versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.4 São Paulo out./dez. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170077
A doença renal crônica (DRC) é considerada um sério problema de saúde pública mundial, com perspectiva de aumento substancial no número de pacientes tratados com diálise e transplante renal.1,2 De acordo com Lugon et al.,3 o mundo está enfrentando uma epidemia da DRC e o número desses pacientes está crescendo com maior potencial nos países em desenvolvimento.
Nos Estados Unidos (EUA), estima-se uma elevação de 470.000 pessoas em 2004 para mais de 2,2 milhões em 2030.4 No Brasil, de acordo com o censo realizado anualmente pela Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), em 2005 65.121 pacientes estavam em programa de diálise,5 enquanto em 2011 havia 91.314 e em 2014 mais de 112.000 pacientes em diálise.5,6 A taxa de pacientes incidentes em diálise foi de 119 pacientes por milhão (ppm) em 2005, 149 ppm em 2011, 161 ppm em 2013 e 180 ppm em 2015.5,6
Os métodos de diálise à disposição dos nefrologistas são diálise peritoneal (DP) e hemodiálise (HD), sendo este último o mais utilizado em todo o mundo.7 Historicamente, a DP foi amplamente utilizada, e por razões não completamente claras, tem sido pouco indicada nos últimos anos. As possíveis explicações para a sua subutilização são a percepção de que é inferior à HD, devido ao fato da HD estar associada ao maior avanço tecnológico, o receio das complicações infecciosas, mecânicas e metabólicas associadas à DP, às dificuldades de inserção do cateter peritoneal e, por fim, ao pior reembolso financeiro com a DP.7,8
Nos EUA, em 2013, havia 661.648 pacientes em TRS, e 63,7% deles estavam em HD e 6,8% foram tratados com DP.9 No Brasil, os dados de 2014 mostraram que 91,4% dos doentes crônicos foram submetidos a HD e apenas 8,6% foram tratados com DP.7
Vários estudos têm comparado desfechos clínicos de pacientes tratados por DP e HD e, até o momento, não há evidência de superioridade de um método em relação ao outro no que diz respeito à mortalidade geral dentro dos dois primeiros anos de tratamento.7,10
Quando analisadas subpopulações, alguns estudos têm mostrado melhores resultados com DP no grupo de pacientes jovens sem comorbidades, enquanto outros estudos apontam menor mortalidade após dois anos de diálise em pacientes idosos e com comorbidades tratados com HD.8,11
Recentemente, alguns autores têm apontado o impacto do tipo de acesso vascular na mortalidade de pacientes incidentes em HD.11,12 Estes estudos verificaram que a utilização de cateter venoso central (CVC) está diretamente associada com a sobrevivência reduzida, especialmente nos primeiros 90 dias de terapia. Além disso, há maior risco de bacteremia, septicemia e hospitalizações em pacientes que utilizam CVC quando comparados aos pacientes em uso de uma fístula arteriovenosa (FAV), enxerto ou DP.7,11,12
Neste cenário, a DP parece ser uma opção para o início urgente de diálise crônica. Ele pode oferecer a vantagem de não utilizar um CVC, preservando assim o acesso vascular e a função renal residual, podendo reduzir a morbidade e mortalidade desses pacientes.13,14
A diálise não planejada, também conhecida como de início urgente, pode ser definida como o início de HD sem acesso vascular definitivo funcionante, isto é, utilizando CVC como acesso, ou com o início de DP dentro de 7 dias após o implante do cateter.15-17
Ivarsen e Povlsen15 analisaram, retrospectivamente, o Registro de Nefrologia Dinamarquês (2008-2011) e relataram que 50% dos pacientes incidentes em TRS começaram de forma não planejada. No Brasil, aproximadamente 60% dos pacientes incidentes em TRS não têm acesso definitivo e precisam ser tratados através de CVC. Na unidade de diálise do Hospital Universitário da Faculdade de Medicina de Botucatu, a realidade é ainda pior: mais de 90% dos pacientes incidentes iniciam a diálise de modo urgente e 50% dos pacientes prevalentes não têm acesso vascular definitivo funcionante e são tratados por CVC tunelizado.16,17
Lok18, em estudo publicado recentemente, relata que, mundialmente, aproximadamente um terço dos pacientes iniciam TRS de forma não planejada, ou seja, urgente, o que torna desafiador para a equipe da saúde a discussão e o esclarecimento sobre o diagnóstico e seu tratamento, que inclui a decisão do método de diálise e a confecção/implante do acesso dialítico.
