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Diretivas antecipadas de vontade: percepções de enfermeiros sobre os benefícios e novas demandas

Diretivas antecipadas de vontade: percepções de enfermeiros sobre os benefícios e novas demandas

Autores:

Isabela Saioron,
Flávia Regina Souza Ramos,
Dulcinéia Ghizoni Schneider,
Rosemary Silva da Silveira,
Luciana Ramos Silveira

ARTIGO ORIGINAL

Escola Anna Nery

versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465

Esc. Anna Nery vol.21 no.4 Rio de Janeiro 2017 Epub 28-Set-2017

http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0100

INTRODUÇÃO

O processo de morte na sociedade ocidental pode ser considerado ainda um tabu na atualidade, despertando percepções e posições divergentes. Não raramente, situações de conflito ocorrem no ambiente hospitalar, onde o paciente em situação de terminalidade convive com seus familiares e com os profissionais da saúde, em relações que podem fomentar angústias e dúvidas quanto às condutas referentes a esse momento,1-3 uma vez que envolve não apenas avaliações clínicas, mas aspectos culturais, éticos, legais e religiosos.4

Dentre os profissionais envolvidos nos processos de morte e morrer, os enfermeiros se encontram muito próximos do paciente e seus acompanhantes, por vezes, com vínculos afetivos mais favorecidos pelas circunstâncias do cuidado e, também, diante das tomadas de decisões que envolvem conflitos éticos, o que pode ocasionar maior desgaste emocional.5

Nesse contexto, as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) surgem como um instrumento capaz de facilitar a resolução de possíveis conflitos oriundos das indecisões referentes às condutas a serem tomadas pelos profissionais da saúde. Propõe minimizar os dilemas enfrentados nas questões relacionadas ao final da vida. Trata-se de um registro documental em que o indivíduo manifesta os procedimentos que gostaria ou não de ser submetido em determinadas circunstâncias, expressando sua vontade acerca dos mesmos.6-8 Por meio dessa documentação, o indivíduo consegue deixar explícito os seus desejos, caso se encontre incapacitado de manifestar sua vontade no futuro por condição de doença.

Essa proposta surgiu nos Estados Unidos da América (EUA), na década de 60, quando o advogado Luis Kutner propôs a adoção das DAV, naquele momento chamadas de living will (testamento vital). Mesmo sem uma clara diferenciação entre essas terminologias, atualmente é mais utilizado o termo DAV (Diretivas Antecipadas de Vontade), inclusive porque foi o adotado em documentos legais. Seu intuito era proteger o direito individual da morte, solucionando conflitos entre médicos, pacientes terminais e familiares acerca da tomada de decisão dos tratamentos diante da terminalidade.6,7,9,10

Essa valorização da liberdade de escolha diante de enfermidades e da própria terminalidade fomentou e ainda fomenta situações contraditórias diante das legislações dos países ocidentais que, tradicionalmente, possuem o objetivo primário de proteger a vida humana. Embora seja possível identificar uma crescente valorização da liberdade e do protagonismo dos indivíduos sobre suas respectivas vidas e mortes, esta ocorre num processo de lentidão, fomentando divergências na sociedade.4

Além de objetivar garantir a autonomia do paciente, as DAV também podem tranquilizar familiares e profissionais da saúde,11 em relação à conduta terapêutica a ser realizada, uma vez que considerar o que o paciente deseja em seu final de vida é uma decisão difícil, demanda questionamentos e dilemas no âmbito ético e jurídico.12 Assim, as DAV constituem um instrumento com potencial impacto na atuação de enfermeiros, uma vez que pode solucionar conflitos, apoiar decisões que envolvem a qualidade e a continuidade dos cuidados profissionais, ao mesmo tempo que promove a defesa dos interesses do paciente.

O Brasil não possui regulamentação para essa decisão expressa em documento. Até o presente momento, o Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução Nº 1.995, de 09 agosto de 2012, foi o único a se manifestar a respeito da utilização das DAV como documento jurídico nos cartórios em todo território nacional,11,8 não havendo ainda uma lei que regulamente sua utilização.

Tendo em vista esse cenário e suas fragilidades questionou-se: Como os profissionais enfermeiros percebem a utilização das DAV no contexto atual brasileiro?

