versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.7 Rio de Janeiro jul. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018237.09192018
O objetivo deste artigo é analisar as implicações da política de austeridade que está sendo implantada no Brasil sobre a garantia do direito social universal, com foco no financiamento da saúde e no direito à saúde. Este trabalho mostra que a política de austeridade é um instrumento do ideário neoliberal, que vem sendo disseminado no mundo desde o século passado, resultando em enfraquecimento das políticas sociais de caráter universal e em graves efeitos para a sociedade.
Se, por um lado, a austeridade é uma estratégia recente e apresentada pelos defensores do neoliberalismo como saída para a crise econômica que assola o mundo desde 2008, por outro lado, o artigo apresenta a experiência internacional com outros caminhos possíveis, embasados em justiça social, solidariedade e política social de caráter universal. Por este motivo, os efeitos da política de austeridade brasileira são analisados em perspectiva internacional, com base em evidências produzidas em diferentes contextos, identificadas a partir de ampla revisão da literatura nacional e internacional, a fim de embasar teórica e empiricamente os argumentos aqui desenvolvidos. Por fim, são apresentadas informações sobre as medidas adotadas no Brasil e dados sobre o gasto público no país.
O artigo contribui ao debate que se trava no Brasil sobre as políticas sociais e os desafios em termos de sua sustentabilidade e sobrevivência, influenciado pela disputa de projetos entre o ideário neoliberal e o de um projeto de nação cujo desenvolvimento esteja necessariamente atrelado à proteção social para o universo dos cidadãos e fundado em valores de solidariedade.
Os direitos e as políticas sociais podem abranger a sociedade de diferentes formas, mais igualitária ou restrita, atingindo desigualmente cada cidadão. As diferenças de como os direitos e as políticas sociais são organizados em cada país, se para todos cidadãos, para alguns ou para grupos populacionais, têm suas origens no grau de solidariedade que define os valores que permeiam essa sociedade, bem como na relação entre os cidadãos e o Estado, construídas ao longo da história de cada país. Quando uma política social é de caráter universal, seus efeitos atingem todo o universo dessa população1.
O Estado mais democrático e permeável ao conjunto desses direitos e políticas sociais, que até hoje perdura com condições mais evidentes de reprodução é conhecido como Estado de Bem-Estar Social (Ebes).
Diversas mudanças originaram o que se convencionou chamar de crise do Ebes, que se iniciaram na década de 1970 e resultaram em reformas de Estado a partir do final desta e, sobretudo, nas de 1980 e 1990. Embora a transformação industrial tenha se iniciado logo depois de terminada a II Guerra Mundial, é a partir dos anos 1970, junto à crise econômica, que se fizeram sentir os impactos do aumento dos gastos derivado do avanço tecnológico, expondo o limite de recursos como um problema para as economias.
Os reflexos daquela crise econômica foram muitos, como aumento das taxas de desemprego, desenvolvimento de novas formas de emprego mais flexíveis, redução da jornada de trabalho e trabalho no âmbito do lar. A crescente incorporação da mulher no mercado de trabalho demandou novas estruturas de apoio ao cuidado da família e repercutiu nas taxas de fertilidade. O envelhecimento da população, associado à menor fertilidade, contribui para o desequilíbrio da seguridade social, que passa a ter a sua sustentabilidade como preocupação. Foram feitas pressões sociais e políticas por modificações no sentido “de uma utilização mais humana, racional e democrática dos recursos”2. É nesse contexto que demandas orientadas por valores exclusivamente individuais vêm ganhando força. Essas mudanças foram usadas para embasarem propostas de políticas de enfrentamento do déficit público e da inflação em cada país.
O liberalismo se fortaleceu, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, com o termo neoliberalismo, que havia começado a ser utilizado nos anos 1930. Nos anos 1980 foram disseminadas e fortalecidas ideias de que o investimento em uma seguridade social generosa implica menor crescimento econômico e da oferta de emprego, e de que o Estado tende a ser menos eficiente que o mercado. O paradigma do neoliberalismo pode ser organizado em três eixos: i) privatização, pela ideia de “superioridade do livre mercado como mecanismo de alocação eficiente de recursos”; ii) individualismo; e iii) liberdade, em detrimento da igualdade3.
