versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.37 no.2 São Paulo abr./jun. 2015
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20150033
A terapia de indução com agentes biológicos como os bloqueadores do receptor da IL-2 é indicada como parte da terapia imunossupressora inicial no transplante renal. Os agentes depletores de linfócitos são indicados em pacientes de alto risco imunológico segundo o KDIGO1 e também podem ser utilizados com segurança nos transplantes com doador vivo.2 O propósito da indução é modular a resposta das células-T efetoras para a apresentação de antígenos. Assim, objetiva-se reduzir a incidência de rejeição aguda. Como agentes de indução, temos os bloqueadores do receptor da interleucina-2, como o basiliximab, e os agentes depletores de linfócito-T, como a timoglobulina.3 Em recente revisão sistemática, o uso de bloqueadores de receptores de IL-2 mostrou uma redução na incidência de rejeição aguda em 38% comparado com placebo sem aumento em efeitos colaterais de infecção.4 Em comparação com a timoglobulina, os bloqueadores de receptor da IL-2 levaram a uma taxa de rejeição comprovada por biópsia em 1 ano superior, porém, menos efeitos colaterais de infecção por CMV ou malignidade.4
Apesar de a literatura internacional indicar o uso de indução mesmo em receptores de moderado risco como os doadores vivos hapolidênticos,1 esta posição não é consensual no Brasil5 e no mundo.6 Assim, pretendemos relatar a evolução de esquemas com e sem indução numa população de doadores vivos de baixo a moderado risco imunológico.
Comparar não indução com indução com basiliximab e timoglobulina na incidência de rejeição aguda, função renal aos 6 meses, sobrevida do enxerto e do paciente em transplantados renais com doador vivo.
Foram selecionados todos os casos de transplante renal com doador vivo realizados no serviço de transplante renal do Hospital das Clínicas de Botucatu da UNESP (HC UNESP) no período de janeiro de 2010 a dezembro de 2013. O grupo foi dividido pelo tipo de medicação usada na indução (sem indução, indução com basiliximab ou indução com timoglobulina). Foram levantados dados demográficos e clínicos de idade, sexo, doença de base, anticorpos reativos contra painel de células (painel), compatibilidade HLA, drogas imunossupressoras, creatinina na alta hospitalar, creatinina ao fim de 6 meses, tempo de internação, tempo de seguimento e ocorrência de rejeição aguda, perda do enxerto ou óbito.
Os dados foram obtidos dos protocolos clínicos sem nenhum caso de perda de seguimento. Considerou-se evolução normal a queda da creatinina em 50% em 24 h e normalização em 4 a 5 dias. Realizou-se biópsia renal em todos os casos de não normalização da creatinina após cinco dias de transplante (creatinina superior a 1,4 mg/dl) ou piora da função renal com ultrassom Doppler normal. Todos os casos de rejeição foram comprovados por biópsia e avaliados até 6 meses após o transplante. Foram coletadas amostras com três fragmentos e pesquisa para C4d por imuno-histoquímia e imunofluorescência. Todos os casos foram analisados por um único patologista com experiência em transplante renal.
O esquema de imunossupressão utilizado foi a combinação de inibidor da calcineurina, micofenolato sódico ou azatioprina e prednisona nos pacientes haploidênticos e distintos. A quase totalidade dos pacientes (mais de 90%) utilizou como inibidor da calcineurina o tacrolimo e como droga acessória o micofenolato sódico. Objetivou-se nível sérico de tacrolimo de 8-12 ng/dl no primeiro mês e após de 4-8 ng/dl. Para a ciclosporina, os níveis de C0 formam de 200-300 ng/dl no primeiro mês e 100-200 ng/dl após. Para os pacientes idênticos e com painel zero, utilizou-se a combinação de micofenolato sódico e prednisona sem inibidor da calcineurina. Para todos os pacientes, a dose de prednisona foi de 30 mg no primeiro mês, com reduções graduais posteriores até 5 mg ao fim do terceiro mês.
As rejeições mediadas por células T foram tratadas com pulso de metilprednisolona 500 mg por 3 dias. Ausência de resposta ao pulso de metilprednisolona, histologia de Banff IIB ou superior ou rejeição mista (C4d+) foram tratadas com timoglobulina na dose total de 6 mg/Kg.
