Compartilhar

Direito à cidade, direito à saúde: quais interconexões?

Direito à cidade, direito à saúde: quais interconexões?

Autores:

Glória Lúcia Alves Figueiredo,
Carlos Henrique Gomes Martins,
Jaqueline Lopes Damasceno,
Gisélia Gonçalves de Castro,
Amado Batista Mainegra,
Marco Akerman

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.12 Rio de Janeiro dez. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320172212.25202017

Direito à cidade, direito à saúde: antecedentes

Globalmente, mais pessoas vivem em áreas urbanas (54%) do que rurais. A população urbana do mundo cresceu rapidamente, desde 1950, de 746 milhões para 3,9 bilhões em 20141. O crescimento sem planejamento ameaça o desenvolvimento sustentável do espaço urbano, pois as políticas por si só não asseguram a distribuição equitativa dos benefícios da vida urbana.

Na Região das Américas, entre 43% e 78% do total de residentes urbanos vivem em favelas sem serviços públicos básicos (água e saneamento, coleta e eliminação de resíduos, transporte, energia, cuidados de saúde, educação) e nenhuma proteção contra altas incidências de doenças transmissíveis, violência e mortalidade2.

O direito à cidade foi introduzido como um título do livro pelo filósofo francês Henry Lefebvre, em 1968. Sua definição buscou enfatizar a não exclusão de nenhuma parcela da sociedade das qualidades e benefícios da vida urbana. O autor, ainda, criticou a realidade urbana interpretada apenas por questões espaciais, considerando-a reducionista e simplificada, por não considerarem os indivíduos - sujeitos atuantes no espaço social3,4.

Um número de movimentos populares, como o movimento de moradores de Abahlali base Mjondolo, na África do Sul, vivendo em condições habitacionais precárias; a Right to the City Alliance, nos Estados Unidos da América; a Recht auf Stadt, uma rede de ocupantes, inquilinos e artistas em Hamburgo, e vários movimentos na Ásia e América Latina incorporaram a ideia do direito à cidade para uma governança mais democrática, em resposta à gentrificação e aos deslocamentos urbanos5.

Entende-se que a questão “que tipo de cidade é desejada”, não pode ser divorciada do tipo de laços sociais, relação com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores estéticos. David Harvey, geógrafo britânico, avança neste debate com uma reflexão mais conectiva entre cidadãos, cidades, valores e natureza. Para ele, o direito à cidade depende do exercício de um poder coletivo de moldar o processo de urbanização, pois a liberdade de construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos tem sido um dos mais preciosos e negligenciados direitos humanos6.

O direito à saúde é parte do conjunto de direitos sociais reconhecidos e garantidos por alguns países, que têm como inspiração o dever do estado no financiamento das ações de saúde e a universalidade como direito de cidadania.

O direito à saude se entrecruza com o direito à cidade na medida em que, ao se garantir espaços urbanos saudáveis para a população, também serão reduzidas iniquidades e expandido o usufruto dos efeitos positivos da urbanização a grupos postergados e desfavorecidos.

Neste sentido, o entrecruzamento entre o direito à cidade e o direito à saúde é hipotetizado como propulsor necessário à promoção da equidade.

E, o que é equidade? A Figura 1 ilustra a diferença entre igualdade e equidade, trazendo à tona o conceito de justiça social.

Figura 1 Imagem da internet. 

John Rawls, filósofo político americano, nos indica alguns caminhos teóricos para que uma sociedade busque maior justiça social, promovendo distribuição justa de oportunidades. Sua teoria de justiça se ampara na promoção da equidade, ou como ele chama uma “posição original de equidade”, ou um ponto de partida justo para todos:

Aqueles que podem ser sustentados pela família e têm uma boa educação têm vantagens óbvias sobre os demais. Permitir que todos participem da corrida é uma coisa boa. Mas se os corredores começarem de pontos de partida diferentes, dificilmente será uma corrida justa7.

A noção de equidade admite atender desigualmente os que são desiguais, priorizando os que mais necessitam para poder alcançar a igualdade. Enfatiza-se, que a equidade deveria ser colocada como uma dimensão transversal, a ser considerada na análise de todas as intervenções propostas. Contudo, faz-se necessário explicitar um marco conceitual que permita analisar e interpretar a questão da equidade8-11.

