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Diálogo entre editores científicos em saúde e cientistas que produzem estudos qualitativos

Diálogo entre editores científicos em saúde e cientistas que produzem estudos qualitativos

Autores:

Ivan França-Junior

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.1 Rio de Janeiro jan. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017221.24352016

Como pesquisador, revisor e editor em ciência, vejo o artigo de Taquette e Villela como uma oportunidade para ampliar o diálogo com editores e suas políticas editoriais, implícitas ou explícitas, expressas nas “Instruções aos Autores”. De fato, as políticas editoriais devem ser periodicamente revistas, pois o diálogo científico se dá através delas.

As autoras classificam as revistas em favoráveis, não favoráveis ou indiferentes/dúbias, fundamentalmente, a partir de quatro critérios: 1) exigência de testes estatísticos; 2) reprodutibilidade; 3) generalização dos resultados e 4) extensão muito limitada do texto. Apesar da menção, não consegui perceber o uso efetivo de critérios como número de autores e delineamento. Concluem que mais da metade, em especial as revistas médicas, estabelece condições incompatíveis com a veiculação da pesquisa qualitativa.

Não há dúvidas que a exigência de testes estatísticos, como critério formal de validação científica, interdita as possiblidades de debate científico advindo de pesquisas qualitativas no âmbito de uma dada revista. Em linha com Taquette e Villela, creio que as revistas, que assim o fazem, subtraem dos seus leitores conhecimentos produzidos que podem ser válidos e, secundariamente, úteis para o cuidado clínico. Mesmo em pesquisas quantitativas, vale o alerta de Hill1: […]

frequentemente suspeito que desperdiçamos uma boa quantidade de tempo, compreendemos a sombra e perdemos a substância, enfraquecemos a nossa capacidade de interpretar os dados e tomar decisões razoáveis qualquer que seja o valor de P. E, muitas vezes, deduzimos ‘nenhuma diferença’ de ‘não houve diferença significativa’. Como o fogo, o teste do qui quadrado é um excelente servo e um péssimo senhor.

Tenho sérias dúvidas se as outras três exigências (reprodutibilidade, generalização e extensão do manuscrito) configuram-se necessariamente como critérios desfavoráveis. Minhas dúvidas decorrem do fato de que estas três condições não são exigências de validade exclusivas de pesquisas que quantificam ou qualificam as experiências e os experimentos humanos.

É necessário lembrar que todo discurso, científico ou não, deve satisfazer exigências de validade. Discursos científicos, quanti ou qualitativos, devem estar atentos a essas exigências. Como bem assinalou Ayres2: À crença numa verdade universal, absoluta nos primeiros positivismos e relativa nos neopositivismos, Habermas contrapõe, portanto, uma concepção consensual da verdade. A validade do conhecimento objetivo repousa na intersubjetividade que funda toda construção racional. A pretensão de verdade de um discurso é, assim, vinculado à sua ‘valorização’ entre os diversos discursos em interação nos três níveis […]: a) na sua capacidade de expressar certezas compartilháveis, isto é, na sua positividade proposicional; b) na possibilidade de instruir ações eficazes no âmbito dos projetos sociais relativos a tais realidades, isto é, na sua adequação normativa; e c) no êxito em estabelecer efetiva intersubjetividade entre os diversos sujeitos envolvidos nessas ações, isto é, na sua autenticidade. A ciência, sem dúvida, valoriza o primeiro nível, e cientistas dos vários campos buscam expressar suas conclusões de modo a serem aceitos, senão consensual, pelo menos, majoritariamente.

A reprodutibilidade é muitas vezes entendida erroneamente como uma exigência fundamental da validade de uma certa afirmação científica. Os que têm esse entendimento são pesquisadores (na condição de editores ou revisores) que possivelmente têm uma concepção de ciência já superada por tantos filósofos da ciência como Popper, Bachelard, Kuhn, Merton, Fleck, Latour, entre outros. Eles parecem permanecer atados às noções do empirismo do século XIX3, também denominado de positivismo. Na melhor das hipóteses, aderem à lógica do verificacionismo, difundido pelo Círculo de Viena3. Editores que agem assim são provavelmente cientistas com pouca formação em filosofia e história da ciência e que cultivam crenças epistemológicas sem muita reflexão crítica. Claramente, uma afirmação não deveria ser considerada verdade pela comunidade científica porque ela foi reproduzida, nem o contrário. A reprodutibilidade de um estudo diz mais respeito à transparência metodológica e, nesse sentido, pode e deve ser valorizada em qualquer modalidade de pesquisa. Os leitores de ciência, sejam cientistas ou não, têm o direito ao maior detalhamento possível para reproduzirem mental ou materialmente um dado estudo. Creio que, entendida desse modo, a reprodutibilidade pode ser instrumento importante na expansão do conhecimento científico. As autoras contrapõem replicabilidade à noção de reprodutibilidade, mas creio que o uso de um novo termo não resolve totalmente a questão. Outros autores têm usado termos alternativos como “trustworthiness”, qualidade ou rigor4. Esses termos acabam recaindo no que Habermas chama de capacidade de expressar certezas compartilháveis. Sem essa capacidade, qualquer trabalho científico pode cair no esquecimento.