Na segunda metade da década de 1980 começou a ser implantada a agenda neoliberal elaborada para realizar o ajuste macroeconômico. Tinha como eixo central estabilizar as economias e intervir nas políticas sociais, tomadas como instrumento de ajuste. Nesta década começaram a cair governos socialistas e a serem questionados modelos de sociedade que estes haviam construído.
A propagação das ideias neoliberais gerou menor confiança na capacidade de gerenciamento do Estado e, como consequência, corroborou-se a crença nos valores individuais e em soluções de mercado, sob o argumento de que, para combater as deficiências identificadas na gestão feita pelo Estado, é preciso reformá-lo e retirá-lo da execução, passando-a à concorrência entre entes privados. São questionados a eficiência e o escopo das atividades dos Ebes e são supervalorizados o indivíduo e a liberdade individual.
As mudanças advindas das reformas dos Ebes nas décadas de 1980 e 1990, salvo algumas exceções, foram mais de natureza gerencial e de introdução de mecanismos de mercado no setor público que de perda de direitos à proteção social, o que é diferente de retração do papel do Estado. Porém, tais mudanças interferem nos arranjos público-privado, inclusive pela disseminação da crença no setor privado como alternativa às dificuldades encontradas no setor público.
É nesse contexto que ocorre a crise econômica de 2008, quando um novo termo passa a ser usado pelos defensores do neoliberalismo, a austeridade fiscal. A austeridade pode ser compreendida pelas definições de Canterberry4, pela filosofia que “buscava transpor, sem mediação, virtudes individuais (sobriedade, parcimônia, prudência) para o plano público” e pela dimensão econômica, em que “é a política de ajuste fundada na redução dos gastos públicos e do papel do Estado em suas funções de indutor do crescimento econômico e promotor do bem-estar social”5.
A austeridade fiscal caracteriza-se por escolhas que exigem grandes sacrifícios da população, seja porque aumentam a carga tributária seja pela implementação de medidas que restringem a oferta de benefícios, bens e serviços públicos, em razão de cortes de despesas e/ou da realização de reformas estruturais.
O uso do termo austeridade e de seu valor moral pelo neoliberalismo foi criticado por Bastos6. Segundo o autor, no discurso neoliberal a austeridade assume sentido diverso daquele considerado justo no campo da moral privada, de virtude, pois está associada à ideia do comedimento nos desejos. Aponta que é utilizada pelos neoliberais para justificar a moderação no crescimento dos salários e da oferta de bens e serviços públicos porque evitaria prejuízo à poupança dos empresários, que é necessária para a geração de empregos e para o bem-estar futuro dos consumidores. O autor critica que não se emprega, entretanto, a moderação dos lucros e que ao adotar essas políticas, os neoliberais defendem os empresários, não os consumidores. Assim, a austeridade proposta não é a dos que consomem mais (os ricos), mas a dos trabalhadores e dos cidadãos que dependem de serviços públicos, o que aumenta a injustiça social.
Os argumentos do discurso neoliberal foram questionados por diversas pesquisas e análises científicas, como a de Piketty7, que permite inferir que os altos níveis de desigualdade são úteis justamente para a manutenção dos nichos mais ricos nas sociedades e que para essa manutenção são usados os argumentos do discurso neoliberal.
Segundo Stiglitz8, a austeridade constitui a derradeira manifestação do neoliberalismo. O autor rebate a ideia de que a dívida do Estado é semelhante à dívida das famílias e defende que os governos precisam investir em recursos humanos, tecnologia e infraestrutura para ativar a economia, pois quando o governo gasta mais e investe na economia, a criação de empregos se multiplica e as finanças públicas se fortalecem. Já a austeridade provoca efeito contrário, pois ela prejudicou as economias europeias e constitui grande entrave para o crescimento futuro, pois a redução ou a falta de investimento nos jovens diminuirá o potencial de crescimento do capital humano.