Na construção de modelos conceituais da equidade em saúde deve estar subjacente uma questão que é a distribuição desigual dos investimentos públicos e de infraestruturas comunitárias (educação, serviços de saúde, transporte, entre outros).

A discussão das desigualdades em saúde, em geral não identifica a origem ou a natureza do problema. A produção social do processo saúde- doença, é resultado de um agregado de condições materiais que afetam a vida da população como um todo9-15.

Em busca de interconexões

Este artigo busca explorar a interconexão entre o direito à cidade e o direito à saúde, ancorado em uma revisão integrativa, norteada pela questão: Qual o conhecimento produzido sobre o direito à cidade e o direito à saúde à luz da equidade?

Esse estudo seguiu o protocolo de escolha dos descritores, busca e seleção dos dados, avaliação da elegibilidade, triagem e seleção dos artigos baseado em Mendes et al.16.

Analisaram-se evidências disponíveis na literatura indexadas no PubMed/Medline, Lilacs e SciELO. Empregaram-se os descritores: urbanização, direito à saúde e equidade.

Utilizaram-se os seguintes critérios de inclusão: produções que atendessem ao objetivo do entrecruzamento entre direito à cidade/urbanização e direito à saúde, formato de artigos e no recorte temporal de 1986 a 2016. Este marco temporal foi definido para coincidir com o período entre a primeira Conferência Global de Promoção da Saúde, realizada pela OMS, em Ottawa, e a última, realizada em 2016, em Xangai, na China.

A extração de informações na fase de avaliação e categorização dos dados levou em consideração os conceitos de Polit et al.17, pois além da síntese, buscou-se preencher as lacunas do conhecimento que relacionaram urbanização, saúde e promoção da equidade. O fluxograma (Figura 2) descreve a seleção e escolha dos artigos que foram elencados nessa revisão.

Figura 2 Fluxograma dos estudos incluídos. 

O que aprendemos com essa revisão?

Quanto à origem do material levantado, 40% (8) foram estudos da América do Norte, 15% (3), do continente europeu, 20% (4), dos países da Ásia, 15% (3) foram do Brasil e 10% (2), da Austrália. Relacionado ao idioma, 85% (17) foram em inglês, 10% (2), em português e 5% (1), em francês. Predominantemente, foram estudos qualitativos.

Os dados foram agrupados por período de publicação: 1986 a 1995; 1996 a 2005 e; 2006 a 2016. Posteriormente, segundo sua abordagem prevalente, os artigos foram classificados em três categorias temáticas: Formas de governo e direitos sociais; respostas da cidade quanto ao direito à cidade e à saúde; e hipóteses para ações a caminho da equidade. Os Quadros 1 a 3 apresentam o material de forma descritiva.

Quadro 1 Urbanizaçao e crescimento populacional, 2017. 

Categoria Temática Artigo / Referência Objetivos Principais resultados/considerações
Urbanização e crescimento populacional Tabbarah18 Analisar o desenvolvimento árabe sob os fatores da produção - terra, trabalho e capital Para a eliminação da lacuna entre os aspectos sociais e econômicos do desenvolvimento urbano, seria necessário melhorar a educação, as opções políticas, a criação de instituições que assegurem os projetos sociais e culturais, além de alternativas econômicas para a migração.
Richardson20 Abordar sobre as políticas de distribuição populacional de países em desenvolvimento Na década de 80, as políticas de distribuição populacional receberam atenção nos países em desenvolvimento, por gerar benefícios sociais, eficiência, equidade, qualidade ambiental, segurança nacional e integração. O problema estava nas estratégias mal desenhadas.
Efremov et al.21 Relacionar higiene do ambiente e a saúde da população O planejamento urbano ecológico, condições ambientais e tendências básicas (atitudes de profilaxia, criação e meio ambiente urbano livre de conflitos) potencializam o desenvolvimento da saúde.
Arias de Blois19 Discutir a demografia na educação populacional Pela demografia se compreende os fenômenos populacionais da alta fertilidade, declínio da mortalidade nos países em desenvolvimento, epidemia de Aids, interação entre população e meio ambiente, aumento dos movimentos migratórios decorrentes da urbanização e outros.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Quadro 2 Respostas da cidade quanto ao direito à cidade e à saúde, 2017. 

