versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774
J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.6 Rio de Janeiro nov./dez. 2019 Epub 02-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190063
A anemia falciforme (AF) é uma doença genética causada por uma mutação pontual no gene da betaglobina S. Sabe-se que a concentração de hemoglobina fetal (HbF), os haplótipos do gene da betaglobina S e a coexistência com a talassemia alfa são fatores envolvidos na modulação clínica da doença. Entretanto, a AF apresenta outras manifestações clínicas que dependem não somente desses fatores, mas da interação ambiental e genética(1). Neste estudo, mostramos o caso raro de duas gêmeas univitelinas portadoras de AF (HbSS) com apresentação clínica distinta.
Pacientes do sexo feminino, 22 anos, gêmeas idênticas, naturais de Fortaleza, Ceará, estudantes, com diagnóstico de AF (HbSS) desde os 5 meses de idade, desde então acompanhadas ambulatorialmente. Na infância, foram submetidas a diversas internações por crises álgicas, recebendo mais de 10 transfusões sanguíneas até os 18 anos de idade. Ambas apresentam hepatomegalia e baço de tamanho reduzido (autoesplenectomia funcional) e foram submetidas à colecistectomia há cinco anos. As pacientes iniciaram tratamento com hidroxiureia (HU) quatro anos atrás (dose média de 750 mg/dia) e ambas dão seguimento ao tratamento com HU atualmente com dose média de 1250 mg/dia.
As pacientes tiveram a mesma evolução clínica, até a paciente 2 apresentar uma úlcera maleolar no membro inferior esquerdo, com aspecto fibrótico, dor regular, exsudato amarelado e pele adjacente ressecada (Figura). Com limpeza, desbridamento físico e uso de tópico de medicamentos, a cicatrização da úlcera ocorreu em sete meses. Três anos, ela recidivou, sendo tratada por quatro meses até a resolução completa. A paciente 1 nunca apresentou nenhuma manifestação clínica grave.
As pacientes apresentaram alterações semelhantes nos parâmetros do hemograma, com HbF elevada, medida durante tratamento com HU (Tabela 1). As diferenças observadas foram os níveis acima do valor de referência de aspartato aminotransferase (AST) na paciente 1 e bilirrubina indireta na paciente 2, embora sem repercussão clínica (Tabela 2).
TABELA 1 Parâmetros do hemograma das pacientes com AF durante o tratamento
Variáveis | jul/2014*
(sem HU) |
set/2016 (HU 1000 mg/dia) |
dez/2017 (HU 1250 mg/dia) |
Referências | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Paciente 1 |
Paciente 2 |
Paciente 1 |
Paciente 2 |
Paciente 1 |
Paciente 2 |
||
Hemoglobina (g/dl) | 7,352 | 7,529 | 7,082 | 7,564 | 5,8 | 6,1 | 12,3-15,3 |
Hematócrito (%) | 21,14 | 21,86 | 19,23 | 22,22 | 17,5 | 17,5 | 36-45 |
VCM (fl) | 112,6 | 92,51 | 107,7 | 110,4 | 136,9 | 133,1 | 80-96,1 |
CCHC (%) | 34,77 | 34,4 | 36,84 | 34,05 | 33,3 | 34,6 | 33,4-35,5 |
Leucócitos × 103 (/mm3) | 12570 | 14790 | 12780 | 6895 | 8200 | 7000 | 4,5-11 |
Plaquetas × 103 (/mm3) | 262.800 | 438.400 | 258.000 | 330.500 | 279.000 | 286.900 | 172-450 |
Eletroforese de | HbF: 1 | HbF: 0 | HbF: 1,3 | HbF: 1,7 | HbF: 8,4 | HbF: 7,4 | HbF: 0-1,5 |
hemoglobina | HbA2: 4,5 | HbA2: 3,8 | HbA2: 3,4 | HbA2: 3,3 | HbA2: 2,6 | HbA2: 2,6 | HbA2 : 2-3,7 |
(%) | HbS: 94,5 | HbS: 95,2 | HbS: 93,2 | HbS: 93,1 | HbS: 85,3 | HbS: 87,7 | HbA: 96-98 |
Reticulócitos (/mm3) | 407.200 | 342.900 | 324.300 | 331.400 | 173.900 | 125.400 | 25.000-75.000 |
AF: anemia falciforme; VCM: volume corpuscular médio; CHCM: concentração de hemoglobina corpuscular média; HU: hidroxiureia;
*data do primeiro atendimento.
