versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.4 Rio de Janeiro abr. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017224.27002016
O acesso universal aos serviços de saúde, além de ser uma garantia constitucional, é uma bandeira de luta dos movimentos sociais e se constituiu em um dos direitos fundamentais de cidadania1. O acesso não equivale à simples utilização do serviço de saúde, mas também à oportunidade de dispor dos serviços em circunstâncias que permitam o uso apropriado dos mesmos, no tempo adequado, para o alcance dos melhores resultados de saúde2,3.
O processo de descentralização e regionalização do sistema de Saúde do país é complexo devido a diversas realidades e desigualdades regionais e também em razão do envolvimento de múltiplos agentes de diferentes instâncias no que diz respeito à acessibilidade aos seus serviços4. Essa questão envolve o fato de que no sistema de saúde brasileiro – ao contrário do sistema inglês, nacionalizado, e do canadense, provincial – optou-se pela descentralização em nível municipal, delegando aos municípios a responsabilidade pela organização e gestão5.
Historicamente, a descentralização não assumiu papel prioritário de acesso universal aos serviços de saúde, mas sim um caráter estratégico de intervenção na economia, com o projeto de enxugamento do Estado e estabilidade econômica4. Ou seja, representa uma estratégia de deslocamento da responsabilidade sobre o gasto social para as esferas subnacionais, que nem sempre têm condições de assumir tais encargos6.
Desta forma, a descentralização do sistema de saúde serviu mais ao propósito de retração da União e de contenção de despesas do que de sua expansão, como gostariam seus idealizadores6. Isso traduz o alto peso sobre os municípios que, além da Atenção Básica (AB), acabam tendo que garantir acesso a serviços de Média Complexidade (MC).
A atenção especializada é marcada por diferentes gargalos, principalmente no que se refere ao acesso. Segundo o Ministério da Saúde (MS), a dificuldade para a garantia de acesso a serviços especializados decorre do modelo de atenção adotado, da resolutividade da AB e também do dimensionamento e organização da oferta dos serviços7.
Nesse nível de atenção verifica-se fragmentação e desorganização dos serviços de saúde, devido à existência de vários sistemas locais isolados, onde os espaços decisórios dos gestores são permeados por interesses locais, em detrimento de ações pautadas pela universalidade do Sistema8. Associado a isso, os gestores, especialmente os de municípios pequenos, carecem de maior representatividade nas instâncias regionais de decisão9. Existe um descompasso no processo de descentralização do Sistema, apesar da expansão da oferta e do ganho de autonomia por parte dos municípios nos últimos anos4.
Apesar do crescente interesse sobre a acessibilidade à atenção especializada, a realidade dos municípios pequenos é pouco descrita na literatura. Conhecer o panorama desse tipo de assistência, no que concerne ao acesso aos serviços de MC, especificamente às consultas especializadas, possibilitou lançar o olhar para esta questão, na tentativa de responder à seguinte indagação: que dimensão tem o problema da dificuldade de acesso dos usuários às ações e serviços da MC em municípios de pequeno porte (MPP)?
A compreensão desse contexto contribuirá para a proposição de estratégias para o enfrentamento da questão da garantia de acesso a esses procedimentos, além de auxiliar gestores, principalmente estaduais e municipais, na elaboração do Contrato Organizativo da Ação Pública (COAP), importante instrumento para a organização da gestão nas Regiões de Saúde. Desta forma, este estudo teve como objetivo analisar a oferta de consultas especializadas pelo SUS e as especialidades de maior dificuldade de acesso em MPP.
Realizou-se estudo de caso único com várias unidades de análise, com o objetivo de identificar áreas/especialidades de maior dificuldade para a garantia de acesso dos usuários a serviços de MC.
O estudo de caso é caracterizado como uma investigação empírica sobre um fenômeno contemporâneo complexo, em seu contexto, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos10, o que se aplica ao objeto deste estudo.