Categoria Temática Artigo / Referência Objetivos Principais resultados/considerações
Respostas da cidade quanto ao direito à cidade e à saúde Fraser22 Apresentar o relatório “O Estado da População Mundial de 1996” Descrições do processo de urbanização e vida urbana são fundamentais para melhorar as cidades e para alertar sobre as questões de igualdade. Os direitos humanos não devem ser obstruídos pelos valores culturais, sociais ou religiosos impostos às mulheres.
Stephens et al.23 Avaliar as desigualdades socioeconômicas, de saúde e ambiental em duas cidades A distribuição desigual das condições socioeconômicas expõe o mito da saúde urbana e revela as desigualdades nas chances de vida entre os grupos em cada ambiente e faixa etária. Ressalta a importância dos dados para os gestores.
Tarmann24 Listar as opiniões de especialistas sobre as tendências da população e eventos no século XX. Tendências: declínio da fertilidade; aumento de idosos; desenvolvimento de contraceptivos hormonais; paralisia do crescimento populacional em países economicamente ricos e estagnação da taxa de alfabetização; promoção da igualdade e equidade de gênero; capacitação das mulheres; adoção de políticas amplas de saúde e direitos reprodutivos; prevenção e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis, incluindo HIV/Aids.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Quadro 3 Espaços urbanos de exclusão e grupos em situaçao de vulnerabilidade, 2017. 

