versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.1 São Paulo jan./mar. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RC2738
As técnicas de reprodução assistida evoluem a cada dia, graças à melhoria nos equipamentos laboratoriais e dos meios para cultivo de gametas e embriões. A introdução de novas drogas utilizadas na indução da ovulação, e o aperfeiçoamento de técnicas de criopreservação de gametas e embriões são parte desse desenvolvimento.
Com esses avanços, casais portadores ou com antecedente de doenças genéticas podem ser beneficiados com a fertilização in vitro (FIV) associada ao diagnóstico genético pré-implantacional (PGD, preimplantation genetic diagnosis), permitindo a seleção de embriões saudáveis previamente à transferência intrauterina.(1)
O PGD foi desenvolvido com o intuito de fornecer alternativas para o diagnóstico pré-natal em casais com risco de transmissão de doenças genéticas à prole. Esse procedimento pode ser útil nos casos de doenças ligadas ao sexo, anomalias cromossômicas e defeitos envolvendo um único gene.(1)
Na realização do PGD, os casais devem ser submetidos à FIV, mesmo na ausência da indicação dessa técnica (Figura 1). Para minimizar os riscos de contaminação por células parentais, durante a FIV, recomenda-se o uso da técnica de injeção intracitoplasmática de espermatozoides (ICSI, intra-citoplasmic sperm injection).(2) Havendo fertilização, os embriões permanecem em cultivo, até que uma ou mais células possam ser retiradas e submetidas ao diagnóstico genético.(1)
Para o PGD, utilizam-se técnicas baseadas na reação em cadeia da polimerase (PCR) e na citogenética molecular. Por muito tempo utilizada, a técnica de hibridização in situ fluorescente (FISH) vem sendo substituída pela hibridização comparativa do genoma em arrays (aCGH, Array-Comparative Genomic Hybridization),(3,4) que analisa amplificações e deleções específicas do genoma, permitindo detectar ganhos e perdas de material genético em regiões específicas do genoma com alta resolução (dez a cem vezes maior que as técnicas tradicionais),(5) dependendo da plataforma de análise utilizada. Além disso, aCGH permite um estudo mais acurado das anomalias cromossômicas e deleções ou rearranjos genéticos do que o FISH.
A biópsia de embrião consiste na remoção de uma ou mais células do embrião pré-implantação para subsequente estudo genético. O primeiro caso de PGD em humanos foi relatado por Handyside et al.(6)
Após técnica de ICSI, os embriões são cultivados até o 3º dia de clivagem, podendo o cultivo se prolongar até a fase de blastocisto (5º/6º dia de cultivo) para, então, serem submetidos à biópsia, sem que haja prejuízo à implantação ou ao desenvolvimento gestacional.(6) A biópsia é mais frequentemente realizada no 3º dia de desenvolvimento embrionário (estágio de seis a oito células), sendo que um ou dois blastômeros é retirado de cada embrião(7) (Figura 2). Uma das vantagens ao postergar a biopsia de embriões até o estágio de blastocisto é a possibilidade de obtenção de maior número de células (trofoderma) para a realização da análise genética, aumentado o número de cópias de DNA e a acurácia no diagnostico.(8)
A fibrose cística (FC) é uma doença autossômica recessiva causada por mutações no gene regulador de condutância transmembrana na fibrose cística (CFTR, cystic fibrosis transmembrane conductance regulator) e afeta 1 a cada 2.500 recém-nascidos.(9) Esse gene codifica uma proteína expressa na membrana apical das células epiteliais exócrinas.(10) Mutações no gene CFTR produzem um fenótipo variável, incluindo doença pulmonar, insuficiência pancreática, íleo mecônio(11) e também estão envolvidas na agenesia bilateral dos ductos deferentes, causando azoospermia obstrutiva e infertilidade masculina(12) (Figura 3).
Relatamos aqui o caso de paciente do gênero feminino, 33 anos, sem filhos, inicialmente avaliada em 25 de março de 2004, com dificuldade para engravidar havia 2 anos. Referia menarca aos 11 anos, ciclo menstrual regular e antecedente materno de neoplasia maligna de mama. Apresentava, à ultrassonografia transvaginal, cisto simples paratubário à esquerda e imagem sugestiva de cisto dermoide à direita (16,0 x 12,0mm de diâmetro), estáveis havia 12 meses. Os exames laboratoriais e as pesquisas para fungo e bactérias, na secreção vaginal, foram normais. A paciente era sabidamente portadora da mutação I148 T para FC.
A paciente era casada há 12 anos. Seu parceiro de 33 anos apresentava acentuada oligospermia e diagnóstico de varicocele. Após correção cirúrgica, evoluiu com melhora dos parâmetros seminais, cuja concentração aumentou de 0,75 milhões/mL para 5,48 milhões/mL. O paciente era portador da mutação gênica Delta F508 para FC.