Assim, objetivou-se conhecer a percepção de enfermeiros sobre os benefícios e novas demandas trazidas pelas Diretivas Antecipadas de Vontade nas Unidades de Terapia Intensiva e Clínica Médica de um Hospital Universitário do Sul do País.

MÉTODO

Trata-se de um estudo exploratório-descritivo, com abordagem qualitativa, realizado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e Clínicas Médicas I e II de um Hospital Universitário do Sul do Brasil. A Unidade de Terapia Intensiva possui um espaço físico que possibilita 20 leitos; ativos encontram-se 13 leitos (dois são de isolamento e dois com suporte para hemodiálise). Cabe salientar que a UTI tem o suporte necessário para prestar atendimento às situações clínico/cirúrgico de qualquer especialidade. A Clínica Médica I apresenta 29 leitos, sendo apenas 21 ativos; a clínica II apresenta 25 leitos, todos ativos. Optou-se por essas unidades em virtude do representativo número de pacientes graves e/ou em terminalidade, onde as DAV poderiam ser mais habituais ao contexto de trabalho.

Elegeu-se os enfermeiros como participantes deste estudo por ser uma das categorias profissionais que se encontra muito perto do paciente e de seus acompanhantes, podendo ser exposta a um maior desgaste emocional devido à proximidade com o sofrimento do outro5 e, consequentemente, podendo ser, em virtude disso, os profissionais que sofram mais diretamente a influência das DAV. Os critérios de inclusão foram: ser enfermeiro efetivo, contratado ou residente de enfermagem (o residente faz parte do projeto de residência integrada multiprofissional em saúde). Os critérios de exclusão foram: profissionais em férias ou que estivessem de licença.

A definição do número de participantes atendeu aos princípios do método snowball, que consiste em eleger informantes-chaves que, posteriormente, indicam novos contatos, a partir de sua própria rede pessoal e, assim, sucessivamente e, dessa forma, o quadro de amostragem pode crescer a cada entrevista, até que seja alcançada a saturação dos dados.13 Objetivou-se com esse método possibilitar a aproximação da pesquisadora entrevistadora de maneira mais sutil, uma vez que a indicação por uma colega de trabalho poderia favorecer que eventuais barreiras ou receios em tratar do tema fossem minimizados.

Os dados foram coletados no período de janeiro a março do ano de 2016. Essa etapa da pesquisa deu-se por meio de entrevistas semiestruturadas, cujo roteiro foi planejado pelas pesquisadoras, com base em lacunas de compreensão e aplicação detectadas pela literatura e incluindo um modelo impresso de DAV e explicação acerca dessa documentação, para o caso de os participantes desconhecerem o conceito. As perguntas realizadas durante as entrevistas abordavam questões relativas ao conhecimento dos participantes sobre DAV, como o instrumento poderia influenciar na sistematização da assistência, quais seriam as vantagens e desvantagens das DAV no seu cotidiano laboral? Quais dificuldades poderiam existir para que o documento seja aprovado pela equipe de enfermagem? Qual o seu posicionamento sobre a abordagem do tema durante a formação? E qual a relevância das DAV para pacientes e seus familiares? As entrevistas foram realizadas pela pesquisadora principal que tem experiência com essa estratégia metodológica. Em que pese a limitação decorrente dessas lacunas de conhecimento, buscou-se elucidar o tema, de forma que a entrevista só prosseguisse quando o participante se mostrasse esclarecido. As entrevistas foram realizadas no local de trabalho dos participantes, sendo áudio-gravadas e transcritas na íntegra. A coleta de dados teve início após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (Parecer 1.353.986). O desenvolvimento do estudo respeitou os aspectos éticos, conforme a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Na etapa de organização dos dados, optou-se pelo software Atlas-ti. A análise metodológica utilizada foi orientada pela Análise Textual Discursiva (ATD), composta por quatro focos: 1) desmontagem dos textos: examinaram-se as respostas dos participantes; 2) estabelecimento de relações: agruparam-se as respostas, elaborando as categorias; 3) captação do novo emergente: elaboração de um metatexto interpretando os significados e relacionando-os ao corpus original; 4) processo auto-organizado: movimentação de um novo texto por meio de interlocuções teóricas e novas compreensões acerca do fenômeno estudado.14

RESULTADOS

Os participantes do estudo se caracterizam por ser majoritariamente do sexo feminino, possuíam experiência prévia à sua recente atuação profissional e mais de uma pós-graduação, destacando-se os cursos de mestrado e especialização. Dos 19 enfermeiros, todos possuíam alguma crença religiosa. Outra característica marcante pode-se atribuir a falta de conhecimento sobre as DAV, apenas três souberam defini-las.