A DP tem surgido como alternativa viável, segura e complementar à HD no início dialítico não planejado tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento, tornando-se também ferramenta útil para crescimento do programa de DP.19-23
Casaretto et al.24 e Ghaffari et al.25 descreveram em 2012 e 2013, respectivamente, que os programas de DP de início urgente exigem novas infraestruturas e processos específicos de atendimento. A equipe médica necessita estar apta e disponível para implantar o cateter peritoneal de urgência, sendo fundamental a participação ativa do nefrologista. Alterações na infraestrutura da unidade de DP são necessárias para a realização da diálise, assim como o primordial papel da enfermagem, o apoio administrativo do hospital e da própria unidade de diálise e a elaboração de protocolos de implante de cateter, prescrição de diálise e treinamento de enfermagem.
A participação da enfermagem no treinamento da técnica aos pacientes e familiares é de fundamental importância para o sucesso da terapia de DP. Entretanto, poucas são as enfermeiras especializadas em DP e escassos são os estudos que avaliaram o impacto do treinamento adequado na sobrevida do paciente e da técnica.26,27
Figueiredo et al.28 realizaram estudo que teve como objetivo avaliar o impacto das características do treinamento sobre as taxas de peritonite em uma grande coorte brasileira, (BRAZPD II) de janeiro de 2008 a janeiro de 2011. Os pacientes que receberam treinamento com duração > 15 h tiveram significativamente menor incidência de peritonite em comparação com o grupo treinado por < 15 h (0,26 episódios por ano em risco versus 0,32, p = 0,01). A presença de um cuidador e o número de pessoas treinados não foram significativamente associados com incidência de peritonite.
A realização do treinamento iniciada antes do implante do cateter ou dez dias após seu implante associou-se a menores taxas de peritonites quando comparada com o treinamento iniciado nos primeiros dez dias após o implante do cateter (0,28 vs. 0,23 vs. 0,32 episódios por ano, respectivamente, p=0,003). Este foi o primeiro estudo a analisar a associação entre as características de treinamento e o desfecho infeccioso em uma grande coorte de pacientes em DP. Os autores concluíram que tempo de treinamento inferior a 15 h, menor tamanho do centro e início de treinamento inferior a 10 dias após o implante do cateter associaram-se a maior incidência de peritonite.
Dessa forma, mesmo que a DP tenha sido iniciada de maneira não planejada, o tempo e qualidade do treinamento dos pacientes e cuidadores deve seguir as evidências mais recentes.
Poucos estudos descreveram a DP como opção de tratamento imediato em pacientes sem o acesso vascular funcionante.12,16,17 A Tabela 1 sumariza as principais características de tais estudos.