No caso da generalização, novamente, entendo que os editores geralmente têm uma concepção ingênua (ou superada) de ciência. Muitas vezes, generalização é entendida como uma conclusão teórica de alcance atemporal e anistórica. Contrapor a essa generalização a singularidade me parece adicionar e não resolver problemas. Assumir a singularidade radicalmente poderia redundar em crenças de que as conclusões servem exclusivamente para aquele dado estudo, para uma dada população. A crença na singularidade opta, consciente ou inconscientemente, por reduzir o alcance empírico da conclusão científica5. Isto, decididamente, não é recomendável. Melhor pensar as conclusões de pesquisas qualitativas como a criação de interpretações teóricas com base em significados advindos de experiências e experimentos humanos. Essas interpretações podem ser extrapoladas ou generalizadas para outras situações, mas com cuidado e rigor teórico-metodológicos. Se não fosse assim, como ainda valorizar as contribuições de Freud, Geertz, Bourdieu, Foucault, Paulo Freire e tantos outros.

Por fim, a extensão do texto. Parece-me um critério mais ligado à forma da escrita do que às diferenças epistemológicas entre as pesquisas quanti ou qualitativas. Deste modo, acho pouco válido usá-lo para classificar uma política editorial como favorável ou desfavorável. A concisão – sem prejuízo da clareza, densidade e coerência do texto científico – deve ser exercitada por todos os cientistas. Minha experiência como editor e professor de escrita científica aponta para três modos recorrentes de texto excessivo: introduções longas e desfocadas, grande quantidade de objetivos e um uso pouco criativo da apresentação de resultados. Frequentemente, as introduções falham em formular claramente o problema de pesquisa e argumentar a importância do objetivo da pesquisa. Ficam sendo textos panorâmicos que buscam resumir o “estado da arte”. Há, não raramente, mais de dois objetivos, expressos pela ocorrência de dois ou mais verbos. Mais objetivos implicam mais métodos, mais resultados e, consequentemente, mais conclusões teóricas. A apresentação pouco criativa (até mesmo errônea) de resultados, frequentemente, consiste na transcrição de falas – material bruto de pesquisa – sem a devida categorização empírico-analítica orientada pelo corpo teórico6. É importante buscar uma narrativa mais sintética, valendo-se do uso de quadros com categorias empíricas e analíticas e de textos do autor que sintetizem os depoimentos dos sujeitos em uma exposição do empírico articulada ao corpo teórico. É preciso ainda evitar o jargão, a preferência pela ordem passiva e por substantivos em detrimento da descrição de processos com seus sujeitos e ações explícitos7. Todos esses elementos conspiram para um texto desnecessariamente longo. Editores, revisores e, principalmente, leitores ficam agradecidos com textos de maior concisão e densos teoricamente.

Relembro as sugestões de George Orwell8 para evitar um “texto decadente” (termos dele) científico ou não: 1) Nunca use uma metáfora, símile ou outra figura de estilo que esteja habituado a ler; 2) Nunca use uma palavra grande quando uma pequena servir; 3) Se for possível cortar uma palavra, corte-a sempre; 4) Nunca use a voz passiva quando pode usar a voz ativa; 5) Nunca use uma expressão estrangeira, uma palavra científica ou jargão se conseguir pensar num equivalente da língua (inglês no original) corrente e 6) É preferível violar qualquer destas regras a dizer algo obviamente bárbaro.

Enfim, todos nós, editores e escritores científicos, temos que melhorar para incorporar efetivamente as contribuições das pesquisas qualitativas.

REFERÊNCIAS

1. Hill AB. The environment and disease: association or causation? Proc R Soc Med 1965; 58(5):295.
2. Ayres JRCM. Interpretação histórica e transformação científica: a tarefa hermenêutica de uma teoria crítica da epidemiologia. Rev Saude Publica 1994; 28(4):311-319.
3. Chalmers AF. O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense; 1993.
4. Golafshani N. Understanding reliability and validity in qualitative research. Qual Rep 2003; 8(4):597-606.
5. Volpato G. Bases teóricas para redação científica … por que seu artigo foi negado? Botucatu: UNESP; 2007.
6. Knauth DR, Leal AF. A expansão das Ciências Sociais na Saúde Coletiva: usos e abusos da pesquisa qualitativa. Interface (Botucatu) 2014; 18(50):457-467.
7. Billig M. Learn to write badly: How to succeed in the social sciences. Cambridge: Cambridge University Press; 2013.
8. Orwell G. Por que escrevo e outros ensaios. Lisboa: Antígona; 2008.