O caso estudado é a 18ª Regional de Saúde (RS), localizada na região norte do Estado do Paraná. As unidades de análise selecionadas foram os 18 municípios com até 20.000 habitantes, considerados de pequeno porte11.
Os dados foram obtidos por meio de entrevista com roteiro estruturado com os gestores e membros da equipe de gestão responsáveis pela regulação de procedimentos especializados, sendo preenchido um instrumento para cada um dos 18 municípios estudados. O roteiro abordava: oferta mensal de vagas de consultas pelo consórcio, se considerava a oferta suficiente ou insuficiente; se especialidades não ofertadas pelo Consórcio eram oferecidas pelo município, neste caso como se dava o custeio e qual o critério utilizado para garantir o acesso ao usuário.
Também foi realizada entrevista semiestruturada com a diretora administrativa do Consórcio Intermunicipal de Saúde (CIS) da região, cujo roteiro enfocou os seguintes aspectos: se o número de vagas ofertadas pelo CIS para os municípios era considerado suficiente para o atendimento da demanda, qual o critério/parâmetro utilizado para a distribuição de vagas e sua opinião sobre o que ocasiona o problema da falta de vagas para consultas especializadas.
Esse instrumento para obtenção dos dados dos gestores foi validado em estudo piloto realizado em um município da região não integrante deste estudo de caso, no mês de setembro de 2014. As entrevistas foram realizadas no período de janeiro a abril de 2015.
As 21 especialidades analisadas foram selecionadas a partir da Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES)12, e do COAP da 18ª Regional de Saúde, ainda em processo de elaboração13. São elas: Angiologia, Cardiologia, Dermatologia, Gastroenterologia, Infectologia, Neurologia, Neuro-Pediatria, Nefrologia, Obstetrícia de Alto Risco, Reumatologia, Ortopedia, Mastologia, Oftalmologia, Psiquiatria, Endocrinologia, Nutrição, Urologia, Otorrinolaringologia, Geriatria, Proctologia e Vascular.
A oferta de consultas especializadas foi categorizada, a partir das informações dos gestores, em uma das quatro possibilidades: Cota Suficiente: as vagas de consultas ofertadas mensalmente pelo Consórcio Intermunicipal do Norte Pioneiro (CISNOP) são suficientes para suprir a demanda mensal do município. Cota Insuficiente: as vagas de consultas ofertadas mensalmente pelo CISNOP não são suficientes para suprir a demanda mensal do município e os mesmos atuam para garantir acesso aos usuários. Cota Inexistente: não existe oferta de vaga de consulta de determinada especialidade pelo CISNOP na programação mensal habitual de consultas especializadas, fazendo com que os municípios atuem de outras maneiras para garantir o acesso. Vazio Assistencial: não existe nenhuma oferta de vaga de consulta pelo CISNOP, nem os municípios conseguem, por outros meios, garantir acesso dos usuários a essas especialidades.
Os dados obtidos foram organizados inicialmente para cada unidade de análise separadamente para que se pudesse obter um panorama geral da situação de cada município em particular. A seguir, os dados dos municípios foram agrupados em um banco de dados e transportados para o programa Excel®, onde foram geradas tabelas que apresentam os resultados considerando as frequências relativa e absoluta das respostas, bem como a média ponderal dos resultados analisados.
Também foram acessados dados secundários: populacionais, de ações e serviços de saúde ofertados pelo SUS e sobre financiamento público da saúde, obtidos de bases de dados nacionais (CNES, IBGE, SIOPS). Essas informações foram utilizadas para contextualizar o caso em estudo e subsidiaram a análise dos dados primários.
O presente trabalho integra uma pesquisa maior denominada “A gestão do trabalho no SUS em Municípios de Pequeno Porte do Paraná a partir do olhar da Equipe Gestora”, apoiada pelo PPSUS/2013 (Fundação Araucária-PR / SESA-PR / MS-DECIT/CNPq) e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade em que estão inseridos os pesquisadores.