Categoria Temática Artigo / Referência Objetivos Principais resultados/considerações
Espaços urbanos de exclusão e grupos em situação de vulnerabilidade Jung25 Identificar os indicadores de qualidade social e de saúde nas comunidades da Coreia do Sul Os indicadores de qualidade social foram diferentes do índice econômico local e de saúde. As disparidades estiveram no grau de urbanização e coesão dos cidadãos. É necessário analisar as relações de governos, elucidar causas para desenvolver políticas que promovam melhoria geral e contínua da qualidade social.
Schwarz et al.26 Examinar a cobertura distributiva da arborização urbana em sete cidades dos EUA Existe correlação positiva entre arborização e renda familiar média. Contudo, as intervenções para aumentá-la deverão considerar, além da equidade distributiva, as necessidades da comunidade (desejo, capacidade de cuidar), pois os custos poderão exceder os benefícios.
Attoh27 Analisar o conceito de direito à cidade, suas tensões e contradições Os direitos da cidade representam custos, exigem compromissos e podem vir à custa de outros direitos. A questão de qual tipo de direito é certo para a cidade destrói as contradições que devem ser cumpridas por aqueles que desejam ver o potencial progressivo da cidade. Esse processo deve ser coletivo, pois a fragilidade estratégica pode ser politicamente conveniente.
Skinner, Masuda28 Explorar a geografia pessoal de saúde e seu direito à cidade, mapeando a participação de jovens aborígenes O local, a mobilidade e os limites afetam a saúde e refletem desigualdades. Os espaços urbanos produzem e são produzidos por geografias racistas que isolam, segregam e aumentam a exposição a riscos. O direito à cidade e à saúde exige o desmantelamento das mesmas atitudes e comportamentos.
Friel et al.29 Descrever como o planejamento urbano e social influencia na equidade em saúde Diferentes tipos de governança moldam agendas, políticas e programas para promover a saúde ou perpetuar a exclusão social. A distribuição desigual de recursos, associada a desigualdades em saúde, sugere que o modelo de urbanização local precisa ser reconsiderado.
Rice, Hancock30 Discutir sustentabilidade ecológica e equidade social em suas interações no processo de governança urbana Para inspirar futuras gerações, a governança urbana deverá utilizar instrumentos participativos, fóruns e redes virtuais com comitês intersetoriais, organizações da sociedade civil e grupos excluídos, para canalizar processos de criação de políticas e programas que produzam cidades mais justas, ambientes saudáveis e sustentáveis.
Rolnik31 Avaliar os obstáculos à implementação da agenda de reforma urbana O avanço da reforma urbana no Brasil necessita de uma política baseada no fortalecimento de espaços democráticos, de controle social e, fundamentalmente, de um plano de reforma política e de desenvolvimento de governança urbana para consolidação da democracia no país.
Caiaffa et al.32 Explorar as transformações das cidades contemporâneas e os impactos sobre a saúde humana Estudos da saúde no ambiente urbano requer transdisciplinaridade para desenvolver teorias, conceitos e métodos. Os impactos urbanos negativos ampliam os efeitos adversos sobre a saúde, sugerindo repensar avaliações e intervenções não originadas da saúde.
Friel et al.33 Descrever a relação das mudanças climáticas para as iniquidades da saúde urbana. Mudanças climáticas exacerbam as desigualdades sociais e da saúde urbana. Embora, as políticas, programas de saúde e o planejamento urbano ajudem, ainda há lacunas a serem resolvidas nos diferentes contextos socioeconômicos, ambiente de vida e trabalho, sugerem uma agenda de pesquisa global.
Caiaffa, Friche34 Aproximar os que produzem conhecimento acadêmico com os que elaboram as políticas públicas Reforçaram a abordagem na redução de danos no transporte terrestre urbano; investimento na saúde pública; avaliação dos programas com foco na equidade; ações envolvendo governo, sociedade e cidadãos em busca de uma vida urbana segura e saudável.
Martenies et al.35 Avaliar métricas dos impactos em saúde e similares para o gerenciamento da qualidade do ar Recomendações para seleção das métricas: serem abrangentes, capazes de identificar morbidade, mortalidade e comunicar os impactos na saúde; usar dados locais; incorporar resultados para a saúde pública, para dimensões espaciais e temporais e a equidade dos impactos.
Prasad et al.36 Analisar o uso da ferramenta Urban HEART da OMS, que aborda as desigualdades em saúde nas cidades Melhoria do acesso a água potável, saneamento e desemprego foram as orientações para intervenção nas cidades. Governos locais e partes interessadas mostraram maior controle e confiança no uso da ferramenta para conduzir as ações locais e melhorar a equidade em saúde.
Wu et al.37 Explorar a colaboração em rede por celular como meio para identificar o uso de recursos A gestão da cidade de estudo enfrenta os desafios relacionados à eficiência, equidade e qualidade do suprimento de recursos (água, alimentos e energia), utilizando a rede de celular que registra espacialmente o movimento de uso dos recursos. Tem impacto significativo no consumo de recursos e traz uma nova perspectiva de estudo com a integração do movimento humano à distribuição espacial.

Na primeira década: 1986 a 1995

Somente na década de 1960 alguns países tomaram consciência das mudanças na dinâmica populacional e suas implicações para a qualidade de vida e para os objetivos do desenvolvimento socioeconômico18,19. Os fenômenos populacionais e suas implicações, ainda eram mal compreendidos, mas a educação em todos os níveis já era identificada como uma alternativa.

Na década de 1980, as políticas de distribuição populacional receberam atenção crescente nos países em desenvolvimento, especialmente aqueles que combinavam níveis de urbanização modestos com altas taxas de crescimento da população. Richardson20 argumentou que mudanças de local da capital nacional e a criação de novas cidades não deveriam ser adotadas com frequência devido ao alto custo e impacto mínimo no crescimento populacional, sugerindo talvez distribuição populacional entre espaços geográficos distintos. Considerou, ainda, que as estratégias para controlar o crescimento da cidade e implementar programas de desenvolvimento rural eram complementares e não alternativos.

O desenvolvimento urbano, em todo o seu processo estava em relação direta com as condições que afetavam a saúde da população, sendo necessário encontrar caminhos para sua proteção e manutenção. Sabia-se que o fornecimento de incentivos e esclarecimentos quanto as atitudes de profilaxia e criação de ambientes de convívio público e coletivo poderiam potencializar o planejamento urbano saudável19,21.

