versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.41 no.3 São Paulo jul./set. 2019 Epub 21-Set-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0095
O metotrexato é um medicamento antirreumático modificador da doença utilizado nos esquemas terapêuticos de diferentes patologias. Seu uso prolongado pode causar efeitos adversos em até 61% dos pacientes, levando à interrupção da administração do medicamento em 20% dos casos.1 Uma das complicações mais temidas, em função de sua elevada morbimortalidade, é a mielossupressão.2,3 Disfunção renal, idade avançada, diabetes mellitus, deficiência de ácido fólico e hipoalbuminemia são os principais fatores de risco para o desenvolvimento dessa complicação.4
Apesar de ser utilizado há mais de 20 anos, não há indicações claras sobre a segurança desse fármaco em pacientes com doença renal terminal (DRT) ou em terapia renal substitutiva (hemodiálise ou diálise peritoneal). As diretrizes publicadas pelo American College of Rheumatology5 e as informações do fabricante6 não são específicas no tocante à segurança da administração do metotrexato na presença de DRT estabelecida e/ou diálise, e seu uso em baixas doses nesses pacientes ainda é controverso. Essa lacuna pode resultar na falsa crença de que sua administração é segura em tais circunstâncias. Além disso, alguns autores interpretaram a disfunção da medula óssea causada pelo metotrexato como um efeito idiossincrático.6 No entanto, há relatos de pacientes com DRT que, após receberem tratamento com metotrexato, mesmo em doses baixas, apresentaram graves complicações. Atualmente não há clareza sobre qual é a melhor terapia dialítica para eliminar essa substância tóxica.
Relatamos a seguir o caso de um paciente diagnosticado com DRT em diálise peritoneal tratado com metotrexato em função de diagnóstico de poliangeíte granulomatosa (Wegener). Poucos dias após o início da medicação, o paciente desenvolveu pancitopenia grave, tratada com sucesso com terapia de suporte e diálise peritoneal intensiva.
O paciente era um homem de 68 anos de idade diagnosticado com poliangeíte granulomatosa em evolução havia seis anos com acometimento paranasal, ocular, pulmonar e renal. Por conta da DRT, o paciente estava em diálise peritoneal automatizada havia três anos. Em função da recidiva da vasculite, foi receitado 7,5 mg de metotrexato semanalmente. Após a segunda dose, o paciente apresentou odinofagia, astenia, adinamia, melena, sangramento gengival, úlceras orais e lesões dolorosas na pele dos membros inferiores. À internação ele encontrava-se sonolento, febril, com pressão arterial de 99/57 mmHg, frequência cardíaca de 97 batimentos por minuto e frequência respiratória de 17 inspirações por minuto. Os achados clínicos incluíam lesões necróticas no lábio inferior, úlceras nas bochechas, aftas na língua e máculas com bordas eritematosas na parte interna das coxas. Os exames laboratoriais revelaram níveis elevados de reagentes inflamatórios, pancitopenia e altos níveis de metotrexato (Tabela 1). Com o exposto, foi estabelecido diagnóstico de toxicidade por metotrexato com comprometimento hematológico, além de lesões de pele e mucosas. Como consequência, o paciente foi diagnosticado com neutropenia febril com choque séptico. O tratamento foi iniciado na unidade de terapia intensiva com piperacilina, tazobactam, vancomicina, fluconazol, esteroides em altas doses, suporte com norepinefrina, folinato de cálcio e fator estimulador de colônias de granulócitos. O paciente também foi tratado com diálise peritoneal com múltiplas trocas 20 horas por dia (2 períodos de 10 horas, 11 litros por período distribuídos em 6 litros x 2,5% e 5 litros x 1,5%, 10 ciclos no total) para aumentar a depuração do metotrexato e evitar a instalação de catéter de hemodiálise em um paciente com quadro de trombocitopenia grave. Todas as culturas foram negativas, o que levou à suspensão da antibioticoterapia após cinco dias. O paciente evoluiu para melhora e em uma semana sua contagem de células hematológicas se recuperou, a febre não retornou e ele se recuperou das lesões de pele e mucosa. Além disso, uma nova medição de metotrexato não revelou níveis detectáveis.