Além da aprovação do CEP, o projeto foi apresentado na reunião da Comissão Intergestores Regional (CIR), no mês de novembro de 2014, tendo sua execução aprovada por esse colegiado. A realização da entrevista nos municípios foi precedida de explicação sobre os objetivos e as características da pesquisa, esclarecimento de dúvidas e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos sujeitos pesquisados.
A 18ª RS conta com 404 estabelecimentos de saúde, sendo 126 de administração direta do governo, 42 privados sem fins lucrativos e 236 com fins lucrativos14. O município sede concentra a maioria dos estabelecimentos de saúde, especialmente os serviços especializados, integrantes da MC do SUS, com destaque para o Hospital Regional e o Centro Regional de Especialidades13. A divisão dos procedimentos realizados pelo SUS, em relação aos prestadores públicos e privados, está apresentada na Tabela 1.
Tabela 1 Distribuição dos procedimentos ambulatoriais realizados pelo SUS, por tipo de prestador, 18ª Regional de Saúde, 2013.
Procedimentos | Público | Privado | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | N | % | |
Média Complexidade | 222.433 | 20,7 | 854.180 | 79,3 | 1.076.613 | 100,0 |
Alta Complexidade | 1.261.097 | 96,6 | 43.895 | 3,4 | 1.304.972 | 100,0 |
Atenção Básica | 3.618.602 | 100,0 | - | - | 3.618.602 | 100,0 |
Outros | - | - | 219.890 | 100,0 | 219.890 | 100,0 |
Total | 5.102.132 | 82,1 | 1.117.965 | 17,9 | 6.220.097 | 100,0 |
Fonte: Região e Redes, 2013.
Analisando os dados apresentados na tabela, verifica-se, no que diz respeito à produção ambulatorial, que os procedimentos de MC são realizados, predominantemente, pelo setor privado (Figura 1).
Fonte: Região e Redes, 2013.
Figura 1 Comparativo de Produção Ambulatorial por Prestador, 18ª Regional de Saúde, 2013.
Em relação à organização da assistência à saúde, todos os 18 MPP aderiram à Estratégia Saúde da Família, cuja cobertura populacional nestas localidades é de 85,4%15. Além disso, todos os municípios possuem ao menos uma unidade básica de saúde e 14 deles, hospital16.
Os 21 municípios que compõem a 18ª RS constituem o Consórcio Intermunicipal de Saúde do Norte do Paraná (CISNOP), responsável pela oferta da maioria das especialidades médicas disponibilizadas pelo SUS na região.
As vagas mensais de consultas especializadas são disponibilizadas aos municípios de acordo com o percentual da população de cada um, em relação à população total da região. A Tabela 2 apresenta a quantidade de consultas especializadas ofertadas aos MPP no mês de março/2015, e qual o índice per capita a que esse valor corresponde.
Tabela 2 Oferta mensal de Consultas Especializadas pelo CISNOP aos 18 MPP da 18ª Regional de Saúde do Estado do Paraná, março de 2015.
No. MPP | População dos MPP | No. Mensal de Consultas Ofertadas | % de Consultas para MPP em relação ao total ofertado | No. Médio de consulta/hab./ano |
---|---|---|---|---|
18 MPP | 128.285 | 2.895 | 55,79 | 0,27 |
Fonte: Municípios de Pequeno Porte da 18ª Regional de Saúde do Paraná e CISNOP, 2015.
A população total da 18a RS é de 230.949 habitantes17 e a dos MPP é de 128.285, o que representa 55% da população da região. Segundo o critério utilizado para distribuição de vagas, 55,79% das disponíveis por mês no CIS, foram disponibilizadas para os municípios de até 20.000 habitantes, perfazendo uma média de 0,27 consulta/habitante/ano.