As políticas de distribuição populacional receberam atenção nos países em desenvolvimento por gerar, entre outros, benefícios sociais, eficiência e equidade. O planejamento urbano colaborou para potencializar a saúde nesses locais. Estudos indicaram a existência de sistemas de informação locais, que eram utilizados para o monitoramento e avaliação de projetos. Porém, a maioria das iniciativas utilizavam sistemas de informação de gestão somente para monitorizar a implementação e formulação de políticas20,21.

Na segunda década: 1996 a 2005

No final da década de 1990, Fraser22 e Tarmann24 destacaram a rápida urbanização, o aparecimento de megacidades e a expansão da democracia. A gradual evolução das políticas e programas sociais foi colocando em evidência a sua premente acessibilidade àqueles que delas necessitam. Ocorreu uma série de conferências de vários segmentos da sociedade que se concentraram em questões mundiais. Deslocou-se o foco das questões populacionais para as pessoas e sua saúde, exigindo cooperação e formas de governos que assegurassem de algum modo os direitos sociais22,24.

Para apreender essas questões e promover melhoria geral e contínua à população, os gestores e formuladores de políticas deveriam identificar as origens estruturais que produziam as disparidades na estreita relação entre a capacidade da comunidade se manter saudável e sua qualidade de vida23,25.

As mudanças urbanas trouxeram problemas que, ainda, se colocam como desafios significativos para o desenvolvimento, especialmente após 2001. Dado que muitas das questões nacionais têm uma dimensão global, diferentes propostas para esse enfrentamento se voltaram às condições originadas pela própria vida urbana. Especialmente, as condições que incidem sobre a situação de saúde e qualidade de vida das pessoas em países com diferentes níveis de infraestrutura e sistema de saúde. Para esses casos, a equidade foi apontada na literatura como a peça chave para formulação de agendas políticas e programas inclusivos para se alcançar objetivos de de- senvolvimento22,29,30,33,34,36.

No mundo em desenvolvimento, há cada vez mais exclusão territorial. Há bairros ricos com todos os tipos de serviços, mas que estão próximos a área de assentamentos ilegais e sem in- fraestrutura. Cada fragmento parece viver e funcionar de forma autônoma. O direito à cidade, tal como está constituído, está estritamente restrito, na maioria dos países, a uma pequena elite política e econômica, que está em posição de moldar as cidades mais e mais, de acordo com os seus próprios desejos38.

Na América Latina, a implementação de políticas saudáveis foi desenvolvida no contexto da democratização, em processo de descentralização pós-ditaduras. De modo geral, os transtornos sociais na década de 1980 trouxeram expansão governamental, novas configurações para as políticas públicas, inclusive assembleias para reescrever Constituições, com uma linguagem relacionada à saúde e democracia30.

Após anos da Constituinte de 1988, anos das Conferências Nacionais de Saúde e dos esforços para se pensar a saúde de modo mais ampliado, o Brasil ainda apresenta um dos maiores desiquilíbrios sociais entre os índices de pobreza e de riqueza. As razões para esse panorama passam por questões sociais, estruturais e econômicas. Nesse percurso, a função social da cidade norteada pela equidade poderia ser uma estratégia para provisão de oportunidades e diminuição das desigualdades.

A reivindicação do direito à cidade expressa questionamentos ao desenvolvimento urbano e, ao mesmo tempo, aos efeitos das crises políticas e econômicas. Exige maior democratização das cidades e de seus processos decisórios baseados nos princípios da solidariedade, da liberdade, da igualdade, da dignidade e da justiça social. Entidades da sociedade civil, reunidas desde o Fórum Social Mundial de 2001, discutiram, debateram e assumiram o desafio de construir um modelo sustentável de sociedade e de vida urbana, que resultou na elaboração da Carta Mundial pelo Direito à Cidade. Nesse documento dá-se prioridade ao interesse comum sobre o direito individual de propriedade e, ao uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espaço urbano39.

A adoção da Carta Mundial vem ocorrendo em escalas, como se pode verificar no Fórum Social das Américas, em Quito, Julho de 2004; no Fórum Mundial Urbano, em Barcelona, setembro de 2004; e V Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, janeiro de 2005. Tornou-se um grito de mobilização para numerosas organizações interessadas em questões de justiça urbana27,39.