Os limites da austeridade para a retomada da economia vêm sendo assumidos até mesmo por trabalhadores vinculados ao Fundo Monetário Internacional (FMI). De acordo com recente artigo9, as políticas neoliberais têm provocado aumento da iniquidade social e colocado em risco uma trajetória de crescimento durável da economia. Segundo os autores, as políticas de austeridade não só têm custos para o bem-estar social, mas também afetam a demanda, aumentando o desemprego. Em estudo de 2017, os mesmos autores mostram que a abertura das economias nacionais para o capital estrangeiro e a globalização econômica aumentam as desigualdades de renda10.
O outro lado dessa moeda é que os gastos sociais podem ser vistos como investimento no caminho para uma sociedade mais justa, como mostrou uma pesquisa para o caso brasileiro11. Nesta, os gastos sociais são apontados como uma compensação do sistema tributário, pois a regressividade sobre os mais pobres é “contrabalançada pela progressividade nos gastos sociais, que tem esses mesmos extratos como os principais receptores”11.
Estudos têm demonstrado o efeito multiplicador do gasto com políticas sociais para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Em uma análise dos dados de 25 países europeus, Estados Unidos e Japão, verificou-se que os gastos com educação e saúde têm multiplicadores fiscais superiores a três, o que significa que para cada gasto de uma unidade monetária nessas áreas o aumento esperado do PIB seria de três unidades monetárias12.
No caso brasileiro, calculou-se em 1,7 o multiplicador do PIB para o gasto com saúde, ou seja, para um aumento do gasto com saúde de R$ 1,00, o aumento esperado do PIB seria de R$ 1,7013. Este estudo verificou multiplicador do PIB também para o gasto com educação (1,85), Programa Bolsa Família (1,44), Benefício de Prestação Continuada (1,38) e Regime Geral de Previdência Social (1,23), resultando em efeito positivo para a economia, ao contrário das despesas com pagamento dos juros da dívida pública (0,71).
Estudo mais recente14 corroborou os resultados acima e reforçou que o gasto do Estado em determinadas políticas é importante em momento de recessão econômica. Segundo os autores, os multiplicadores fiscais associados aos investimentos, benefícios sociais e despesas com pessoal durante as recessões, são significativos e maiores do que a unidade (1,68, 1,51 e 1,33 respectivamente), ao invés do multiplicador das despesas com subsídios (0,60). Para eles, o fato de que o multiplicador dos subsídios e de outros gastos é insignificante em qualquer situação econômica produz evidências de que a escolha de política fiscal do período de 2011 a 2014 no Brasil, de redução dos investimentos e expansão dos subsídios, tenha sido uma opção ruim e explique em parte a baixa resposta da economia aos estímulos dados pelo governo.
Uma questão relevante no Brasil é a desigualdade de renda, que é fortemente determinada pelo sistema tributário, o qual é um dos mais regressivos do mundo. Outro estudo15 identificou que os estratos mais ricos da sociedade são fundamentais para explicar a alta desigualdade brasileira entre 2006 e 2012. Ao mesmo tempo, Piketty16 defende que para se reduzir a desigualdade é preciso um sistema tributário mais justo para (1) financiar as políticas sociais e (2) reduzir a concentração de renda do topo da pirâmide.
Mesmo com os estudos acima, que mostram a importância dos gastos sociais para a política social – em especial de caráter universal – e para a sociedade e a economia do país, em meio a uma importante recessão econômica, não só o Brasil como vários outros governos têm feito a opção pela austeridade fiscal. Em muitos casos, por pressão de instituições financeiras internacionais.
O FMI e o Banco Mundial têm sido duramente criticados pela imposição de condicionalidades aos países que recorrem a empréstimos nos momentos de crise econômica, em virtude do impacto negativo das mesmas para os direitos humanos, o direito à saúde, ao trabalho e os direitos civis e políticos. A fundamentação das condicionalidades nos pilares da estabilização (redução do déficit fiscal com ênfase na diminuição dos gastos sociais), da liberalização (eliminação de barreiras comerciais e ao capital financeiro), da desregulação (revogação de regras de regulação da atividade econômica) e da privatização (venda de empresas estatais ao setor privado) tem gerado significativas dificuldades para a concretização desses direitos17.