Ao questionar os gestores municipais sobre a oferta de vagas pelo Consórcio e sua suficiência para atender as necessidades/demanda de seus munícipes, verificou-se que mais da metade das especialidades pesquisadas não as atendiam em sua totalidade. Cabe salientar que, embora constem na RENASES e no COAP, existem especialidades pesquisadas que não estavam sendo ofertadas pelo Consórcio. São elas: Neurologia, Neuro-Pediatria, Endocrinologia, Nutrição, Geriatria, Proctologia e Vascular.
Essa situação, segundo os gestores dos MPP, faz com que eles, mesmo não tendo pactuado sua atuação na MC, assumam gastos para a provisão de serviços nessa área, como, por exemplo: o pagamento de mensalidade para a manutenção do Consórcio; compra e contratualizações complementares para a realização de consultas e de serviços de apoio diagnóstico e terapêutico (SADT), elevando assim o percentual de gastos do orçamento municipal com a área da saúde.
A Tabela 3 apresenta a classificação das especialidades segundo a caracterização proposta em: Oferta Suficiente, Insuficiente, Inexistente e Vazio Assistencial. Os números que são apresentados nas linhas representam o número de municípios que seus gestores consideravam a classificação das especialidades dentro de cada categoria.
Tabela 3 Caracterização das Especialidades conforme a indicação das Equipes Gestoras dos MPP, 18ª Regional de Saúde do Paraná, 2015.
Especialidade | Cota Suficiente | Cota Insuficiente | Cota Inexistente | Vazio Assistencial |
---|---|---|---|---|
Angiologia | 12 | 6 | 0 | 0 |
Cardiologia | 8 | 10 | 0 | 0 |
Dermatologia | 8 | 10 | 0 | 0 |
Gastroenterologia | 8 | 10 | 0 | 0 |
Infectologia | 15 | 3 | 0 | 0 |
Neurologia | 0 | 0 | 15 | 3 |
Neuro-Pediatria | 0 | 0 | 18 | 0 |
Nefrologia | 9 | 9 | 0 | 0 |
Obst. Alto Risco | 16 | 1 | 1 | 0 |
Reumatologia | 3 | 15 | 0 | 0 |
Ortopedia | 0 | 18 | 0 | 0 |
Mastologia | 11 | 6 | 1 | 0 |
Oftalmologia | 5 | 13 | 0 | 0 |
Psiquiatria | 4 | 14 | 0 | 0 |
Endocrinologia | 0 | 0 | 4 | 14 |
Nutrição | 0 | 0 | 11 | 7 |
Urologia | 2 | 16 | 0 | 0 |
Otorrinolaringologia | 5 | 13 | 0 | 0 |
Geriatria | 0 | 0 | 2 | 16 |
Proctologia | 0 | 0 | 1 | 17 |
Vascular | 0 | 0 | 0 | 18 |
Fonte: Secretarias Municipais de Saúde dos MPP, janeiro a abril, 2015.
Das 21 especialidades analisadas, o CIS oferecia vagas para 14. Para as outras sete – Vascular, Proctologia, Geriatria, Nutrição, Endocrinologia, Neurologia e Neuro-Pediatria – não havia oferta, sendo as mesmas consideradas como cota inexistente ou vazio assistencial pelos municípios. Das 14 especialidades oferecidas mensalmente, para nove destas a oferta foi considerada insuficiente pela maioria dos municípios (Cardiologia, Dermatologia, Gastroenterologia, Reumatologia, Ortopedia, Oftalmologia, Psiquiatria, Urologia e Otorrinolaringologia). A partir dos dados apresentados na Tabela 3 é possível detectar quais são as especialidades de maior dificuldade de acesso a consultas na 18ª Regional de Saúde do estado do Paraná (Figura 2).
Fonte: Secretarias Municipais de Saúde dos MPP, janeiro a abril, 2015.
Figura 2 Especialidades com maior dificuldade de acesso, segundo a classificação apontada pelas equipes gestoras de MPP da 18ª Regional de Saúde do Estado do Paraná, 2015.