Tabela 1 Exames laboratoriais
Estudo | Valores dos exames à internação | Valores dos exames na alta |
---|---|---|
BUN | 78 mg/dL | |
Proteína C-reativa | 22,78 mg/dL | |
Velocidade de hemossedimentação | 120 mm/hour | |
Hemograma | Hemoglobina: 8,6 g/dL, Leucócitos 1300 x mm3, Neutrófilos: 14%, Linfócitos: 63%, eosinófilos: 11%, Plaquetas: 26.000 x mm3 | Hemoglobina 7,7 g/dL, Leucócitos 13.300 x mm3, Neutrófilos 70%, Linfócitos 19%, Plaquetas 222.000 x mm3. |
Ionograma | Na: 138 mmol/L, Cl 96 mmol/L, K 3,6 mmol/L, Ca 7 mg/dL. |
|
Hemocultura | Negativo | |
Cultura de escarro e Gram | Negativo | |
Urocultura | Negativo | |
Níveis de metotrexato | 0,5 micromoles/L | Indetectável |
Radiografia de tórax | Infiltrados pulmonares mistos basais bilaterais. | |
Tomografia computadorizada do tórax | Opacidades alveolares nos lobos inferiores e segmento posterior do lobo direito superior. |
O metotrexato (peso molecular 454,4 kDa) é um antimetabólito do ácido fólico que inibe a diidrofolato redutase, uma enzima essencial para a produção de tetrahidrofolatos necessários na síntese de purinas e pirimidinas e que, portanto, inibe o ciclo celular.7
A farmacocinética do metotrexato é altamente variável e imprevisível.8 O metotrexato é rapidamente absorvido após administração oral, atingindo níveis séricos em uma hora, com nível de ligação à albumina plasmática de 50%. O fármaco é distribuído pelos compartimentos extravasculares, incluindo rins, fígado e líquido sinovial. Dentro das células, é convertido em poliglutamatos de metotrexato, que são mais potentes e aumentam sua meia-vida intracelular. É parcialmente oxidado no fígado para 7-hidroxi-metotrexato, um metabólito menos ativo, e é excretado principalmente pelos rins e em menor grau pelo fígado. Mais de 90% do volume absorvido é excretado pela urina em 48 horas por filtração glomerular e secreção tubular ativa. A meia-vida de eliminação varia entre 5 e 8 horas, mas aumenta significativamente quando há insuficiência renal aguda ou crônica, especialmente em estágios avançados, em que há redução na depuração do metotrexato e aumento de sua toxicidade.9 Atualmente não há parâmetros farmacocinéticos que se correlacionem com eficácia, e sua concentração plasmática não serve como preditor de resposta clínica ou efeitos adversos.10
O metotrexato é amplamente utilizado em casos de câncer, doenças reumáticas, doença intestinal inflamatória e em condições obstétricas. Em pacientes com artrite reumatoide e função renal normal, a dose recomendada varia entre 5 e 7,5 mg/semana, com dose máxima de 15 mg/semana.11 O medicamento afeta principalmente as células de divisão rápida, motivo pelo qual tem ação mais profunda nas células da medula óssea e do trato gastrointestinal. A destruição das células da medula óssea predispõe o paciente a trombocitopenia, agranulocitose e linfopenia, que podem levar a infecções potencialmente fatais, anemia grave e hemorragia do trato gastrintestinal. Outros efeitos adversos incluem náusea, vômitos, estomatite e toxicidade pulmonar e hepática.
Foi relatada toxicidade associada ao uso de metotrexato mesmo em doses terapêuticas e em pacientes que não requerem terapia renal substitutiva. Gutierrez-Ureña e colaboradores identificaram 70 pacientes sem diálise que apresentavam pancitopenia relacionada ao metotrexato, com taxa de mortalidade de 17,1%.4 Lim e colaboradores identificaram 25 casos em um período de cinco anos, com indivíduos com idade média de 76 anos com prescrições de 12,5 mg por semana, duração de tratamento de 36 meses, 40% dos quais com contagem de leucócitos inferior a 2000/mm³, 30% (8 de 25) com insuficiência renal e taxa de mortalidade geral de 28%.3 Indivíduos com insuficiência renal avançada e pacientes em diálise apresentam risco de toxicidade mais elevado, mesmo quando o medicamento é oferecido em doses baixas, e manifestam níveis plasmáticos mais elevados e meia-vida mais longa (detectável até três semanas após a administração de baixas doses de 2,5 mg).