Ao mesmo tempo, o Banco Mundial admite que manipulou durante longo período as informações em seus relatórios de classificação dos países a partir de indicadores econômicos, cuja posição é determinante das condições de empréstimos, credibilidade e pressão política por ajustes econômicos em cada país18.
As orientações dessas instituições internacionais credoras limitam o direito à saúde por mudanças no volume e qualidade dos serviços prestados, porque impõem aos governos reformas fiscais e institucionais a título de condições para concessão de empréstimos, que resultam na adoção de medidas como focalização de programas, corte de gasto social, ajustes estruturais para a introdução de taxas e de copagamento no uso dos serviços de saúde, desregulação do setor de saúde para aumentar a participação do setor privado na prestação de serviços e descentralização de responsabilidades fiscais e operacionais para os níveis subnacionais. Neste último caso, tem se verificado maiores problemas de governança e fragilidade institucional local, minando a garantia do direito à saúde17.
Países como Grécia, Irlanda, Portugal, Chipre e Espanha experimentaram significativa redução de sua capacidade de responderem efetivamente à demanda por serviços públicos, após firmarem planos de resgate financeiro com a Troika (cooperação entre o Banco Central Europeu, o FMI e a Comissão Europeia) no período após 200819. Na saúde, esta redução está associada à diminuição dos orçamentos para o setor, observada em vários países europeus que receberam empréstimo do FMI. Na área social, a redução do gasto do governo tem sido associada ao aumento da pobreza e da desigualdade, com consequências também para a saúde das populações20. Nos últimos anos, estudos têm produzido evidências consistentes sobre os efeitos danosos da política de austeridade para as populações12.
As crises econômicas estão associadas ao agravamento de problemas sociais, ao aumento das desigualdades sociais e à piora da situação de saúde dos cidadãos. Estas consequências são agravadas pela implementação de medidas de austeridade fiscal, as quais potencializam os efeitos negativos das crises sobre a situação de saúde e sobre as condições sociais21.
A situação de saúde mental das populações tem sido afetada pelas crises econômicas, que constituem relevante fator estressor para os indivíduos. No período após 2008, o aumento do desemprego em decorrência da crise em países de alta renda foi associado à elevação da prevalência de depressão e ansiedade, especialmente entre os que perderam o emprego. O aumento das taxas de suicídio, redução na autoavaliação do estado de saúde como bom, aumento de doenças crônicas não transmissíveis e de algumas doenças infectocontagiosas, aumento da dificuldade de ter acesso aos serviços de saúde e aumento do consumo de bebidas alcóolicas em grupos de alto risco estão entre outras consequências indesejáveis22,23.
Análises mais desagregadas dos indicadores de saúde de uma população demonstram que subgrupos populacionais mais vulneráveis socialmente podem estar sendo mais negativamente afetados que a população geral durante os períodos de crise econômica e sob a vigência de medidas de austeridade fiscal, especialmente para os suicídios e o abuso de bebidas alcoólicas24.
Em análise sobre o efeito de eventos financeiros negativos sobre a mortalidade em 26 países europeus, verificou-se que 1% de aumento no desemprego provoca a elevação de 0,79% nos casos de suicídio de menores de 65 anos e que os sistemas de proteção social são importantes para amortecer os efeitos das crises sobre a saúde da população25.
Em relação ao acesso aos serviços de saúde, o aumento do copagamento pelo uso dos serviços; o corte de gastos que, por sua vez, resulta em fechamento de serviços e redução de horas de funcionamento e da força de trabalho; e a realização de reformas que restringem o acesso por imigrantes, moradores de rua e usuários de drogas estão entre as medidas austeras adotadas por vários países da União Europeia e que foram associadas ao aumento do número de pessoas que não tiveram as suas necessidades de cuidados de saúde atendidas pós-crise de 200826-28.