Na terceira década: 2006 a 2016

Ao iniciar esse terceiro e último período da investigação, o foco nos espaços urbanos de exclusão e agendas identitárias, o caminho da equidade traz à tona inquietudes para se pensar ações em defesa dos direitos humanos. Para tanto, se faz necessário destacar a complexidade do papel mediador dos direitos à saúde e à cidade.

A institucionalização do direito, particularmente dentro de um mundo caracterizado por escassez e conflitos, representa compromissos27.

A urbanização pode ser ao mesmo tempo causa e solução potencial para as mudanças sociais e desigualdades na saúde. Estas cidades são particularmente vulneráveis aos problemas que afetam a equidade urbana, em razão das condições sociais que vivem. Há, no entanto, possibilidades de se repensar as intervenções não necessariamente originadas da saúde e, também, não se trata apenas de uma questão política, mas de ações intersetoriais29,32,33.

Exemplos de estratégias bem-sucedidas são fornecidos pela América Latina, incluindo o uso de instrumentos participativos, o estabelecimento de comitês intersetoriais, o aumento da participação de organizações da sociedade civil e o desenvolvimento de fóruns e redes virtuais para canalizar processos participativos e colaborativos nos processos de decisão de políticas urbanas30,31.

Um estudo vinculou as geografias pessoais de saúde ao direito à cidade de jovens aborígenes, que vivem no Canadá. Os resultados demonstraram várias maneiras em que o local, a mobilidade e os limites afetaram suas experiências de saúde e suas percepções sobre a desigualdade na saúde. O estudo confirmou que os espaços urbanos podem produzir, e são produzidos por geografias altamente racializadas que trabalham para isolar, segregar e imobilizar socialmente os jovens aborígines, aumentando simultaneamente sua exposição a riscos para sua saúde e bem-estar28.

Nesse caminho, a qualidade de vida pode ser percebida pelo quão favorável são os indicadores de urbanização, saúde, instrução entre outros. A identificação dos componentes que afetam negativamente a vida de um indivíduo se faz necessária para elucidar causas e origens que produzem disparidades nos indicadores25.

Ao se voltar para o ambiente, um estudo evidenciou correlação positiva entre a arborização urbana de uma cidade e a renda familiar média. Esse achado sugere preocupações com a justiça ambiental. Contudo, as intervenções devem considerar, além da equidade distributiva, as necessidades da comunidade (desejo, infraestrutura, disponibilidade para cuidar, entre outros), pois os custos necessários para ampliação da arborização, nesse caso, poderão exceder os benefícios26.

Instrumentos quantitativos são métricas que avaliam e analisam a abrangência, resolução espacial e temporal, assim como facilitam as considerações de equidade para corrigir injustiças ambientais A seleção e combinação de métricas apropriadas dependerá do problema, contexto e fronteiras. Embora o envolvimento de um grupo amplo, constituído por partes interessadas, seja recomendável34-37.

Os gestores enfrentam diariamente desafios relacionados à eficiência, equidade e qualidade no suprimento de recursos, como água, alimentos e energia, para população local. Em um estudo na China, criaram uma rede compartilhada para estudar a distribuição de recursos e o comportamento humano coletivo nos pontos de serviço distribuídos espacialmente. Essa abordagem apresenta uma nova perspectiva para entender melhor o sistema de abastecimento de recursos distribuídos espacialmente e o movimento dos consumidores37.

A elaboração de políticas públicas efetivas, que sejam voltadas ao amplo espectro do desenvolvimento socioterritorial das cidades romperia com o modelo tradicional da área biomédica, uma vez que a abordagem da saúde urbana se daria de modo transversal e multidimensional e envolveria economia, emprego, educação, habitação, transporte, cultura, família, lazer e acesso à saúde34, a caminho da equidade.

Nesse percurso da literatura, evidencia-se que, à medida que os governos locais e as partes interessadas obtêm maior participação e conhecimento das reais necessidades da população, melhoram as decisões sobre a cidade na qual querem viver, ajudando-se mutuamente a seguirem rumo à equidade em saúde.