As especialidades apontadas pelos gestores como de maior dificuldade de acesso para os MPP da 18ª RS foram, Vascular, Proctologia, Geriatria, Endocrinologia e Neurologia, por não serem ofertadas pelo CISNOP. As especialidades de Ortopedia, Neuro-pediatria, Urologia, Reumatologia, Oftalmologia e Otorrinolaringologia, apesar de serem regularmente ofertadas pelo consórcio, foram consideradas pela maioria dos municípios como insuficientes, o que gera grande demanda reprimida por esse tipo de atendimento.
Em entrevista, a direção do CIS admitiu que as vagas mensais para consultas, de maneira geral, é insuficiente para atender à demanda por esse tipo de atendimento. Entretanto, não atribui essa insuficiência à quantidade de consultas ofertadas, mas a outros fatores, principalmente à falta de resolutividade da Atenção Básica nos municípios e à falta de articulação entre os níveis de atenção.
O COAP, instrumento previsto para enfrentar esse problema de maneira interfederativa, está, segundo os gestores, em processo de elaboração na 18ª Regional de Saúde, porém encontra-se incipiente, não havendo data prevista para ser firmado entre os gestores e publicado. E, ainda, as negociações não evoluíram e as pactuações necessárias precisam ser revistas. Afirmam que a participação da esfera estadual na destinação efetiva dos recursos precisa ser maior e que a CIR necessita de maior poder de decisão.
A oferta insuficiente ou inexistente de consultas em muitas especialidades faz com que os gestores encontrem muita dificuldade para garantir o acesso ao atendimento especializado aos seus munícipes. Quando existe essa dificuldade, as necessidades de saúde dos usuários ou as demandas por serviços de saúde não são atendidas a contento, o que se verificou nos municípios da região estudada.
Este problema não é exclusivo de MPP, nem do SUS. Estudo realizado em países pertencentes à União Europeia, em 2008, aponta que a espera por cuidados especializados e por cirurgias eletivas é um dos principais problemas de saúde pública e que interfere diretamente no estado de saúde da população. Afirma ainda que, no Reino Unido, embora tenham sido realizados investimentos e incentivos financeiros nos últimos anos, o problema persiste em algumas áreas18.
O acesso aos serviços de saúde está ligado aos princípios de equidade, integralidade e universalidade do SUS e estabelece ações ligadas à justiça social. Garantir acesso aos serviços de saúde é garantir que o usuário adentre ao sistema de saúde em condições para que tenha suas demandas e necessidades satisfeitas. A disponibilidade dos serviços é influenciada por fatores como: estrutura, tipo, quantidade, recursos, capacidade de pagamento, continuidade e acessibilidade2,3,19.
As possíveis causas do problema do acesso a consultas especializadas são a quantidade de vagas abaixo do normatizado, número de médicos insuficientes, dificuldade de fixação dos médicos no interior, alta dependência do setor privado, redução da participação da União e do estado na oferta e no financiamento de serviços.
Em relação à oferta de consultas especializadas, constata-se que a disponibilidade mensal de vagas pelo CIS é inferior ao normatizado pela portaria nº 1101/2002. O parâmetro de distribuição da portaria é de duas a três consultas/ano para cada habitante, em que as especializadas devem corresponder a 22% do total das programadas20.
Se fossem aplicados os parâmetros preconizados pela Portaria, utilizando-se uma média de 2,5 consultas/habitante/ano, seria recomendada a oferta de 0,55 consultas especializadas/habitante/ano e, desta forma, deveriam ser disponibilizadas aos municípios 5.879 consultas/mês. Assim, pode-se afirmar que as vagas de consultas especializadas que estão sendo oficialmente disponibilizadas aos municípios correspondem à metade do que está normatizado (0,27 consulta/habitante/ano). Esse fato pode justificar a situação de insuficiência/inexistência de vagas de consultas de muitas especialidades na região, o que, de certa forma, contraria a afirmação da direção do Consórcio sobre a causa desse problema.