Países como a Alemanha, Espanha e Inglaterra implementaram reformas estruturais em seus sistemas de saúde, promovendo mudanças no mercado de trabalho, na regulação do sistema e na prestação dos serviços pelo Estado. Na Espanha houve cortes no orçamento, aumento do copagamento, exclusão de cobertura e redução das despesas com pessoal. Na Alemanha houve congelamento da contribuição dos empregadores, adiamento dos aumentos da contribuição dos segurados e permissão para a adoção de novas taxas pelas caixas de seguro a fim de incentivar a competição e reduzir os gastos29. Na Inglaterra houve separação entre o financiamento e a prestação de serviços; redução das funções gerenciais e abertura do sistema para a participação de prestadores privados. A avaliação sobre o impacto dessas medidas para o Serviço Nacional de Saúde inglês é de que elas geraram um sistema mais complexo e fragmentado quanto à gestão, regulação e contratualização, além de mercantilizado, com incentivos à compra de serviços privados, e de que houve piora da qualidade dos serviços, com elevação do tempo de espera e maior insatisfação dos usuários30.
O Quadro 1 apresenta de forma resumida algumas medidas de austeridade fiscal adotadas por diversos países no mundo, em resposta às crises econômicas, e as consequências sociais observadas, apresentadas nesta seção.
Quadro 1 Consequências das crises econômicas e da austeridade fiscal no mundo.
Medidas |
---|
• Realização de reformas estruturais para reduzir os gastos do Estado com a oferta de bens e serviços públicos à população |
• Cortes do gasto do governo com pessoal |
• Redução do gasto do governo com proteção social e gastos sociais em geral, com redução dos orçamentos da saúde |
• Fechamento de serviços de saúde, redução de horas de funcionamento e da força de trabalho |
• Instituição e/ou aumento do copagamento pelo uso de serviços de saúde e estabelecimento de taxas adicionais |
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Consequências |
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• Aumento do desemprego |
• Aumento da pobreza e da desigualdade social |
• Agravamento dos problemas sociais, com aumento da violência |
• Restrição do direito à saúde para determinados grupos populacionais, como imigrantes, moradores de rua, usuários de drogas |
• Aumento da dificuldade de ter acesso aos serviços de saúde por barreiras econômicas |
• Aumento da prevalência de depressão e ansiedade |
• Piora da saúde mental, com aumento das taxas de suicídio, sobretudo entre menores de 65 anos |
• Redução na auto-avaliação do estado de saúde como bom |
• Aumento de doenças crônicas não transmissíveis e de algumas doenças infectocontagiosas |
• Aumento do consumo de bebidas alcóolicas em grupos de alto risco, constituídos por pessoas que já consomem álcool rotineiramente e desempregados |
• Abuso de álcool em subgrupos sociais mais vulneráveis, estando entre os fatores de risco a perda do emprego e o desemprego de longa duração, além de suscetibilidades pré-existentes como doenças mentais |
Fonte: Elaboração própria.
No caso do Brasil, os efeitos da austeridade fiscal podem ser mais graves do que os observados em países desenvolvidos, considerando que os indicadores sociais e a oferta de serviços públicos estão aquém do patamar daqueles países e que o Brasil continua sendo um dos países de maior desigualdade social e de renda do mundo. Em 2016, os 10% mais ricos concentraram 55% da renda produzida no país31. Como pode ser visto na Figura 1, os resultados sociais do Brasil comparados aos da Argentina, Chile, Estados Unidos, Portugal e Reino Unido revelam posição relativa inferior do nosso país. Apesar disso, a agenda da austeridade vem sendo implementada a largos passos nos últimos anos.
Fonte: Unicef. Country Statistics. Disponível em: https://www.unicef.org/statistics/index_countrystats.html. Acesso em 19 jan 2018.
Figura 1 Indicadores sociais de países selecionados.
A crise econômica brasileira, agravada a partir de 2014, teve como efeitos imediatos a queda de arrecadação em todas as esferas de governo e o aumento do desemprego. A receita corrente líquida do governo federal sofreu uma redução real de 6,7% entre 2014 e 2016, passando de R$ 786,8 bilhões para R$ 734,4 bilhões32, e o percentual de pessoas desocupadas chegou a 13% no segundo trimestre de 2017, equivalentes a 13,5 milhões de indivíduos33.