Tabela 1 Principais características dos diferentes e recentes estudos sobre DP não planejada
Estudo | Ano | Grupo de pacientes | Tratamento planejado vs. não planejado | Resultados | Complicações |
---|---|---|---|---|---|
Lobbedez et al.20 | 2008 | 34 DP e 26 HD | DP não planejada vs. HD não planejada | Não houve diferença significativa entre os dois métodos de diálise não planejada (HD x DP) quanto à sobrevida dos pacientes (78,8% no grupo HD vs. 82,9% em DP). | Apenas dois casos com complicações mecânicas após o implante do cateter |
Koch et al.19 | 2012 | 57 pacientes incidentes em HD não planejada e 66 em DP não planejada | HD não planejada vs. DP não planejada | Não houve diferença significativa nas taxas de mortalidade entre os dois métodos (n = 20 pacientes DP (30,3%) versus n = 24 pacientes HD (42,1%) p = 0.19) | Pacientes em HD apresentaram mais bacteremia do que pacientes em DP nos primeiros seis meses de diálise - associado com a utilização de um CVC como acesso inicial (21,1% vs. 3%, p < 0,01) |
Povlsen26 | 2009 | 20 pacientes incidentes em DP planejada e 19 DP não planejada | DP planejada vs. não planejada | Não houve diferença significativa entre os métodos DP não planejada x DP planejada quanto à sobrevida dos pacientes e tempo livre de complicações infecciosas | O risco de complicações mecânicas e a necessidade de troca do cateter peritoneal foi maior no grupo DP não planejada |
Alkatheeri et al.29 | 2014 | 30 pacientes incidentes DP | DP urgent -start | Os autores concluíram que DP urgent-start é alternativa segura para pacientes que necessitam iniciar diálise urgentemente sem acesso hemodialítico confeccionado | Três pacientes (10%) tiveram extravasamento; Seis pacientes (20%) apresentaram migração do cateter, que foi corrigido por reposicionamento, sem a necessidade de substituição do cateter ou mudança de técnica. |
Liu et al.30 | 2014 | Cinco clínicas que realizam Urgent-start (HD ou DP). No total 218 pacientes iniciaram de modo não planejada -95 pacientes DP urgent start, 97 HD urgent start e 26 pacientes ambos (HD e DP urgent start) | DP urgent-start, HD urgent-start e abordagem dupla (HD urgent-start seguido de DP urgent-start) | Os autores concluíram que DP urgent-start é custo-efetiva. A estimativa de custo por paciente durante os primeiros 90 dias em DP urgent-start foi de U$ 16.398, enquanto HD urgent-start foi de U$ 19.352. | Não houve |
Dias et al.23 | 2016 | 35 pacientes incidentes em DP não planejada nos primeiros 90 dias | DP não planejada | Controles metabólicos foram alcançados após cinco sessões de DP alto volume, e os pacientes permaneceram em DPI por 23,2 ± 7,2 dias recebendo 11,5 ± 3,1 sessões DPI. A taxa de mortalidade foi de 20%, e sobrevida da técnica foi de 85,7%. O programa de DP crônica apresentou um crescimento de 41,1%. | Peritonite e complicações mecânicas ocorreram em 14,2 e 25,7%, respectivamente. |
DP: diálise peritoneal; HD: hemodiálise.
Lobbedez et al.20 seguiram, por um período de dois anos, 60 pacientes que iniciaram diálise não planejada, incluindo 34 pacientes tratados com DP e 26 com HD. Entre os pacientes tratados por DP de início urgente, apenas dois tiveram complicações mecânicas relacionadas ao implante do cateter e não houve diferenças significativas quanto às complicações mecânicas ou infecciosas quando comparados com pacientes que tiveram um período de descanso após a inserção do cateter, ou seja, iniciaram a diálise de modo planejado. A sobrevida dos pacientes tratados por DP e HD, ambas iniciadas de modo não planejado, foi semelhante (78,8% no grupo HD vs. 82,9% em DP, p = 0,26).
Koch et al.19 avaliaram 57 pacientes incidentes em HD não planejada e 66 em DP não planejada. Os pacientes em HD apresentaram mais bacteremia do que pacientes em DP nos primeiros seis meses de diálise (21,1% vs. 3%, p < 0,01), o que foi associado à utilização de CVC como o acesso inicial. Os dois grupos foram semelhantes quanto à mortalidade.
Dados dinamarqueses reforçam a hipótese de que a DP de início não planejado está associada a um menor risco de complicações infecciosas em comparação à HD iniciada de modo urgente, ou seja, utilizando CVC.15,26 Em 2009, Povlsen26 descreveu os resultados iniciais de um programa de DP de início não planejado. A análise dos dados mostrou que o início não planejado de DP não cursou com pior tempo livre de peritonites, sobrevida de técnica, ou de pacientes quando comparada à DP de início planejado. Entretanto, houve maior risco de complicações mecânicas e a maior necessidade de substituição de cateter de DP. O autor conclui que o início não planejado de DP é um procedimento viável, seguro e eficiente.