O esquema de indução utilizado foi timoglobulina para os pacientes com painel superior a 30% independente da compatibilidade HLA. Para pacientes com painel de reatividade menor que 30%, não foi utilizada indução nos idênticos e haploidênticos. Nos pacientes distintos deste grupo foi utilizada indução com basiliximab até maio de 2012 e, após esta data, timoglobulina por mudança do protocolo de indução do serviço (Figura 1). A dose de basiliximab foi 20 mg no dia do transplante e 20 mg após 4 dias. Timoglobulina foi utilizada na dose de 1 mg/kg/dia por 5 dias. Para os pacientes que receberam timoglobulina, foi feito esquema e profilaxia com ganciclovir endovenoso na dose de 5 mg/kg três vezes por semana e monitorização por antigenemia pp65 semanal.
Figura 1 Esquema de indução para doadores vivos utilizado no HC UNESP baseados em informações do painel e compatilibidade HLA.
Para as análises estatísticas, foi utilizado o teste do qui-quadrado ou teste exato de Fisher para as variáveis categóricas. Medidas direcionais de associação foram utilizadas no qui-quadrado para comparação entre subgrupos (Lambda e Goodman/Kruskal tau). Para as variáveis contínuas, foi utilizado o teste de ANOVA para as variáveis paramétricas e Krurskall Wallis para as não paramétricas. Para a comparação de subgrupos, foi utilizado o pós-teste de Bonferroni. Para as análises de sobrevida, foram utilizadas o método de Kaplan-Meier e o log-rank test. Para a análise multivariada, foi realizada regressão logística binária com método de seleção Forward Stepwise com probabilidade de entrada de 0,05 e remoção de 0,10. Foi considerado no modelo o risco para rejeição como variável dependente e como covariável o uso de terapia de indução (presente ou ausente) ajustado para idade, sexo e painel. Considerado significância para p < 0,05.
No período analisado foi realizado um total de 90 transplantes com doador vivo. A percentagem de pacientes do sexo masculino foi maior nos grupos sem indução (61,9%) e no basiliximab (76,7%) em relação ao grupo timoglobulina (38,9%), p = 0,033. A idade média não foi diferente entre os grupos (Tabela 1). A doença de base mais frequente foi glomerulonefrite crônica e causa indeterminada que, somadas, estavam presentes em 66,7% do grupo sem indução, 40% no grupo basiliximab e 72,2% no grupo timoglobulina, p = NS (Tabela 1). Os anticorpos reativos contra painel de células foram de 2,97 ± 6,4% no grupo sem indução, 5,74 ± 18,1% no grupo basiliximab e 23,64 ± 34,9% no grupo que utilizou timoglobulina, com tendência estatística a ser mais elevado neste último grupo, p = 0,06. O uso de tacrolimo foi 70% no grupo sem indução contra 100% nos grupos basiliximab e timoglobulina, p = 0,0001. O uso de micofenolato, prednisona, azatioprina e sirolimus foi semelhante nos grupos (Tabela 1).
Tabela 1 Características clínicas e demográficas da população de doadores vivos nos grupos sem indução, basiliximab e timoglobulina
Indução | p | ||||
---|---|---|---|---|---|
Nada | Basiliximab | Timo | |||
N = 42 (A) | N = 30 (B) | N = 18 (C) | |||
Sexo Masculino | 61,9% | 76,7% | 38,9% | 0,033* | |
Idade (anos) | 36,50 ± 10,4 | 35,30 ± 18,9 | 34,83 ± 11,3 | NS | |
HAS | 4,8% | 16,7% | 11,1% | ||
DM | 9,5% | 10,0% | 5,6% | NS | |
Doença de Base | GNC | 31,0% | 20,0% | 44,4% | |
Indeterminada | 35,7% | 20,0% | 27,8% | ||
Outras | 19,0% | 33,3% | 11,1% | ||
Tempo seguimento (meses) | 23,83 ± 14,3 | 28,67 ± 12,0 | 10,56 ± 7 (A/B) | 0,0001+ | |
Painel (%) | 2,97 ± 6,4 | 5,74 ± 18,1 | 23,64 ± 34,9 | 0,06# | |
Uso Tacrolimo | 71,4% | 100,0% | 100,0% | 0,0001* | |
Uso Micofenolato | 97,6% | 93,3% | 100,0% | NS | |
Uso de prednisona | 100,0% | 100,0% | 100,0% | NS | |
Uso Sirolimus | 0% | 0% | 0% | NS | |
Uso de azatioprina | 2,4% | 6,7% | 0% | NS | |
Uso de Ciclosporina | 2,4% | 0% | 0% | NS | |
PO de Alta (dias) | 13,57 ± 18,4 | 11,33 ± 6,5 | 11,28 ± 5 | NS | |
Creatinina da Alta (mg/dl) | 1,59 ± 0,7 | 1,28 ± 0,5 | 1,22 ± 0,4 | NS | |
Creatinina 6 meses (mg/dl) | 1,36 ± 0,5 | 1,34 ± 0,7 | 1,33 ± 0,5 | NS | |
Idêntico | 24,4% | 0% | 11,1% | ||
HLA | Haploidêntico | 73,2% | 30,0% | 27,8% | 0,0001* |
Distinto | 2,4% | 70,0% | 61,1% | ||
Rejeição Aguda | 42,9% | 20,0% | 16,7% | 0,044* | |
Banff I A+B | 38,9% | 80% | 33,3% | ||
Banff II A | 44,4% | 20% | 0 | 0,059* | |
Classificação | Banff III | 0 | 0 | 33,3% | |
Mediada por Anticorpo | 5,6% | 0 | 33,3% | ||
Mista | 11,1% | 0 | 0 | ||
C4d | 29,4% | 0 | 66,7% | NS | |
Morte | 4,8% | 0% | 0% | NS | |
Perda do Enxerto | 2,4% | 3,3% | 0% | NS |
HAS: Hipertensão arterial sistêmica; DM: Diabetes; GNC: Glomerulonefrite crônica;
*Qui-quadrado;
+ANOVA;
#Kruskal-Wallis.