TABELA 2 Parâmetros bioquímicos, clínicos e físicos das pacientes com AF
Paciente 1 | Paciente 2 | Referências | |
---|---|---|---|
Altura (m) | 1,53 | 1,55 | - |
Peso (kg) | 41,7 | 43,2 | - |
AST (UI/l) | 38 | 19 | < 32 |
ALT (UI/l) | 26 | 17 | < 31 |
Fosfatase alcalina (UI/l) | 244 | 144 | 65-300 |
Bilirrubina indireta (mg/dl) | 1,88 | 2,73 | < 0,8 |
Lactato desidrogenase (U/l) | 764 | 524 | 230-460 |
Úlcera de perna | Não | Sim | - |
AF: anemia falciforme; AST: aspartato aminotransferase; ALT: alanina aminotransferase.
Sabe-se que a AF é uma doença genética que apresenta grande variabilidade nos aspectos clínicos e laboratoriais, sendo influenciada por fatores genéticos, tais como os tipos de haplótipos, polimorfismos em regiões relacionadas com HbF e fatores não genéticos(1). Estudos com gêmeos univitelinos são importantes para exemplificar a heterogeneidade clínica da doença, mostrando que mesmo indivíduos geneticamente idênticos podem apresentar manifestações clínicas diferentes, ressaltando a importância de fatores ambientais e sua influência sobre o fenótipo e, consequentemente, sobre o curso clínico da AF,
As pacientes gêmeas univitelinas com AF apresentavam cursos clínicos semelhantes, com dores de cabeça esporádicas e sem manifestações clínicas graves da doença, Entretanto, aos 18 anos, a paciente 2 apresentou úlcera de perna em membro inferior esquerdo. A úlcera de perna é a manifestação cutânea mais comum da AF, ocorrendo em 8% a 10% dos pacientes homozigotos, estando frequentemente associadas a um pior curso clínico. Geralmente, as úlceras de perna apresentam um caráter crônico e debilitante que afeta os pacientes de maneira física e emocional, tendo potencial de influenciar na qualidade de vida do indivíduo(2). A presença de hemólise intravascular tem sido implicada na patogênese das úlceras. Entretanto, vários outros fatores como o fenômeno de vaso-oclusão, insuficiência venosa, infecções, diminuição da biodisponibilidade de óxido nítrico (NO) e inflamação podem estar envolvidos na sua gênese(3).
A Tabela 1 mostra as concentrações de HbF das pacientes com AF antes e durante o tratamento com HU. Ambas as pacientes apresentavam níveis semelhantes de HbF nos diferentes momentos avaliados, indicando que os níveis de HbF e os determinantes de resposta ao tratamento podem ser controlados por fatores genéticos. Apesar de importantes, os fatores genéticos não explicam toda a variabilidade clínica encontrada nos pacientes com AF, sugerindo que outros fatores podem estar envolvidos no surgimento das manisfestações clínicas. Relatos prévios têm mostrado que o fator ambiental pode afetar o curso clínico da doença, culminando no aparecimento de algumas complicações. Alguns fatores, como temperatura, velocidade do vento, umidade, qualidade do ar, altitude elevada, ambiente domiciliar, fatores socioeconômicos e atividade física podem ter influência sobre as manifestações clínicas(4). No caso das gêmeas em questão, levantamos a hipótese de que alguns desses fatores podem ter favorecido o aparecimento da úlcera de perna na paciente 2 e não na paciente 1.
Diferenças clínicas entre gêmeos com hemoglobinopatias já foram descritas em estudos anteriores, sugerindo que embora tenham o mesmo componente genético, fatores externos podem desempenhar um papel importante na expressão clínica da doença, podendo contribuir com a precipitação de crises e complicações(5,6). No estudo de Weatherall(7), apenas um dos gêmeos com HbSS apresentou úlcera de perna, atribuída a contribuições genéticas e ambientais, embora o autor cite o trauma como um fator ambiental claramente envolvido.
Alguns desses fatores externos, como a temperatura, são bem documentados(4), contudo a investigação e a orientação médica no momento da consulta podem ser de grande importância na prevenção de complicações. Apesar da dificuldade de identificar e estabelecer uma relação entre um fator ambiental específico e o aparecimento de manifestações clínicas, a investigação desses componentes pode contribuir para melhorar nossa compreensão sobre os fatores influenciadores e/ou precipitadores de complicações.