O estabelecimento de relações a partir da proposta metodológica possibilitou a construção de três categorias: Benefícios relacionados às DAV no âmbito hospitalar; novas demandas relacionadas às DAV; a relevância das DAV para pacientes e seus familiares.

No Quadro 1, apresenta-se a síntese acerca da categoria 1, os benefícios relacionados às DAV no âmbito hospitalar.

Quadro 1 Categoria 1 - Os benefícios do uso das DAV no cotidiano laboral do enfermeiro. Florianópolis/SC, 2016. 

Citações Captação do novo emergente
[...] acho que é um caminho, ela te dá um direcionamento [...] Eu acho que é uma diretriz, eu concordo. Principalmente se tem a questão do tutor, eu acho que é viável. (P07). Os enfermeiros perceberam que a utilização das DAV poderia beneficiar o trabalho, não apenas da categoria de enfermagem, mas de toda a equipe multiprofissional, uma vez que ter ciência das reais decisões e vontades do paciente propicia conforto e tranquilidade para os profissionais, frente a situações desgastantes de tomada de decisão envolvendo pacientes inconscientes.
Às vezes, o paciente está há muito tempo aqui com a gente, ele está lúcido, acordado e, às vezes, ele fala que não quer que façam isso, ele não quer ser entubado, por exemplo, aí ele chega a ficar desacordado e a opção é ser entubado, então, naquele momento o documento te daria um respaldo, porque ele deixou por escrito que realmente ele não quer, não foi só de boca. Porque, às vezes, a gente fala e as pessoas acham que é negligência, [...] então, esse documento daria um respaldo. (P11).
[...] é muito complexo lidar com a vida do outro sem saber o que ele gostaria que fosse feito [...] às vezes, a gente sai daqui com peso na consciência de não saber se realmente estamos fazendo o melhor pelo paciente, e se ele pudesse nos dar esse sinal, do que ele quer para ele, eu acho que seria muito bom para o nosso trabalho, muito bom para o paciente [...]. (P17).

Na percepção dos enfermeiros, surge uma maior preocupação com as demandas que emergem a partir das DAV. Os resultados estão apresentados no Quadro 2.

Quadro 2 Categoria 2 - Novas demandas para os profissionais relacionadas às DAV. Florianópolis/SC, 2016. 

Citações Captação do novo emergente
[...] ele pede para eu não intervir, porém eu quero intervir, [...] o que vai me defender? E se eu seguir, o que pode interferir na minha profissão? Eu posso enfrentar algum processo judicial? (P02). As novas demandas suscitam nos profissionais incertezas e o receio de ser submetido a um possível processo judicial. A ausência de um posicionamento claro quanto ao uso do instrumento, ou até mesmo, uma orientação do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) em relação às DAV também parece causar desconforto. Além disso, questões relacionadas a emoções, valores culturais, pessoais e religiosos geram dúvidas, angústias e conflitos nas relações entre os membros da equipe e até mesmo com pacientes e familiares que vivenciam a terminalidade.
[...] é difícil, o profissional está aqui trabalhando para manter a vida. Eles têm seus próprios valores, crenças religiosas, ética [...] numa situação dessas pode haver dois profissionais que para eles está tudo bem, mas para outro não, então isso já vai gerar um conflito na equipe. (P07).
[...] criar conflito ético, ou de religião, ou de valores, e isso é uma coisa muito difícil de lidar na realidade [...] Eu já tive pacientes, por exemplo, de ter [...] câncer de pulmão [...] e o paciente, ainda lúcido, me dizer que não queria o acesso venoso, negar a medicação e dizer que queria morrer assim. [...], ele não queria deixar de sofrer, hoje eu penso que talvez ele acreditasse que ele merecesse aquilo e que talvez ele não fosse merecedor de uma morte tranquila. Então foi um conflito bem grande porque a família se dividiu, parte da família concordou com o pedido dele, outra parte não [...]. (P18).
Citações Captação do novo emergente
Vejo isso com certa preocupação, documentos feitos muito antecipadamente, em tantos momentos da vida a gente valoriza uma coisa, depois de certo tempo valoriza outra, depois a outra já não é mais tão importante [...] Acho que a gente muda muito no decorrer da vida [...] situações graves fazem despertar para outra coisa. (P10). Verificou-se a preocupação com possíveis transtornos oriundos da elaboração das DAV. Pode-se atribuir esse olhar às diretrizes que orientam o documento e ao processo rápido de transformação dos aparatos tecnológicos e terapêuticos, que permitem maior sucesso em situações antes previstas como sem possibilidade terapêutica.
A vida é tão cheia de surpresas, a gente vê pessoas que estavam completamente afundadas e ressurgiram, hoje estão bem, estão em casa. É tão imprevisível saber o que vai acontecer, se a pessoa vai ficar bem ou em casa acamada. É muito difícil [...]. (P15).