O tempo de alta foi de 13,5 ± 18,4 dias no grupo sem indução contra 11,3 ± 6,5 dias no grupo de basiliximab e 11,28 ± 5 dias no grupo timoglobulina, p = NS. A creatinina de alta e a creatinina de 6 meses foi, respectivamente, de 1,59 ± 0,7 e 1,36 ± 0,5 mg/dl no grupo sem indução; 1,28 ± 0,5 e 1,34 ± 0,7 mg/dl no grupo basiliximab e 1,22 ± 0,4 e 1,33 ± 0,5 mg/dl no grupo timoglobulina, p = NS. O grupo sem indução teve maior percentagem de doadores vivos idênticos (24,4%) e haploidênticos (73,2%) em comparação ao grupo basiliximab e timoglobulina, p = 0,0001. A percentagem de doadores distintos foi maior nos grupos basiliximab (70%) e timoglobulina (61,1%) em comparação ao grupo sem indução, p = 0,0001 (Tabela 1). A ocorrência de rejeição aguda comprovada por biópsia foi maior no grupo sem indução (42,9%) em comparação aos grupos basiliximab (20%) e timoglobulina (16,7%), p = 0,04. Menor taxa de rejeição foi encontrada no grupo timoglobulina (16,7%) em relação ao grupo basiliximab (20%), p = 0,044.
A divisão das rejeições por compatibilidade do sistema HLA mostra que nos idênticos ela foi de 10% no grupo sem indução de 0% no grupo timo, p = NS. Nenhum paciente idêntico foi induzido com basiliximab e apenas dois casos foram induzidos com timoglobulina devido painel de reatividade maior que 30%. No grupo haploidêntico, a percentagem de rejeição foi maior no grupo sem indução (53,3%) contra 11,1% no basiliximab e zero no grupo timoglobulina, p = 0,013. A rejeição no grupo distinto foi de 23,8% com basiliximab e 27,3% no grupo timoglobulina, p = NS (Tabela 2). Quanto à gravidade das rejeições, a maioria dos casos foram rejeições mediadas por células T (Banff IA e IB) nos três grupos, sendo que houve tendência a maior gravidade no grupo timoglobulina (33% de rejeição mediada por anticorpos, p = 0,059 (Tabela 1).
Tabela 2 Divisão das rejeições agudas por compatibilidade do sistema HLA (haploidêntico, distinto e idêntico) nos grupos sem indução, basiliximab e timoglobulina
Indução | p | |||
---|---|---|---|---|
Rejeição por | Nada | Basiliximab | Timo | |
HLA | (A) | (B) | (C) | |
Idêntico | 10% | 0% | 0% | NS |
Haploidêntico | 53,3% | 11,1% | 0% | 0,013* |
Distinto | 0% | 23,8% | 27,3% | NS |
*Qui-quadrado.
A análise multivariada de regressão logística mostrou que o uso de terapia de indução (basiliximab ou timoglobulina) associou-se de forma independente à proteção para rejeição com OR = 0,32 (IC: 0,11-0,93, p = 0,036).
A ocorrência de morte e perda do enxerto não foi diferente entre os grupos (Tabela 1).
A sobrevida do paciente em 24 meses foi de 92,8% no grupo sem indução, de 100% no grupo basiliximab e 100% no grupo timo (p = 0,35). A sobrevida do enxerto em 24 meses foi de 90,2% no grupo sem indução, de 85,7% no grupo basiliximab e 100% no grupo timo, p = 0,59.