Considerações finais

A literatura analisada foi feita pela divisão em três períodos 1986-1995; 1996-2005; 2006-2016, respectivamente, com três eixos de relevância: (1) tamanho da cidade; (2) necessidade de respostas; (3) espaços urbanos de exclusão social e grupos em situação de vulnerabilidade.

Estes três eixos indicaram distintos níveis de presença do direito à cidade e do direito à saúde na formulação de políticas e na agenda de revindicações dos movimentos sociais. O crescimento populacional foi a primeira preocupação dos autores, vindo a seguir a abordagem do adensamento geográfico e do direito à saúde, e posteriormente, o foco nos espaços geográficos onde residem as populações excluídas com suas agendas identitárias.

Este marco temporal de 30 anos (1986-2016) foi definido, a princípio, para coincidir com o período entre a primeira Conferência Global de Promoção da Saúde, organizada pela OMS, em Ottawa, e a última, realizada em 2016, em Xangai, na China. A intenção foi observar se houve algum grau de concomitância entre as agendas dos nove eventos e as agendas do direito à cidade e à saúde.

Entretanto, a revisão aqui elaborada não permitiu chegar-se a tal conclusão. Fica a recomendação de um estudo mais aprofundado para o futuro, pois, promover saúde, como é o intuito das conferências globais da OMS, é também advogar o direito à cidade, duas prerrogativas fundamentais da promoção da equidade, compromisso ético-político da agenda promocional.