Ao se analisar o contexto da região, segundo os dados levantados a respeito da capacidade instalada, oferta de serviços, gastos em saúde e orçamento, percebe-se que a situação da garantia de acesso aos serviços de MC vai além dos limites relacionados à articulação da AB com os demais níveis de atenção, e da suposta baixa resolutividade.
Huber et al.18 afirmam que para a diminuição da demanda reprimida por atendimentos eletivos, é necessário que se proporcione acesso equânime aos serviços de saúde. Isso inclui a política de se proporcionar o acesso a todo cidadão a atendimento básico de alta qualidade e estabelecimento de um tempo limite para o acesso à média complexidade, caso seja necessário.
O MS tem proposto algumas estratégias para a resolução dos problemas relacionados ao acesso aos serviços de saúde, como, por exemplo: a Estratégia Saúde da Família (modelo de atenção proposto para a reorganização da AB), a implantação de Redes de Atenção, de Protocolos Clínicos para AB, da Telessaúde e Apoio Matricial; as quais também poderão ter impacto sobre a resolutividade da AB, aumentando a capacidade clínica das equipes e a articulação entre os níveis de atenção7.
Por outro lado, observa-se que na tentativa de garantia de acesso à atenção especializada, os gestores municipais têm assumido o desenvolvimento de ações da MC que extrapolam aquelas pactuadas pelos mesmos, quando do termo de compromisso e gestão do Pacto pela Saúde21. Em consequência disto, esses municípios têm investido mais do que preconiza a Lei 141/2012 para os gastos com saúde. Em média, 23,9% dos orçamentos municipais dos MPP estudados estão sendo direcionados para o setor22. No ano de 2014, a média de gastos com recursos próprios dos municípios para as despesas em saúde, em relação ao gasto total deste segmento, correspondeu a 69,7%23, variando entre 57,2% e 81,8%. O alto percentual de recursos do orçamento municipal investidos em saúde demonstra o grande peso de responsabilização que recai sobre os municípios.
A atenção de MC é mais dispendiosa para os municípios, em relação à AB. Além disso, existe grande demanda reprimida por serviços especializados com a qual os gestores dos municípios têm que conviver rotineiramente, sem que consigam respondê-la satisfatoriamente. Essa questão concentra uma parcela considerável dos recursos públicos em saúde24.
Pelo exposto, verifica-se que o ganho de autonomia dos municípios também foi acompanhado de aumento da responsabilidade pelo financiamento das ações e serviços de saúde, devido à gradativa diminuição da participação dos governos estaduais e da União na gestão do Sistema. Nos últimos sete anos, as despesas públicas do Governo Federal com saúde cresceram apenas 40,4%, enquanto estados e municípios aumentaram suas despesas públicas com saúde em 49,4% e 71,6%, respectivamente25.
Essas informações corroboram o que afirmam Teixeira et al.26, que apesar de os municípios terem sido beneficiados pela Constituição de 1988, com o processo de descentralização, eles ainda continuam apresentando uma grande vulnerabilidade fiscal. Se por um lado, aumentaram as suas fontes de recursos, por outro, o processo de descentralização das funções públicas tem exercido forte impacto nas finanças desses entes federativos.
Além da questão de financiamento, outra que afeta a garantia de acesso a consultas especializadas é a descontinuidade do serviço dentro do Consórcio, podendo estar relacionada à ausência – por motivo de férias, afastamento ou exoneração –, e à quantidade insuficiente de profissionais médicos, além da dificuldade de fixação desses profissionais no interior.