A paciente foi submetida à FIV/ICSI em setembro de 2004, com obtenção de sete embriões, dos quais três foram transferidos para o útero da paciente e quatro congelados. O teste de gravidez foi positivo em 22 de outubro de 2004, e a ultrassonografia transvaginal evidenciou um saco gestacional compatível com gestação de 5 semanas. Em 10 de dezembro, com 11ª semanas de gestação, foi submetida à biópsia de vilo corial confirmando sexo masculino. Para avaliação da mutação Delta F508, foi realizada PCR e eletroforese em gel de poliacrilamida a 12%. Para pesquisa da mutação I148 T, foi realizada PCR com primers envolvendo o éxon 4. Em seguida, procedeu-se à digestão enzimática com enzima Bsrl. Dessa forma, ficou comprovado tratar-se de embrião portador de FC.
A paciente evoluiu para abortamento e foi submetida à curetagem uterina em maio de 2005. Logo após, perdeu seguimento por 5 meses.
Observou-se que o casal apresentava os polimorfismos TUB18 e KM19, os quais possibilitariam a identificação de alelos mutantes em gestações futuras, aumentando, assim, o poder de detecção do embrião afetado.
Em abril de 2006, a paciente foi submetida à histeroscopia para ressecção de septo uterino secundário à curetagem prévia. Reiniciou o uso de análogo do GnRH em maio de 2006, além de antibiótico e polivitamínico. Entretanto, teve má resposta ao bloqueio do eixo hipotálamo-hipofisário.
Na etapa seguinte, optou-se por ciclo natural, com obtenção de folículo de 19,0mm de diâmetro em ovário direito e endométrio trilaminar, com 10,0mm de espessura à ultrassonografia transvaginal, realizada em 31 de agosto de 2006.
Os quatro embriões previamente congelados foram biopsiados, utilizando-se a técnica de laser para perfuração da zona pelúcida, e, então, os blastômeros foram submetidos à avaliação genética. Não houve amplificação de primers no primeiro embrião, não sendo possível a pesquisa das mutações. O segundo blastômero era portador de ambas as mutações e, desse modo, portador de FC. O terceiro apresentou apenas a mutação I148 T e o quarto blastômero não apresentou nenhuma das mutações estudadas. O terceiro e o quarto embriões foram, então, transferidos no dia 5 de setembro de 2006. Ecografia realizada em 6 de novembro de 2006 evidenciou gestação compatível com 11 semanas e 5 dias pela biometria e feto com translucência nucal dentro da normalidade. Em 10 de maio de 2007, a paciente foi submetida à cesariana, dando à luz um recém-nascido do sexo masculino, com 3.320g e Apgar 8/10, sem intercorrências. Amamentou durante 2 meses e retornou à clínica 11 meses após o parto. À ocasião, a criança apresentava poliglobulia e eosinofilia aos exames laboratoriais, sem quaisquer outras alterações ou queixas.
Nas doenças autossômicas recessivas, cada um dos pais da criança afetada é portador de uma única cópia do alelo mutado. Em cada concepção, a possibilidade da criança nascer com a doença é 25%. Os portadores são assintomáticos e os casais somente têm consciência do problema quando já tiverem filhos afetados, algum parente acometido pela doença ou se houve investigação prévia do casal.(13) Por essa razão, o PGD, associado à FIV/ICSI, parece ser a única maneira de evitar a recorrência.(14)
Taylor et al. concluíram que o laser não influenciou o procedimento de biópsia e nem afetou o desenvolvimento embrionário.(15) Keymolen et al., em estudo realizado ao longo de 11 anos no Centro de Genética Médica, na Bélgica, relataram PGD em embriões de 47 casais, sendo a FC a indicação mais frequente desses procedimentos (55% dos casos). No total, 461 embriões foram submetidos à biópsia e, ao final do estudo, dentre os 25 recém-nascidos, não houve nenhum diagnóstico de FC.(16)
Neste relato, descrevemos o caso de PGD com nascimento de bebê saudável cujo casal apresentava risco de transmissão hereditária de FC. A esposa era portadora da mutação I148 T para FC e seu marido era portador da mutação gênica Delta F508 para a mesma doença. O casal foi submetido a procedimento de FVI/ICSI, vitrificação e desvitrificação de embriões, PGD e transferência embrionária. Houve confirmação de gravidez, que ocorreu sem intercorrências, com nascimento de um menino por parto cesárea.
Em conclusão, o uso do PGD foi eficiente para a detecção de FC nos embriões avaliados. Essa experiência positiva serve de incentivo para o uso mais frequente dessa técnica e, também, estimula o desenvolvimento de protocolos de PGD para muitas outras doenças genéticas.