Outra categoria que se destacou para os enfermeiros foi a importância da temática das DAV para pacientes e seus familiares (Quadro 3).

Quadro 3 Categoria 3 - A relevância das DAV para pacientes e seus familiares. Florianópolis/SC, 2016. 

Citações Captação do novo emergente
Teve uma situação que um paciente tinha um câncer e ele tinha muita dor corporal, e a gente ofereceu entrar com a bomba de morfina [...] ele, surpreendentemente, falou que não, que preferia ficar com a dor e consciente para conseguir manter-se conversando com a família, ter os últimos momentos dele ao lado da família, mesmo com dor [...]. (P17). Os participantes manifestaram a importância da autonomia do ser, em que cada indivíduo decide sobre o seu próprio corpo. Nesse sentido, as DAV seriam uma ferramenta que vem explicitar documentalmente à vontade do paciente, podendo facilitar o respeito à sua autonomia.
[...] se o documento provar que aquela é realmente a vontade do paciente, que não foi um momento de delírio ou o sofrimento, que pode mudar a opinião da pessoa. (P18).
Citações Captação do novo emergente
[...] em alguns casos a família não aceita determinadas condutas, esse documento mostrando o desejo do seu familiar acho que facilita bastante; para a família acho que teria grande vantagem, pela questão da aceitação. (P05). As DAV poderiam trazer maior conforto e segurança para os familiares tomarem decisões; uma vez que saber a real vontade do paciente poderia amenizar possíveis angústias geradas pela dúvida sobre o melhor direcionamento da situação, amenizando conflitos intrafamiliares. Além disso, saber a real vontade do paciente pode auxiliar no processo de aceitação da terminalidade pela família.
[...] para a família decidir pelo paciente inconsciente, o que é melhor pra ele, é um peso muito grande, e muita gente não teve essa conversa antes [...] Essa semana ainda uma paciente que poderia ser “paliativada” foi levada para a UTI porque a filha não conseguiu tomar a decisão, os irmãos eram ausentes, eles não queriam se envolver e ela sozinha não conseguiu decidir e a mãe nunca manifestou à vontade, então é complicado. (P18).
Citações Captação do novo emergente
Então, a vantagem dos familiares é saber o que o paciente manifestou, mas no momento certo de aplicar talvez os familiares possam entrar em conflito. Então, a gente não sabe também qual o momento que gostariam de se posicionar. Geraria uma insegurança. (P06). Mesmo diante da vontade do paciente expressa em forma de DAV, alguns familiares podem discordar do manifesto, gerando conflitos intrafamiliares e questionamentos à equipe de saúde, especialmente nos casos em que haveria um prognóstico favorável caso fossem efetuadas as condutas rechaçadas pelo paciente. Pode haver dificuldades de aceitar a terminalidade de um ente querido.
[...], por exemplo, o familiar não quer isso e o paciente quer, e aí a gente toma uma posição que seria relacionada ao paciente e o familiar pode questionar; o que pesaria seria essa parte da família, que a gente estaria negligenciando o cuidado. (P11).

DISCUSSÃO

Atuar com as pessoas envolvidas no processo de terminalidade e também com suas próprias emoções envolve questões difíceis, que extrapolam o saber técnico e remetem diretamente ao comportamento e valores humanos.15,16 Nessa perspectiva, observou-se que possíveis desgastes gerados no enfrentamento dessas situações podem ser amenizados mediante a utilização das DAV, uma vez que se trata da expressão dos desejos do paciente e como tais devem ser consideradas como um benefício no processo de prestação de assistência à saúde.11 Esse tipo de benefício foi evidenciado nas categorias 1 e 3, ou seja, tanto para os profissionais como para pacientes e seus familiares.