Esse mesmo autor observou que houve mais complicações mecânicas relacionadas ao cateter em pacientes que iniciam DP não planejada em comparação àqueles que tinham um período de descanso após o implante do cateter peritoneal. No entanto, a maior prevalência de complicações mecânica não implicou em pior sobrevida da técnica ou do paciente.
Alkatheeri et al.29 relataram, recentemente, experiência inicial canadense com o programa de DP urgent-start. Os autores, em um estudo prospectivo e observacional, acompanharam 30 pacientes incidentes em DP de início não planejado e analisaram as complicações mecânicas e infecciosas. Três pacientes (10%) apresentaram extravasamento pericateter durante a primeira semana de tratamento, o qual não precisou ser interrompido. Não houve episódios de peritonite ou infecção de orifício de saída durante as primeiras quatro semanas após a inserção do cateter. Seis pacientes (20%) desenvolveram disfunção mecânica do cateter (migração), que foi corrigida por meio do seu reposicionamento, sem a necessidade de substituição do cateter ou mudança de método. Os autores concluíram que DP urgent-start é uma alternativa eficaz e segura para os pacientes que necessitam iniciar diálise de modo urgente sem acesso hemodialítico funcionante.
Em 2014, Liu et al.30 analisaram e compararam os custos associados à DP urgent-start , HD urgent-start e à abordagem dupla (HD seguida de DP, ambas urgent-start ) ao longo dos primeiros 90 dias de tratamento. A estimativa de custo por paciente durante os primeiros 90 dias em DP urgent-start foi de US$ 16.398, em HD urgent-start foi de US$ 19.352 e em dupla abordagem (HD + DP urgent start ) foi de US$ 19.400. Os autores concluíram que DP pode ser melhor custo vs. efetividade que a HD quando iniciadas de modo não planejado.
Dias et al.23 publicaram os resultados iniciais de um estudo realizado pelo nosso grupo na qual incluíram 35 pacientes no período de julho de 2014 a janeiro de 2015. A idade foi 57,7 ± 19,2 anos, diabetes foi a principal etiologia da DRC (40,6%) e uremia foi a principal indicação de diálise (54,3%). O controle metabólico foi alcançado após cinco sessões de DP de alto volume, e os pacientes permaneceram em DP intermitente por 23,2 ± 7,2 dias, recebendo 11,5 ± 3,1 sessões DP intermitente.
Peritonite e complicações mecânicas ocorreram em 14,2 e 25,7%, respectivamente. A taxa de mortalidade foi de 20%, e sobrevida da técnica foi de 85,7%. O programa de DP crônica apresentou um crescimento de 41,1%. O conceito de início não planejado na DP crônica pode ser uma alternativa viável e segura, complementar a hemodiálise e uma ferramenta para aumentar o programa de DP com os pacientes incidentes que iniciam a terapia de diálise.
Embora os dados sobre o início de DP não planejada sejam escassos, eles indicam que a mortalidade é pelo menos semelhante à de pacientes tratados por HD não planejada, sendo inferior o número de complicações infecciosas, incluindo bacteremia.15,17,20
Dificilmente, ensaios clínicos que comparem HD vs. DP de início não planejado serão realizados, pois implicam em preceitos éticos. Assim, estudos observacionais de qualidade e realizados tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimentos devem ser realizados para embasar a prática da DP de início urgente.
Até o momento, os estudos sugerem que a modalidade de DP é alternativa viável e segura para pacientes que iniciam a terapia dialítica de modo não planejado, além de poder ser ferramenta útil para aumentar a prevalência de pacientes tratados por DP crônica. Dessa forma, a DP é uma opção e deve ser oferecida de forma imparcial a todos os pacientes sem contraindicações para sua realização e que necessitam iniciar diálise urgentemente.