Ao se analisar o índice de médicos por mil habitantes da 18ª Regional no ano de 201314 (0,93), em relação aos índices do estado do Paraná (1,96) e do Brasil (2,11), para o ano de 201527, percebe-se que o índice da 18ª RS está muito abaixo do apresentado pelo estado e pelo país. A Região Sul é considerada, juntamente com o Centro-Oeste, a de melhor equilíbrio entre a proporção de médicos e a de habitantes27, o que leva a inferir que a situação de MPP de outras regiões do país, seja ainda pior.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) não recomendam nem estabelecem taxas “ideais” de número de médicos por habitante, porque o estabelecimento desse índice depende de fatores regionais, socioeconômicos, culturais e epidemiológicos27. Deve-se considerar o tipo de médico, a especialidade, a facilidade de acesso da população, os recursos existentes, as distâncias a percorrer, a tecnologia disponível e o tipo de população que se refere quando se estabelece esse tipo de índice28. Entretanto, é evidente que o número insuficiente de médicos reflete diretamente na disponibilidade de assistência à saúde, em todos os níveis de atenção, e essa situação se agrava por falta de políticas públicas para a resolução do problema29.
Segundo Ney e Rodrigues30, existem fatores críticos para a fixação de médicos no interior do país, principalmente os médicos voltados para a atenção básica, vinculados ao SUS, tais como: políticas municipais de recursos humanos inadequadas, precariedade dos vínculos empregatícios, sobrecarga de trabalho, alta rotatividade dos profissionais, insatisfação com o ambiente e as condições de trabalho e ausência de planos de cargos e salários nos municípios.
As dificuldades encontradas pelos gestores em encontrar profissionais médicos são parcialmente determinadas pela oferta insuficiente de formação para tais especialidades31. Além disso, segundo o relatório Demografia Médica, de 2015, somente 5% dos médicos especialistas atuam no SUS. É uma escassez que certamente contribui para as longas esperas em consultas, exames e cirurgias eletivas27.
Em estudo realizado em 2005 abordando os CIS do Estado do Paraná, levantou-se que as principais ofertas de especialidades aconteciam para as áreas de ortopedia, cardiologia, oftalmologia e neurologia. Segundo 64,8% dos diretores dos CIS entrevistados neste estudo, seriam necessários mais médicos das especialidades já existentes, e também seria preciso contratar médicos de especialidades não ofertadas, para compor adequadamente o quadro de profissionais32.
A procura por vagas em residência médica tem seguido a lógica do mercado, ou seja, as especialidades mais procuradas são as que apresentam melhor retorno financeiro. Os profissionais também têm procurado por menor carga de trabalho. As especialidades de dermatologia, otorrinolaringologia e oftalmologia têm a maior procura31-33.
Constatou-se que o número de profissionais das especialidades com maior dificuldade de acesso pesquisadas é pequeno em relação às demais, e sua representatividade no total de especialistas é menor que 5%27. Isso faz com que os municípios tenham que depender, em alguma medida, do setor privado, para suprir a demanda quando o número de especialistas é reduzido.
A situação é ainda mais grave porque “A forte atuação de especialistas em consultórios particulares, em contraste com a baixa presença em serviços ambulatoriais do SUS, é um grande obstáculo à ampliação, na rede pública, da oferta de assistência médica especializada”27. Assim, a relação com o setor privado na saúde, que é anterior ao SUS, tem ganhado força e estabilidade, principalmente nos níveis de atenção onde há a possibilidade de lucro, como no caso da atenção especializada34.
A questão da disponibilidade de profissionais médicos atuando pelo SUS piora ainda mais a situação dos MPP, tanto na questão de quantidade de consultas, quanto na de manutenção dos serviços especializados, situação esta que, teoricamente, poderia ser superada com a reunião de municípios nos CIS.
Os CIS podem ser considerados ferramentas importantes na garantia de integralidade e universalidade da assistência à saúde. Surgiram na tentativa de superar as dificuldades de garantia de acesso aos serviços de saúde, principalmente para municípios de pequeno porte, com o objetivo de que se consolide efetivamente a regionalização da gestão do SUS. Entretanto, a concepção dos CIS como ferramenta de gestão não enfrenta questões relacionadas a um contexto mais amplo “em que as políticas públicas são influenciadas pelo modelo neoliberal instalado, que orienta o sistema e fragiliza o provimento de serviços assim como o controle do Estado no campo da Saúde”35. Tais fatos, levantados em um estudo sobre a efetividade dos CIS no Estado de Santa Catarina, em 2012, são corroborados pelos dados levantados na presente pesquisa.