REFERÊNCIAS

1. World Urbanization Prospects. The 2014 Revision. Department of Economic and Social Affairs. New York: United Nations; 2014.
2. Pan American Health Organization (PAHO). Integration of background documents for the strategy and plan of action on urban health for the Americas. Washington: PAHO; 2011.
3. Unger K. “Right to the city” in response to the Crisis: ‘Convergence’ or divergence of Urban Social Moviments?” Reclaiming Spaces. [documento on the Internet]. [cited 2017 Apr 12]. Available from:
4. Lefebvre H. O direito à cidade. 3ª ed. São Paulo: Ed. Centauro; 2011.
5. Leavitt J, Samara TR, Brady M. Right to the city: social movement and theory. Poverty and Race 2009; 18(5):3-6.
6. Harvey D. O direito à cidade. Lutas Sociais 2012; 29:73-89.
7. Sandel MJ. Justiça: O que é fazer a coisa certa. 13ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira; 2013.
8. Whitehead M. The concepts and principles of equity and health. Int Jour Health Serv 1992; 22(3):429-445.
9. Paim JS, Silva LMV. Universalidade, integralidade, equidade e SUS. Desigualdades e Iniquidades em Saúde. Boletim do Instituto de Saúde - BIS 2010; 12(2):109-114.
10. Viacava F, Almeida C, Caetano R, Fausto M, Macinko J, Martins M, de Noronha JC, Novaes HMD, dos Santos Oliveira E, Porto SM, Vieira da Silva LM, Szwarcwald CL. Uma metodologia de avaliação do desempenho do sistema de saúde brasileiro. Cien Saude Colet 2004; 9(3):711-724.
11. Macinko J, Starfield B. Annotated bibliography on equity and health, 1980-2001. Int J Equity Health 2002; 1(1):1-20.
12. Marchand S, Wilker D, Landesman B. Class, health and justice. Milbank Q 1998; 76(3):449-467.
13. Viacava F. Laguardia J, Ugà MAD, Porto SM, Silva Moreira R, Silva Barros H, Silva HS. PROADESS, projeto avaliação do desempenho do sistema de saúde brasileiro: indicadores para monitoramento [relatório final] (versão para discussão). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011.
14. Comissão para os Determinantes Sociais da Saúde (CDSS). Redução das desigualdades no período de uma geração. Igualdade na saúde através da ação sobre os seus determinantes sociais [relatório]. Lisboa: Organização Mundial da Saúde, CDSS; 2010.
15. Braveman P, Gruskin S. Defining equity in health. JEpidemiol Community Health 2003; 57(4):254-258.
16. Mendes KS, Silveira RCCP, Galvão CM. Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto & contexto enf2008; 17(4):758-764.
17. Polit DF, Beck CT, Hungler BP. Fundamentos de pesquisa em enfermagem: métodos, avaliação e utilização. 5° ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 2004.
18. Tabbarah R. Population, human resources, and development in the Arab world. Popul Bull U N Econ Comm West Asia 1981; 20:5-38.
19. Arias De Blois J. The demographer's point of view. Int Rev Educ 1993; 39(1-2):24-29.
20. Richardson HW. Population distribution policies. Popul Bull UN 1983; 15:35-49.
21. Efremov E, Chuchkova M, Lozanov L, Iotov L, Toshkov S. Hygiene research in solving the health aspects of urban development. Probl Khig 1988; 13:3-8.
22. Fraser CG. A significant new report on population. Earth Times (NY) 1996; 30:35.
23. Stephens C, Akerman M, Avle S, Maia PB, Campanario P, Doe B, Tetteh D. Urban equity and urban health: using existing data to understand inequalities in health and environment in Accra, Ghana and Sao Paulo, Brazil. Environ Urban 1997; 9(1):181-202.
24. Tarmann A. Looking back at the century of population. Popul Today 2000; 28(1):1-2.
25. Jung M. Determinants of social quality and their regional disparities: an integrated approach for health equity in South Korea. Health Care Manag (Frederick) 2014; 33(4):310-320.
26. Schwarz K, Fragkias M, Boone CG, Zhou W, McHale M, Grove JM, O’Neil-Dunne J, McFadden JP, Buckley GL, Childers D, Ogden L, Pincetl S, Pataki D, Whitmer A, Cadenasso ML. Trees grow on money: urban tree canopy cover and environmental justice. PLoS One 2015; 10(4):e0122051.
27. Attoh KA. What kind of right is the right to the city? Prog Hum Geogr 2011; 35(5):669-685.
28. Skinner E, Masuda JR. Right to a healthy city? Examining the relationship between urban space and health inequity by Aboriginal youth artist-activists in Winnipeg. Soc Sci Med 2013; 91:210-218.
29. Friel S, Hancock T, Kjellstrom T, McGranahan G, Monge P, Roy. Urban health inequities and the added pressure of climate change: an action-oriented research agenda. J Urban Health 2011; 88(5):886-895.
30. Rice M, Hancock T. Equity, sustainability and governance in urban settings. Glob Health Promot 2016; 23(Supl. 1):94-97.
31. Rolnik R. Democracy on the edge: limits and possibilities in the implementation of an urban reform agenda in Brazil. Int J Urban Reg Res 2011; 35(2):239-255.
32. Caiaffa WT, Ferreira FR, Ferreira AD, Oliveira CD, Camargos VP, Proietti FA. Urban health: “the city is a strange lady, smiling today, devouring you tomorrow”. Cien Saude Colet 2008; 13(6):1785-1796.
33. Friel S, Akerman M, Hancock T, Kumaresan J, Marmot M, Melin T, Vlahov D. Addressing the social and environmental determinants of urban health equity: evidence for action and a research agenda. J Urban Health 2011; 88(5):860-874.
34. Caiaffa WT, Friche AA. Urbanization, globalization and road safety: a potential dialogue in search of equity? Cien Saude Colet 2012; 17(9):2238-2341.
35. Martenies SE, Wilkins D, Batterman SA. Health impact metrics for air pollution management strategies. Environ Int 2015; 85:84-95.
36. Prasad A, Kano M, Dagg KA, Mori H, Senkoro HH, Ardakani MA, Elfeky S, Good S, Engelhardt K, Ross A, Armada F. Prioritizing action on health inequities in cities: An evaluation of urban health equity assessment and response tool (Urban HEART) in 15 cities from Asia and Africa. Soc Sci Med 2015; 145:237-242.
37. Wu L, Leung H, Jiang H, Zheng H, Ma L. Incorporating Human Movement Behavior into the Analysis of Spatially Distributed Infrastructure. PLoS One 2016; 11(1):e0147216.
38. Harvey D. The right to the city. Rev New left review 2008; 53:23-40.
39. Mayer M. The ‘right to the city’ in urban social movements. In: Brenner N, Marcuse P, Mayer M, editors. Cities for People, Not for Profit: Critical Urban Theory and the Right to the City. New York: Routledge; 2012. p. 63-85.