Em resposta à crise e em consonância com a orientação dos credores internacionais, o governo federal exacerbou medidas de ajuste fiscal pela despesa, tendo por resultado a redução dos gastos em diversas áreas. Os investimentos do Poder Executivo federal caíram 42% entre 2014 e 2016, em valores empenhados, e as despesas primárias e por função em áreas estratégicas também tiveram diminuição neste período34,35 (Tabela 1).
Tabela 1 Variação das despesas da União entre 2014 e 2016.
Despesas | Valores empenhados (em R$ de 2017) | Variação (%) | |
---|---|---|---|
| |||
2014 | 2016 | ||
Despesas por função | |||
Saúde | 115.346.480.263,83 | 111.985.699.043,72 | -3 |
Assistência Social | 86.373.522.469,77 | 82.495.676.615,42 | -4 |
Segurança Pública | 10.970.096.542,58 | 10.049.732.311,04 | -8 |
Educação | 100.126.606.451,98 | 89.850.981.277,66 | -10 |
Trabalho | 86.956.343.610,87 | 74.900.763.660,01 | -14 |
Cultura | 2.251.352.821,82 | 1.892.057.831,49 | -16 |
Gestão Ambiental | 7.888.123.383,18 | 5.394.897.034,82 | -32 |
Ciência e Tecnologia | 10.224.472.534,41 | 6.601.490.992,82 | -35 |
Transporte | 19.836.393.114,93 | 11.133.662.332,11 | -44 |
Saneamento | 2.074.321.428,10 | 582.962.535,08 | -72 |
Previdência Social | 592.868.868.844,49 | 600.973.546.005,62 | 1 |
Relações Exteriores | 2.988.619.286,45 | 3.065.313.897,90 | 3 |
Defesa Nacional | 49.131.881.523,76 | 63.971.480.651,20 | 30 |
Energia | 1.402.600.255,46 | 1.881.212.898,88 | 34 |
Direitos da Cidadania | 1.821.237.062,52 | 2.491.227.136,38 | 37 |
Despesas Primárias | 1.537.968.856.748,33 | 1.500.177.941.489,52 | -2 |
Elaboração própria com base em dados do: i) Siga Brasil35; ii) Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão36. Valores deflacionados pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Por outro lado, as renúncias de receitas aumentaram. Os gastos tributários cresceram 15%, passando de R$ 235,6 bilhões para R$ 271 bilhões em valores constantes entre 2014 e 201636. Enquanto os subsídios totalizaram R$ 106,9 bilhões somente em 201637. Já as despesas financeiras, relacionadas principalmente ao pagamento de juros e amortização de dívidas, tiveram redução de 3%. Contudo, continuam em patamar muito elevado, correspondendo a cerca de R$ 1,2 trilhão em valores de 2017, o que equivale a 40% de todas as despesas da União em 201638.
Relevante reforma fiscal foi realizada em 2016 com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) nº 95, instituindo o chamado Novo Regime Fiscal. Estabeleceu-se teto de gasto para as despesas primárias da União, sem definição de limite para as despesas financeiras39. A partir de 2017 até 2036, essas despesas ficam congeladas em termos reais em aproximadamente R$ 1,3 trilhão, o que significa que este valor será corrigido anualmente apenas para recomposição de perdas inflacionárias40. Os gastos com saúde e educação perderam a vinculação em relação às receitas e passaram a ter as aplicações mínimas congeladas nos mesmos termos das despesas primárias, com a diferença de que sua vigência começa em 2018.
Caso a regra da EC 95 estivesse em vigor no período 2003-2015, as perdas acumuladas do Sistema Único de Saúde (SUS) alcançariam R$ 135 bilhões41. Já em um exercício prospectivo, estimou-se que elas poderiam variar de R$ 168 bilhões a R$ 738 bilhões entre 2017 a 2036, a depender do crescimento do PIB nos próximos anos39,42. No caso da assistência social, a perda de recursos poderia chegar a R$ 868 bilhões em vinte anos, fazendo com que o gasto com as políticas assistenciais regredisse a patamares inferiores ao observado em 200643.