Vários relatos na literatura publicados entre 1990 e 201711-25 descrevem casos de pancitopenia em pacientes em diálise após tratamento com metotrexato em baixas doses, mesmo com aplicação intralesional. Liu WC e colaboradores relataram um caso e reuniram outros 15 retirados de 12 publicações.15
Encontramos outros três casos publicados22-24 que, somados ao presente relato, elevam para 20 o total de casos relatados com diagnóstico de pancitopenia associada a metotrexato em pacientes em diálise (Tabela 2).
Tabela 2 Dados clínicos dos pacientes em diálise com mielossupressão induzida por metotrexato
Referência | Sexo | Idade | Tipo de diálise | Indicação | Dose (mg/semana) |
Duração (semanas) |
Dose cumulativa (mg) |
Nível de etotrexato (umol/L) |
Nadir de leucócitos | Desfecho |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Diskin12 | M | 60 | DP | AR | 10 | 2 | 20 | 0,53 | 300 | Óbito |
Chess13 | M | 64 | DP | Psoríase | - | - | 35 | - | 300 | Óbito |
Sun14 | F | 33 | DP | Lúpus Artrite | 5,0 | 2 | 25 | - | 600 | Recuperado |
Liu WC15 | F | 61 | DP | Eczema | 7,5 | 3 | 22,5 | 0,08 | 30 | Recuperado |
Elman16 | F | 52 | HD | AR | 2,5 | Single dose | 2,5 | 0,13 | 500 | Óbito |
Elman16 | F | 47 | HD | Esclerose sistêmica | 2,5 | Single dose | 2,5 | - | 1500 | Recuperado |
Nakamura17 | M | 57 | HD | AR | 5,0 | Single dose | 5,0 | 0,03 | 100 | Recuperado |
Chatham18 | M | 49 | HD | Miosite | - | 2 | - | - | 90 | Recuperado |
Chatham18 | M | 52 | HD | Miosite | 5,0 | Single dose | 5,0 | - | 2200 | Recuperado |
Chatham19 | F | 61 | HD | Psoríase | 2,5 | 3 | 7,5 | - | 50 | Óbito |
Boulanger11 | F | 60 | HD | AR | 5,0 | 2 | 10,0 | - | 1300 | Recuperado |
Basile19,20 | F | 74 | HD | AR | 5,0 | 2 | 10,0 | - | 1700 | Recuperado |
Boey9 | M | 66 | HD | Psoríase | 5,0 | 2 | 10,0 | 0,03 | 70 | Recuperado |
Yang20 | F | 55 | HD | AR | 7,5 | 12 | 90,0 | 0,11 | 400 | Óbito |
Seneschal21 | M | 76 | HD | PB | 5,0 | 1,5 | 7,5 | 0,47 | 550 | Óbito |
Cheung22 | M | 56 | HD | Psoríase | 2,5 | Single dose | 2,5 | 0,06 | 60 | Óbito |
Liu H.23 | M | 48 | HD | PB | 10 | 2 | 20 | 0,14 | 1800 | Recuperado |
Mima24 | M | 46 | HD | AR | - | - | - | - | 690 | Recuperado |
Flynn25 | M | 68 | DP | CA espinocelular | 2,5 intralesional | Single dose | 25 | 0,03 | 600 | Recuperado |
Presente relato | M | 68 | DP | vasculite | 7,5 | 2 | 15 | 0,005 | 600 | Recuperado |
M: Masculino, F: Feminino, DP: Diálise Peritoneal, HD: Hemodiálise, AR: Artrite Reumatoide, PB: Penfigoide Bolhoso, CA: Câncer; tabela modificada do artigo publicado por Liu WC, Chen HC, Chen JS. Clinical dilemma over low-dose methotrexate therapy in dialysis patients: a case report and review of literature. Iran J Kidney Dis. 2014; 8 (1): 81-415.
Os 20 pacientes dos relatos de caso tinham idade média de 57,6 anos e receberam dose cumulativa de 17,5 mg. A dose média foi de 5,2 mg/semana, com duração média de tratamento de duas semanas. Dezenove dos 20 pacientes tinham nadir de leucócitos inferior a 2000/mm³, caracterizando leucopenia grave. A taxa de mortalidade foi de 35% (7 em 20). A comparação entre pacientes dialíticos e não dialíticos que receberam metotrexato revela que os pacientes em diálise eram relativamente mais jovens, recebiam tratamento de curta duração, apresentavam baixa dose cumulativa e tinham leucopenia grave. A mortalidade também foi maior entre os pacientes em diálise. Em geral, os pacientes que foram a óbito tinham nadir de leucócitos mais baixo e níveis mais elevados de metotrexato do que os que se recuperaram. De qualquer forma, o desfecho final depende de vários fatores, como comorbidades, dose cumulativa, depuração de metotrexato, detecção precoce e atendimento clínico.
