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Diagnóstico de deficiência de alfa-1 antitripsina: traz benefícios para a prevenção ou evolução do paciente com DPOC?

Diagnóstico de deficiência de alfa-1 antitripsina: traz benefícios para a prevenção ou evolução do paciente com DPOC?

Autores:

Irma Godoy

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Brasileiro de Pneumologia

versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756

J. bras. pneumol. vol.42 no.5 São Paulo set./out. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37562016000400002

A alfa-1 antitripsina (AAT) é uma proteína cuja principal função é a inibição da elastase neutrofílica. O gene que codifica a AAT se transmite por herança mendeliana simples, de forma autossômica codominante por meio de dois alelos, um de cada progenitor. O alelo normal se denomina Pi*M, e os alelos deficientes mais comuns são o Pi*S e o Pi*Z, que codificam proteínas anormais que se polimerizam no fígado e, assim, 80-90% das AATZ e 40-50% das AATS são retidas dentro dos hepatócitos, agrupadas em polímeros. A perda da atividade antiinflamatória e antiproteolítica associada aos efeitos pró-inflamatórios dos polímeros contribuem para a degradação proteica e a exacerbação da inflamação, resultando em risco aumentado de desenvolvimento de DPOC, com predomínio de enfisema, principalmente em fumantes.

A deficiência de AAT (DAAT) é uma doença rara e, como a maioria delas, é subdiagnosticada. O diagnóstico é geralmente tardio (idade média de 45 anos), e as estimativas sugerem que 85% dos pacientes em potencial não têm diagnóstico.1 Esses achados indicam a baixa adesão às recomendações da Organização Mundial da Saúde e às diretrizes da Sociedade Americana de Tórax e da Sociedade Europeia de Pneumologia, que indicam que os pacientes com DPOC ou obstrução persistente das vias aéreas sejam testados para a deficiência.2,3 O conhecimento insuficiente sobre a doença, sobre os testes necessários para o diagnóstico, a disponibilidade dos mesmos e sobre o algoritmo necessário para confirmar o diagnóstico são potenciais razões para o subdiagnóstico.

A prevalência da DAAT é variável, dependendo da população estudada. Determinar a prevalência de predisposição genética em populações doentes irá inevitavelmente superestimar a prevalência na população geral e, ao contrário, restringir o rastreamento a população geral saudável pode subestimar a prevalência geral. Na Europa, as maiores prevalências da mutação Pi*Z ocorrem nos países da região oriental norte, com uma frequência do gene entre 0,029 e 0,049.4-6 Nos EUA, a prevalência é similar (0,019-0,030).7,8 Na Ásia, a prevalência é extremamente baixa (0,006).1

Os dados do estudo publicado no presente número do JBP por Russo et al.9 avaliaram de forma inédita a prevalência de DAAT em 926 pacientes com DPOC de cinco estados brasileiros. A possibilidade da presença dessa deficiência foi estabelecida utilizando-se o ponto de corte de AAT em amostras de sangue seco em cartão < 2,64 mg/dl. Os pacientes com valores abaixo do ponto de corte foram submetidos à dosagem sérica e, para aqueles com concentração <113 mg/dl, foi realizado o sequenciamento genético. Nos casos ainda duvidosos, foi realizado o sequenciamento do gene SERPINA . Dos pacientes estudados, 9,2% apresentaram valores que indicavam a necessidade de investigação adicional, 2,6% apresentavam valores de AAT < 113 mg/dl, e a prevalência de Pi*Z foi de 0,8%, similar à descrita em outros países, segundo os autores.9

O estudo reforça a necessidade de investigação da DAAT em pacientes com DPOC, de acordo com as recomendações e diretrizes acima mencionadas.2,3 A alternativa a essa estratégia é priorizar a investigação para grupos de risco específicos, que incluem pacientes com enfisema de início precoce e/ou predominantemente em lobos inferiores ou com clusters familiares de DPOC e parentes de primeiro grau de indivíduos diagnosticados com DAAT moderada ou grave.10 O teste deve ser realizado também em indivíduos com doença hepática inexplicada, incluindo recém-nascidos, crianças e adultos, assim como adultos com paniculite necrotizante. O teste é sugerido em adultos com bronquiectasia sem etiologia definida, adolescentes com padrão obstrutivo persistente e com vasculite cANCA positiva.11

Levando em consideração que o principal fator de risco em indivíduos com DAAT é o tabagismo, que promove o aparecimento precoce de DPOC comparativamente aos indivíduos não fumantes,12 a identificação precoce dessa doença permite a tomada de medidas preventivas, sendo que as mais importantes delas são evitar o tabagismo (ativo e passivo) e a exposição a poluentes ambientais, fatores determinantes do prognóstico dos portadores dessa deficiência. A identificação precoce permite ainda monitorizar a função pulmonar e avaliar a decisão terapêutica a administrar a terapia suplementar enquanto o paciente ainda tem função pulmonar relativamente preservada. O tratamento de pacientes com DPOC e DAAT inclui a terapia usual para a doença (cessação do tabagismo, vacinação, uso de broncodilatadores, reabilitação e oxigenoterapia domiciliar prolongada, quando indicada).10 O tratamento específico de reposição com administração de concentrado purificado de AAT do plasma humano está disponível no Brasil.11 A terapia é extremamente cara (aproximadamente US$ 100.000,00/ano), as indicações e eficácia não estão bem definidas, e a terapia não é recomendada pelo National Institute for Health and Care Excellence ,13 embora possa ser considerada em pacientes jovens com DPOC, de acordo com a Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease (evidência C).14,15

Em resumo, apesar das recomendações da Organização Mundial da Saúde e da Sociedade Americana de Tórax/Sociedade Europeia de Pneumologia, muitos médicos e pacientes com DPOC desconhecem completamente o risco de aumento rápido da obstrução das vias aéreas devido à DAAT. Com a disponibilidade de boas intervenções para auxiliar a cessação tabágica, testar os pacientes com DPOC, principalmente aqueles de maior risco, para identificar os portadores de DAAT é importante e justificável. No tratamento, os esforços devem ser direcionados para o diagnóstico precoce da obstrução ao fluxo aéreo e evitar a exposição aos fatores de risco, principalmente o tabagismo, a mais importante intervenção para diminuir a progressão da doença.

REFERÊNCIAS

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9. Russo R, Nascimento OA, Manzano B, Ivanaga IT, Fritscher L, Lundgren F, et al. Prevalence of deficiency of alpha-1 antitrypsin and allele frequency in patients with COPD in Brazil. J Bras Pneumol. 2016;42(5):311-16.
10. Ferrarotti I, Poplawska-Wisniewska B, Trevisan MT, Koepke J, Dresel M, Koczulla R, et al. How Can We Improve the Detection of Alpha1-Antitrypsin Deficiency? PLoS One. 2015;10(8):e0135316. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0135316
11. Stoller JK, Aboussouan LS. A review of a1-antitrypsin deficiency. Am J Respir Crit Care Med. 2012;185(3):246-59. http://dx.doi.org/10.1164/rccm.201108-1428CI
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14. Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease (GOLD) [homepage on the Internet] Bethesda: GOLD [cited 2016 Jan 11]. Available from: /
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