Na prática, o ajuste fiscal implementado no Brasil não teve por objetivo principal controlar o desequilíbrio momentâneo nas contas públicas, mas sim forçar a redução da participação do Estado na oferta de bens e serviços à população, por meio da diminuição do gasto com políticas públicas, o que reduzirá a participação das despesas primárias no PIB de cerca de 20% em 2016 para 16% a 12% do PIB até 2026, a depender do desempenho da economia44. Por isso, este ajuste é considerado o mais rígido do mundo45 e uma reforma do Estado, cujo objetivo, de reduzir o seu tamanho, não foi claramente anunciado39.
Outras reformas estruturais estão em curso, como a trabalhista, aprovada em 2017 e a da previdência, em tramitação no Congresso Nacional. Em relação à reforma trabalhista, ao estabelecer que os acordos negociados entre trabalhadores e empregadores se sobrepõem ao legislado e criar condições para o enfraquecimento dos sindicatos, a flexibilização introduzida promove redução do poder de barganha dos trabalhadores, o que pode implicar aumento da desigualdade funcional da renda em favor dos empregadores46.
Já a proposta de Reforma da Previdência teve por base premissas que proclamam catástrofe, fazendo uso de “fatos alternativos”47, com pouca preocupação em informar de fato a população. Esta reforma é uma das principais imposições da direção do FMI ao país, que exigiu uma reforma “profunda”48 da previdência.
No caso do SUS, a regra do teto promoveu a desvinculação da aplicação em relação às receitas e mesmo que não impeça alocação adicional ao mínimo a cada ano, na prática, o arrocho imposto a diversas políticas públicas tornará isso muito difícil44. A vinculação de recursos para a saúde, aprovada por meio da EC 29, de 2000, representou uma conquista que criou mecanismo de proteção para as despesas com saúde pública, interrompendo uma trajetória de instabilidade do financiamento do sistema desde sua criação, ainda que os recursos continuassem sendo considerados insuficientes para a garantia de acesso universal e integral às ações e serviços de saúde49,50.
A crise econômica no Brasil, agravada a partir de 2014, associada à mudança na regra de aplicação de recursos no SUS pela União, por meio da EC 86, de 2015, que estabeleceu aplicação mínima federal escalonada em percentual da receita corrente líquida (RCL) de 13,2% a 15% no período de 2016 e 2020, resultou em diminuição real dos recursos disponíveis para o sistema. Entre 2014 e 2016, houve redução de 3,6% do gasto total com ações e serviços públicos de saúde (ASPS), que passou de R$ 257 a R$ 248 bilhões, em valores de 2016, e queda de 5% do gasto com ASPS per capita, de R$ 1.268 a R$ 1.202.
Ao mesmo tempo em que há retração do gasto público, observa-se aumento do gasto privado das famílias com saúde. No período de 2010 a 2015, a participação das três esferas de governo no financiamento da saúde reduziu de 46,9% para 45,1%, enquanto a participação das famílias e das instituições sem fins de lucro aumentou de 53,1% para 54,9%51.
Sob a vigência da EC 95, espera-se crescimento mais acelerado da participação das famílias no financiamento da saúde no país. Primeiro, porque a aplicação mínima federal está congelada, ainda que a população e a demanda por serviços de saúde aumentem. Segundo, porque estados e municípios têm pouca margem fiscal para ampliar os recursos alocados atualmente no SUS, a fim de compensar aqueles que deixarão de ser alocados39. Terceiro, porque a mesma política neoliberal que propõe redução do gasto social, incentiva o fortalecimento do setor privado nacional e estrangeiro.
Se de um lado mingua-se o financiamento público, de outro, buscam-se soluções para aumentar a parcela privada no gasto com saúde. Em 2016, o Ministério da Saúde propôs à Agência Nacional de Saúde Suplementar a flexibilização do arcabouço regulatório, a fim de possibilitar a oferta de planos privados de saúde com menores coberturas assistenciais e valores de mensalidade ao consumidor, o que foi chamado de Plano de Saúde Acessível. Sá52 avalia que a capacidade de esta medida ajudar a controlar os gastos do SUS, objetivo declarado por seus propositores, é muito reduzida. Além de não desafogar o SUS, ela pode gerar maior segmentação e agravar a iniquidade no sistema de saúde brasileiro, além de fortalecer o mercado de planos privados de saúde em detrimento do SUS53.