Entretanto, a situação, não é simples de ser enfrentada. Com o propósito das DAV, surgem novas demandas (categoria 2), segundo os participantes. Sob esse aspecto, destacou-se o temor legal, que suscita medo e incertezas, o que pode impedir o uso do instrumento,17 uma vez que as DAV não estão juridicamente amparadas no Brasil, embora estejam regulamentadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) desde 2012.

Além disso, percebeu-se nessa pesquisa que a ausência de um posicionamento claro quanto ao uso do instrumento e/ou uma orientação do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) quanto às DAV faz com que os enfermeiros reflitam sobre o fato de não estarem "assistidos" em situações específicas como esta. Mesmo quando informados acerca da Resolução emitida pelo CFM, os participantes as tomava como um possível amparo apenas aos profissionais médicos. Para a enfermagem se sentir verdadeiramente respaldada, carece a manifestação do COFEN mediante a emissão de Resolução própria, voltada para os profissionais que exercem a enfermagem.

Observou-se também que, de forma direta e indireta, a questão das DAV expõe os membros da equipe de saúde e até mesmo os familiares e os pacientes a situações geradoras de conflitos. É complexo manejar conflitos porque dependem dos valores, crenças, saberes e experiências das pessoas que são diversificados. Ao abordarem as novas demandas (categoria 2), que emergem com o uso das DAV, os profissionais expressam inseguranças que, de certa forma, se relacionam ao próprio processo de terminalidade. Assim como as DAV, a terminalidade impõe que a equipe de saúde desenvolva habilidades e competências de deliberação sobre os conflitos em toda a sua complexidade, de forma adaptativa e sensata.15 Nesse sentido, vale salientar que para lidar com a imprecisão da travessia da vida é fundamental ter consciência dos desafios que, por vezes, tornam-se mais amenos por meio de um convívio respeitoso e profissional.1

Vislumbrou-se ainda, sob o ponto de vista das novas demandas, que os enfermeiros apresentam certa apreensão quanto às diretrizes que contemplam as DAV e sua relação com as rápidas transformações dos aparatos tecnológicos e terapêuticos. É pertinente ressaltar que autores já apontam para limitações das DAV. Segundo os mesmos, reconhecer suas vulnerabilidades e entendê-las é um grande passo para contribuir com o processo da morte e do morrer de maneira mais construtiva.18,6

A relevância das DAV para pacientes e seus familiares (categoria 3) é apontada pelos enfermeiros, especialmente pelo destaque dado à autonomia, como princípio inegável e de ampliação inevitável. Para tal, faz-se necessário que sejam redigidas leis e regulamentações claras para que a autogestão do corpo e da vida como um todo, inclusive do processo de morte, seja compreendida, aceita e respeitada.4,6 Acredita-se que tais condutas possam facilitar a aceitação da terminalidade como uma fase da existência humana.

De modo geral, as DAV tanto podem indicar uma renúncia a tratamentos que prolonguem a vida ou uma decisão de que todas as medidas disponíveis sejam aplicadas para manter a vida. Assim, os pacientes que dispõem de uma DAV manifestam como gostariam de ser tratados em situações de risco de morte ou em condições em que sua capacidade de decisão sobre sua saúde esteja comprometida. Expressam suas preferências sustentadas em seus valores que vão direcionar as ações dos familiares e dos profissionais da saúde.19 O instrumento representa a possibilidade de resgate da autonomia dos pacientes num momento de incapacidade deste em tomar decisões.20

No entanto, a baixa escolaridade, atrelada ao insuficiente conhecimento acerca dos procedimentos e rotinas hospitalares, pode ser uma limitação no exercício da autonomia do paciente. Reconhece-se que certos valores variam de pessoa para pessoa, devendo cada paciente recusar ou receber um tratamento;21 entretanto a autonomia, para ser exercida da melhor maneira possível, precisa estar embasada em informação. Logo, o autor das DAV precisa ter acesso a informações como o curso previsível de determinadas enfermidades, possibilidades de sobrevida, sequelas, entre outras para que seja possível avaliar adequadamente as situações antes de concretizar a elaboração do documento.11