No presente relato de caso, o paciente estava em diálise peritoneal e recebia metotrexato em baixas doses de acordo com a indicação para patologia reumática. A complicação por pancitopenia grave e mucosite indica que o paciente provavelmente estava mais suscetível a apresentar toxicidade para o fármaco em questão.
A eficácia da remoção do metotrexato por diálise tem sido considerada na avaliação da toxicidade do fármaco. Há relatos de remoção bem-sucedida de metotrexato por hemodiálise e hemoperfusão, graças a seu nível de ligação com proteínas de 50%. Contudo, há um rebote pós-diálise na concentração do metotrexato de 90-100% para os níveis anteriores ao procedimento. Assim, os pacientes podem necessitar de terapia renal substitutiva diária ou contínua para evitar o rebote da toxicidade.25 No entanto, pouco se sabe sobre a remoção por diálise peritoneal.
Ahmad e colaboradores26 relataram um caso de insuficiência renal aguda causada por metotrexato, com diálise peritoneal aguda de emergência realizada por sete dias, utilizando 34 a 40 L/dia de dialisato sem alteração na concentração sérica do fármaco. Contudo, o número e a frequência de trocas e os volumes de permanência não foram relatados. Diskin e colaboradores12 relataram que a depuração do metotrexato na diálise peritoneal foi menos eficaz que na hemodiálise. Os autores realizaram uma troca de diálise peritoneal (volume de 3 L por 6 horas) seguida de hemodiálise de alto fluxo por sete horas. Após a troca de diálise peritoneal de 6 horas, a concentração de metotrexato diminuiu apenas de 0,53 para 0,47 micromoles/litro. Os autores também demonstraram que a remoção do metotrexato por meio da diálise peritoneal ocorreu principalmente na primeira hora da troca. Murashima e colaboradores27 relataram o caso de um paciente em diálise peritoneal tratado com uma elevada dose de metotrexato por conta de linfoma no sistema nervoso central. Para os ciclos iniciais de metotrexato, o paciente recebeu hemodiálise diária temporária de alto fluxo, começando 24 horas após a infusão de metotrexato para evitar toxicidade. Mais tarde, contudo, devido a problemas com o acesso vascular, o paciente foi convertido para diálise peritoneal contínua de múltiplas trocas durante os dois últimos ciclos de quimioterapia (a diálise peritoneal intensiva consistia em 20 ciclos em 24 horas, com tempos de permanência de 30 minutos, 1,8 litros de fluido admitido). A depuração na hemodiálise de alto fluxo foi de 0,77 mL/kg/min. Na diálise peritoneal, o valor chegou a 0,65 mL/kg/min. Apesar da menor depuração observada na diálise peritoneal, o paciente não apresentou sinais clínicos de toxicidade por metotrexato.
No nosso caso, a diálise peritoneal com múltiplas trocas foi escolhida para evitar a instalação de um catéter de hemodiálise em função da trombocitopenia. A prescrição foi ajustada em função do regime de diálise peritoneal automatizada a que o paciente fora submetido anteriormente. O ciclo noturno da diálise peritoneal automatizada foi repetido durante o dia, aumentando assim o volume de diálise peritoneal de 11 litros para 22 litros. Uma nova medição do metotrexato não mostrou níveis detectáveis. O paciente recuperou a contagem de leucócitos e sobreviveu. Assim, propomos que a diálise peritoneal com múltiplas trocas seja considerada como opção para o tratamento de toxicidade associada ao metotrexato em pacientes em diálise peritoneal, sem a necessidade de transferir o paciente para hemodiálise. Em nosso caso isso foi facilmente realizado por meio da modificação da diálise peritoneal habitual do paciente. No entanto, mais estudos são necessários para confirmar se tal método de diálise pode prevenir e corrigir a toxicidade associada ao metotrexato.
Em conclusão, não recomendamos o uso de metotrexato em pacientes com insuficiência renal avançada ou em diálise. Caso seu uso seja indispensável, recomendamos criterioso acompanhamento clínico e paraclínico para detectar a toxicidade precocemente. Na presença de toxicidade por metotrexato, a diálise peritoneal de múltiplas trocas pode ser um tratamento alternativo para pacientes selecionados.