Com isso, ficará mais difícil garantir o acesso aos serviços de saúde no Brasil de forma universal e integral, o que provavelmente tornará o país mais próximo da proposta de Cobertura Universal de Saúde que pressupõe a segmentação do acesso, da cobertura e do financiamento pelo fortalecimento de esquemas privados e do enfraquecimento do direito universal à saúde54,55. Além disso, como as políticas que atuam sobre determinantes sociais da saúde também serão afetadas, reduzem-se as possibilidades concretas de efetivação do direito à saúde no Brasil, sobretudo se considerado o contexto latino-americano de indicadores sociais piores que os dos países europeus.
A perspectiva no curto e médio prazo é que no Brasil o governo federal prossiga com as medidas de ajuste fiscal, haja vista as orientações explícitas de cortes profundos nos gastos sociais feitas pelo FMI48 e pelo Banco Mundial56.
Verifica-se que as medidas que vêm sendo implantadas no país demonstram clara opção pela austeridade. Entretanto, não uma austeridade universal, que atinja toda a sociedade brasileira igualmente, e tampouco uma austeridade momentânea, focada na redução do desequilíbrio pontual nas contas públicas.
Mas sim uma austeridade seletiva, que preserva e amplia os ganhos dos mais ricos, em consonância com as regras orientadas pelos organismos internacionais, ao custo de precarização das condições para a garantia de direitos sociais à população, desemprego, desaceleração da economia, financeirização e internacionalização do capital, aumento da desigualdade (necessária para a manutenção dessa ordem de fortalecimento dos pequenos grupos privados que são favorecidos pelas políticas neoliberais de austeridade), diminuição da proteção social provida pelo Estado para o universo da população e condições de saúde e de vida da população, afetando proporcionalmente mais os mais vulneráveis.
O debate em busca de caminhos para superação da política de austeridade deve passar pela identificação de a quem interessa a desigualdade. Os estudos de Piketty16 mostraram que o Brasil é um dos piores países do mundo em termos de desigualdade, ficando atrás apenas de países do oriente médio e da África do Sul. A desigualdade afasta os princípios necessários à democracia, piora a injustiça social, aumenta os riscos de conservadorismo moralista, racismo, xenofobia, retrocessos em pautas que avançam lentamente como descriminalização das drogas, aborto, liberdade no pensamento artístico, etc.
A austeridade, disfarçada de virtude ao propagar um arrocho necessário por seus defensores, força a redução do tamanho do Estado e desmancha a solidariedade como possibilidade de base e elo para as políticas sociais, sem que este debate seja colocado de forma transparente para a sociedade.
A austeridade fiscal que hoje se implanta no Brasil representa a hegemonia da visão de corte neoliberal sobre o funcionamento da economia e as funções do Estado no campo das políticas sociais, destruindo o caráter universal dessas políticas, o que acarreta graves consequências para o Ebes57. Embora várias evidências científicas venham demonstrando os impactos negativos da austeridade fiscal em momento de crise econômica para a retomada da economia, os que a defendem seguem apregoando que o arrocho se faz necessário para esta recuperação.
Os resultados dos estudos trazidos ao longo deste artigo permitiram a análise que pode subsidiar a formulação de caminhos de superação da política de austeridade fiscal no Brasil. Mas a estratégia de formulação de projetos e proposições deverá se caracterizar pelo compromisso prioritário com a população e com o desenvolvimento socioeconômico, para o quê será necessária a atuação da sociedade civil além da academia, como das organizações não governamentais, empresariais e de movimentos sociais, condição necessária para que possa vir a ser hegemônica no país, para que de fato uma agenda alternativa à política de austeridade fiscal seja elaborada com base na solidariedade e na defesa da democracia e dos direitos sociais universais. Este é um grande desafio, pois implica a superação de características históricas da formação social e econômica do Brasil que dificultam a implementação de políticas públicas voltadas à redução das desigualdades sociais.