Embora os municípios, por meio do pagamento de mensalidade ao CIS e dos altos investimentos em saúde, contribuam para a viabilização dos serviços, ficam dependentes da possibilidade de oferta de especialidades, tendo poder de controle limitado para as ações realizadas. Parece que o poder de decisão dos municípios na Comissão Intergestores Regional (CIR) tem sido inferior ao da Secretaria Estadual de Saúde (SESA). Esse fato é confirmado por estudo realizado na região norte do Paraná9, em que a CIR se configura mais em espaço para repasse de informações do que decisório no que diz respeito às políticas de saúde da região.
As principais consequências dessa situação são: alta demanda reprimida por consultas especializadas (gerando, consequentemente, um tempo longo de espera entre a consulta, o diagnóstico e a intervenção nos agravos), alta sobrecarga de responsabilidade e atribuições para os municípios (tanto na garantia de acesso aos serviços, para além da AB, quanto no financiamento). Além disso, existem discrepâncias entre a situação de municípios maiores – com número superior de estabelecimentos de saúde e com mais densidade tecnológica, maior capacidade de financiamento e de gestão do sistema – e a de municípios menores – que aliam baixa capacidade instalada e sobrecarga fiscal na gestão do sistema36. Enquanto os municípios de pequeno porte (MPP), com população de até 20.000 habitantes, arcaram com até 80% das despesas em saúde no ano de 2014, um grande porte da macroregião (com população acima de 500.000 habitantes), por exemplo, arcou com 41,42% dos gastos totais em saúde22.
Este estudo de caso sobre o acesso a serviços especializados reforça a tese de que a atenção de MC é na atualidade o gargalo do SUS.
As especialidades médicas de maior dificuldade de acesso são: Neuropediatria, Vascular, Proctologia, Geriatria, Endocrinologia e Neurologia.
Algumas características do sistema de saúde brasileiro contribuem para a dificuldade de garantia de acesso na atenção de MC no SUS, sobretudo características relativas à organização do sistema, ao financiamento em saúde, à disponibilidade de profissionais médicos e à relação com o setor privado. Na região estudada, a sobrecarga financeira assumida pelos municípios relacionada ao gasto total em saúde, a carência de profissionais especialistas e a consequente insuficiente/inexistente oferta de consultas em várias especialidades, bem como a dependência do setor privado, ficou evidente e certamente contribuem para a magnitude do problema.
Outro fator que contribui para o problema em questão é o crescente distanciamento das instâncias Federal e Estadual de suas atribuições, tanto no que diz respeito ao financiamento quanto à gestão do sistema, especialmente em relação à regionalização. Isso contribui para que o problema do acesso a serviços especializados não vislumbre uma solução a curto prazo, mesmo porque, o COAP, importante instrumento de gestão para o enfrentamento dessa questão, ainda encontra-se incipiente, sem data prevista de publicação na região.
A organização dos municípios em Consórcios Intermunicipais de Saúde não tem se mostrado uma solução eficaz para essa problemática, devido a fatores externos que influenciam sua estruturação e capacidade de oferta de serviços, tais como o modelo de atenção adotado, a dificuldade de dispor de número suficiente de profissionais médicos, capacidade de governança e poder de decisão limitado por parte dos gestores municipais.
Assim, a situação extrapola os limites estabelecidos pelo próprio Consórcio e leva, consequentemente, a que os gestores tenham que buscar outras estratégias para a resolução do problema da garantia de acesso a serviços de média complexidade.
Apesar de lançar luz ao problema, o presente estudo, não alcança sua totalidade. Serão necessários novos estudos que esclareçam quais respostas os municípios têm dado às demandas por serviços especializados, ou seja, quais estratégias têm sido adotadas pelos mesmos para a garantia de acesso aos serviços de média complexidade.