Devido a permanente esperança de recuperação do paciente e a busca pelos avanços tecnológicos pelos familiares (categoria 2) se torna difícil definir os limites na atividade assistencial.17 Respeitar um pedido de limitação de investimentos em um paciente com possibilidades terapêuticas viáveis, graças ao suporte tecnológico vigente, pode ser um conflito para os enfermeiros em virtude do senso de responsabilidade e da possibilidade de envolvimento pessoal entre cuidador e paciente. É reconhecida a necessidade de melhor conciliar os tratamentos com as vontades individuais dos pacientes, priorizando não somente suas necessidades em vida, mas também no momento da morte.17,22,23

Os enfermeiros se mostraram confusos e preocupados diante do caráter ambíguo das DAV que, segundo eles próprios, traz tanto benefícios quanto desafios para o paciente, familiares e profissionais da saúde. Em virtude dessa característica paradoxal, a maioria dos entrevistados não conseguiu se sentir segura para firmar uma opinião quanto à aplicação das DAV na realidade encontrada no Brasil.

Esta é uma limitação do estudo, já que muitos dos achados foram gerados por uma reflexão momentânea no processo de entrevista, não havendo talvez disponibilidade de tempo suficiente para uma reflexão mais arraigada sobre a temática. No entanto, mesmo com essa limitação, os enfermeiros conheciam as dificuldades e inseguranças relacionadas ao cuidado de pacientes em terminalidade, de modo que, mesmo com o desconhecimento prévio sobre as DAV, foi possível para eles elaborarem uma reflexão sobre potenciais benefícios e demandas desse instrumento e conseguindo relacionar de maneira consistente o uso das DAV com esse cotidiano laboral.

Apesar dessa situação, os enfermeiros conseguiram ponderar que se trata de uma documentação com potencial benéfico e significativo, desde que ocorram mudanças legais e culturais, seja nas instituições de saúde, nos órgãos profissionais e na comunidade. Porém, é essencial, ampliar o acesso à informação a respeito das DAV, no sentido de proporcionar apoio, segurança e confiança, com o objetivo de subsidiar o cuidado humanizado.24

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora se admita como limitação deste estudo o fato de ter sido realizado com os enfermeiros de uma única instituição hospitalar, entre os quais poucos conheciam anteriormente as DAV foi importante conhecer a percepção dos enfermeiros sobre elas e sua utilização no contexto hospitalar, pois permitiu aproximações/associações entre esse tema novo e a realidade laboral desses profissionais, estimulando importantes reflexões acerca da terminalidade e autonomia.

De modo geral, o estudo demonstra que as DAV podem trazer maior segurança para a equipe de saúde ao executar as complexas ações cabíveis à terminalidade e, portanto, foi possível concluir com este estudo que as DAV são um instrumento importante para auxiliar as ações de enfermagem. Também foi possível concluir que, além de auxiliar os enfermeiros, as DAV podem ajudar os pacientes a exercerem o direito à autonomia e seus familiares em relação ao enfrentamento das questões referentes à terminalidade, possibilitando a melhor aceitação da morte como parte a existência humana.

Porém, evidenciaram-se dificuldades com o surgimento de novas demandas que podem dificultar a utilização das DAV, dentre elas: incertezas legais; conflitos nas relações entre profissionais, familiares e pacientes, gerados por diferenças culturais e de crenças; insegurança da família com relação à autonomia dada ao paciente; e apreensão quanto às diretrizes que contemplam as DAV e sua relação com as rápidas transformações dos aparatos tecnológicos e terapêuticos.

Assim sendo, as DAV foram reconhecidas nesse estudo como um instrumento parcialmente facilitador de questões éticas envolvendo a terminalidade, uma vez que, mesmo sem uma lei própria regulamentando-as, constituem um documento funcional capaz de atuar como guia para enfermeiros, para os demais profissionais da saúde, assim como para os familiares dos enfermos.

Considerando os resultados do estudo, foi possível perceber que, para os benefícios das DAV serem usufruídos, torna-se importante que ocorram mudanças legais, culturais e estruturais capazes de amenizar o impacto das demandas emergentes à sua utilização, tanto nas instituições de saúde, nos órgãos profissionais e na comunidade para que as DAV possam realmente auxiliar na atuação da enfermagem e, consequentemente, beneficiar a sociedade como um todo. De toda forma, é essencial que se amplie o acesso às informações a respeito das DAV para que ocorra esse processo de conscientização e mudança, possibilitando, assim, um melhor manejo da terminalidade no futuro.

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