Os resultados mostram que o grupo de doadores vivos que não recebeu terapia de indução era constituído majoritariamente de haploidênticos com baixo painel. A grande maioria destes receptores haploidênticos (> 90%) estava em uso da combinação de tacrolimo, micofenolato e prednisona. Este grupo constituía-se de receptores de moderado risco, em que a terapia de indução não é considerada obrigatória segundo diretrizes nacionais. 5 Contrariamente a esta recomendação, o KDIGO recomenda o uso de terapia de indução com bloqueadores do receptor da interleucina 2 nesta população.1 A força para esta recomendação, entretanto, não é forte, pois se baseia em ensaios clínicos pequenos e retrospectivos. 6 Nossos resultados apontam um elevado grau de rejeição nesta população (53,3% nos receptores haploidênticos), porém, sendo a maioria dos casos constituída de rejeições leves (mediadas por células T - Banff IA e IB). Parte desta explicação pode basear-se na postura de biópsia renal mais agressiva entre o quarto e quinto pós-operatório nos casos em que não houve normalização da função renal, aumentando, assim, a sensibilidade da detecção de rejeição. Não houve impacto sobre a função renal aos 6 meses e na sobrevida do enxerto ou paciente ao fim de um ano em comparação aos grupos nos quais foi feita terapia de indução.
Quanto aos doadores vivos idênticos, este grupo fez uso exclusivo da combinação de micofenolato e prednisona sem inibidor da via da calcineurina e a grande maioria não recebeu terapia de indução. Este esquema ainda não é consenso, sendo que alguns trabalhos apontam superioridade da associação com inibidores da via da calcineurina,7,8 porém, outros trabalhos sugerem que ele pode ser dispensado.9-11 No presente estudo, este grupo apresentou baixas taxas de rejeição aguda (10%), apesar da baixa utilização de terapia de indução e da não utilização de inibidores da via da calcineurina por protocolo do serviço.
No grupo de pacientes que utilizaram terapia de indução com basiliximab, a maioria (70%) era de receptores distintos e utilizaram da combinação de tacrolimo, micofenolato e prednisona. A taxa de rejeição aguda foi de 20% condizente com dados da literatura mundial.12 Todas as rejeições deste grupo foram mediadas por células T (Banff IA e IB) e não houve nenhum caso de rejeição mediada por anticorpos.
No grupo de pacientes que receberam timoglobulina a maioria era de receptores distintos (61%) e com painel acima de 30% (média do painel de 23%). Todos os pacientes deste grupo estavam utilizando a combinação de tacrolimo, micofenolato e prednisona. Apesar do maior risco imunológico, este grupo apresentou a menor taxa de rejeição (16,7%) dentre os três analisados. Estas taxas de rejeição aguda estão de acordo com o estudo TAILOR de indução com timoglobulina em doadores vivos.2 Entretanto, analisando a gravidade das rejeições, este grupo apresentou tendência a maior gravidade dos quadros de rejeição, com 33% de casos de rejeições mediada por anticorpos (p = 0,06), denotando maior risco imunológico desta população.
Como limitações deste estudo, destacamos o fato de ser um a coorte retrospectiva, no qual os grupos não são distribuídos de forma homogênea nas características basais, resultando em possíveis desbalanços quanto ao risco imunológico e outros fatores de risco para rejeição não analisados, tais como incidência de citomegalovírus.13,14 A análise multivariada pode em parte tentar corrigir estes desbalanços.13 No presente estudo, a regressão logística mostrou menor risco de rejeição com o uso de terapia de indução frente a não indução. O número reduzido de casos foi outra limitação, principalmente pelo reduzido número de casos no grupo timoglobulina e pode também explicar a ausência de diferenças na sobrevida do paciente e do enxerto. Apesar destas limitações, pudemos claramente mostrar inferioridade do não uso de terapia de indução numa população de doadores vivos.
O uso de terapia de indução seja com inibidor do receptor do receptor da interleucina 2 quanto com timoglobulina resultou em menores taxas de rejeição em transplante com doador vivo quando comparados à não utilização de terapia de indução. Os pacientes haploidênticos sem indução foram os que apresentaram maiores taxas de rejeição aguda.
A população de doadores vivos idênticos apresentou as menores taxas de rejeição, mesmo sem utilizar o inibidor da via da calcineurina e de terapia de indução.
O grupo de pacientes induzidos com timoglobulina apresentava maior risco imunológico (painel e doador distinto) com menores taxas de rejeição, apesar da maior gravidade dos casos de rejeição.
O uso de terapia de indução (basiliximab ou timoglobulina) associou-se de forma independente a um menor risco de rejeição em doadores vivos.