estilo de vida saudável. Porém, essa variável requer melhor exploração para apontamentos mais contundentes.
O tabagismo, além de comprometer a saúde do indivíduo, afeta as relações familiares, o que pode originar um distanciamento entre os membros da família e comprometer a boa funcionalidade familiar (BFF). As alterações nas relações familiares ocorrem porque os fumantes passivos tendem a se sentirem estressados e desamparados no ambiente familiar, além de adotarem percepções negativas com relação ao papel desempenhado pelos parentes dentro do sistema familiar42. O contrário também pode ser percebido, quando qualquer tipo de disfunção (leve, moderada ou grave) no sistema familiar torna os indivíduos deste grupo mais propensos ao uso de substâncias psicoativas, principalmente o tabaco26,43,44. Estudos realizados com adolescentes corroboram este achado, ao demonstrarem que a presença de fumantes no ambiente familiar encoraja os adolescentes a fazerem uso de tabaco, seja pela reprodução do comportamento positivo ao tabagismo ou em decorrência da exposição à fumaça do cigarro, resultando em maior sensibilidade à dependência da nicotina43,45.
Ao mesmo tempo, residir com outras pessoas, além dos familiares, aumenta as chances de um indivíduo consumir tabaco e/ou outras drogas. Esta associação pode ser explicada devido ao distanciamento que ocorre em relação aos familiares, com consequente diminuição e/ou cessação do efeito protetor, que anteriormente inibia os comportamentos desviantes da prole, em particular o uso de substancias psicoativas46,47. Este achado evidencia a importância da boa relação familiar como um fator de prevenção do uso de substâncias ilícitas, mas discussões futuras neste sentido se fazem necessárias para esclarecer melhor esta associação.
O uso do tabaco, além de contribuir para diversas enfermidades, também pode estar associado a um maior risco de desenvolver distúrbios mentais, entre eles a depressão. Na literatura, a causalidade entre tabagismo e depressão é atribuída a mecanismos distintos, entre os quais o risco seria diretamente proporcional ao uso do tabaco, ou seja, quanto maior for o uso de produtos tabagísticos, mais elevadas seriam as probabilidades de desenvolver a doença48,49. Assim, sugere-se que, devido à ação da nicotina nos sistemas neuroquímicos, bem como nas funções neuroendócrinas, ocorreria uma interferência na evolução do estado pré-patológico49. Também se tem uma causalidade inversa: indivíduos depressivos possuem 1,5 vez mais chances para iniciar e manter o uso de derivados do tabaco50, e isto pode ser explicado pela ausência de comportamentos para autopreservação do estado de saúde51 e pelo aumento das sensações prazerosas ao fumar49.
Na presente investigação, houve associação negativa no grupo caso com o status ter religião. Há quase um consenso entre os estudos de que ser praticante religioso é protetor neste contexto. O indivíduo que possui um elevado vínculo religioso tende a apresentar menores probabilidades de iniciar e manter o consumo de produtos tabagísticos diariamente52-54, uma vez que as orientações dos preceitos religiosos reforçam positivamente o comportamento dos não fumantes e encorajam os indivíduos que fazem o uso persistente de produtos tabagísticos a diminuírem e/ou cessarem este consumo52,55. Além disto, fornece aos indivíduos mecanismos de apoio emocional contra fatores estressantes, que possuem potencial para desencadear o uso de tabaco53.
Os indivíduos que fumam cigarros regularmente, quando comparados com os indivíduos que não são fumantes regulares, estão mais predispostos a iniciarem precocemente o uso de drogas ilícitas, especialmente a maconha e ainda relatarem oportunidades prévias de consumo56. Esta associação pode estar relacionada a fatores genéticos, ambientais57 e à presença de condutas problemáticas, como hiperatividade, impulsividade e agressividade58.
Quanto à relação entre comorbidades do uso de álcool e outras drogas, este estudo não apresenta inovações, porém a relação de causalidade coexistente é forte. O tabagismo e o consumo diário de bebidas alcoólicas estão integrados. Indivíduos com comportamentos tabagísticos estão mais propensos a ingerirem álcool, do mesmo modo que os indivíduos que ingerem álcool também estão propensos a usar produtos tabagísticos; esta associação indefere do tempo de exposição59. Dentre os usuários de tabaco, aqueles que fazem consumo diário mais elevado estão associados a maiores escores do AUDIT60. Estudos sugerem que o uso concomitante da nicotina com o etanol atua reforçando as sensações prazerosas do álcool e reduzindo seus efeitos indesejados61. Também existem hipóteses em que a associação entre tabaco e álcool atuaria ativando o sistema mesolímbico dopaminérgico, que, por sua vez, agiria elevando as sensações de gratificação como reforço positivo à dependência de substâncias psicoativas62.
Os resultados deste estudo indicaram associação de variáveis no âmbito da saúde mental que reforçam a vulnerabilidade dos fumantes investigados, sobretudo para os de baixa escolaridade, sem vínculo trabalhista formal e em relação ao uso de risco de álcool e drogas ilícitas. Quanto ao achado principal, a elevada disfunção familiar apresentou-se fortemente associada a algum grau de dependência nicotínica, ressalta-se que outras dimensões relacionadas à constituição famíliar podem corroborar esta situação, como ter filhos e residir com pessoa não familiares. Estas variáveis, quando presentes em um mesmo contexto, potencializam-se, aumentado a exposição às comorbidade relacionadas ao uso do tabaco e seu impacto social, econômico e saúde. Este estudo revela a necessidade de adoção de políticas públicas voltadas à atenção à saúde mais efetivas e abrangentes, em relação à dinâmica familiar.