versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.111 no.2 São Paulo ago. 2018 Epub 06-Ago-2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180124
A insuficiência cardíaca (IC) representa um grave problema de saúde pública pela alta morbimortalidade e custos envolvidos, exigindo uma melhor compreensão de sua evolução. Em sua patogênese, complexa e multifatorial, a hiperatividade simpática ocupa relevante papel. Considerando que a disfunção simpática está presente já nas fases iniciais da cardiopatia chagásica crônica (CCC), frequentemente associando-se a um pior prognóstico, supomos que pudesse ser mais grave na CCC que nas demais etiologias (não-CCC).
Avaliar a disfunção simpática cardíaca (123I-MIBG) da IC, comparando-se os portadores de CCC aos não-CCC, utilizando os pacientes transplantados cardíacos (TC) como parâmetro de coração desnervado.
Estudamos 76 pacientes com IC classe funcional II-VI, sendo 25 CCC (17 homens), 25 não-CCC (14 homens) e 26 TC (20 homens), pela cintilografia cardíaca (123I-MIBG), estimando-se a captação (HMR) precoce e tardia e o washout cardíaco (Wc%). Nas análises estatísticas, o nível de significância foi de 5%.
Os valores da HMR precoce e da tardia foram 1,73 ± 0,24 e 1,58 ± 0,27, respectivamente, na CCC, e 1,62 ± 0,21 e 1,44 ± 0,16 na não-CCC (p = NS), sendo, porém, mais elevados nos TC (p < 0,001). Os valores de Wc% foram 41,65 ± 21,4 (CCC), 47,37 ± 14,19% (não-CCC) e 43,29 ± 23,02 (TC), p = 0,057. Os valores de HMR tardia apresentaram correlação positiva fraca com a fração de ejeção de ventrículo esquerdo (FEVE) na CCC e na não-CCC (r = 0,42 e p = 0,045; e r = 0,49 e p = 0,015, respectivamente).
Evidenciou-se a presença de hiperatividade simpática (123I-MIBG) em pacientes com IC classe II-IV, FEVE < 45%, independentemente da etiologia da IC, quando comparados aos pacientes TC.
Palavras-chave: Insuficiência Cardíaca; Disautonomias Primárias; Cardiomiopatia Chagásica; Cintilografia Miocárdica; 123 I-metaiodobenzilguanidina (123I-MIBG)
Heart failure (HF) is a severe public health problem because of its high morbidity and mortality and elevated costs, thus requiring better understanding of its course. In its complex and multifactorial pathogenesis, sympathetic hyperactivity plays a relevant role. Considering that sympathetic dysfunction is already present in the initial phases of chronic Chagas cardiomyopathy (CCC) and frequently associated with a worse prognosis, we assumed it could be more severe in CCC than in cardiomyopathies of other etiologies (non-CCC).
To assess the cardiac sympathetic dysfunction 123I-MIBG) of HF, comparing individuals with CCC to those with non-CCC, using heart transplant (HT) patients as denervated heart parameters.
We assessed 76 patients with functional class II-VI HF, being 25 CCC (17 men), 25 non-CCC (14 men) and 26 HT (20 men), by use of cardiac 123I-metaiodobenzylguanidine 123I-MIBG) scintigraphy, estimating the early and late heart-to-mediastinum ratio (HMR) of 123I-MIBG uptake and cardiac washout (WO%). The 5% significance level was adopted in the statistical analysis.
The early and late HMR values were 1.73 ± 0.24 and 1.58 ± 0.27, respectively, in CCC, and 1.62 ± 0.21 and 1.44 ± 0.16 in non-CCC (p = NS), being, however, higher in HT patients (p < 0.001). The WO% values were 41.65 ± 21.4 (CCC), 47.37 ± 14.19% (non-CCC) and 43.29 ± 23.02 (HT), p = 0.057. The late HMR values showed a positive weak correlation with left ventricular ejection fraction (LVEF) in CCC and non-CCC (r = 0.42 and p = 0.045; and r = 0.49 and p = 0.015, respectively).
Sympathetic hyperactivity 123I-MIBG) was evidenced in patients with class II-IV HF, LVEF < 45%, independently of the HF etiology, as compared to HT patients.
Keywords: Heart Failure; Primary Dysautonomies; Chagas Cardiomyopathy; Myocardial/radionuclide imaging; 123 I-metaiodobenzylguanidine 123I-MIBG)
A insuficiência cardíaca (IC) representa hoje um problema de saúde pública pelas proporções epidêmicas, com prevalência mundial superior a 23 milhões de indivíduos, pela sua alta morbimortalidade e, consequentemente, pelos elevados gastos em saúde.1
Uma grande variedade de condições cardíacas pode resultar em IC, cuja prevalência difere quando comparados países desenvolvidos e em desenvolvimento.2 No Brasil, a etiologia isquêmica é responsável por 34,1% dos casos, seguida pela chagásica (21,4%) e hipertensiva (13,2%), estando a chagásica associada a um pior prognóstico.3-6
Estudos prévios sugerem que a patogênese da IC seja complexa e multifatorial,7 exercendo a disautonomia simpática um papel relevante nesse processo.8-11 Na fase inicial da IC, a ativação do sistema nervoso simpático modularia a função de bomba; porém, com o passar do tempo, sua ação se tornaria deletéria, levando ao remodelamento e à reestruturação do miocárdio, com progressivo declínio da função cardíaca.10,12,13 Nesses pacientes, a disfunção simpática se caracterizaria pela significativa redução da captação pré-sináptica da norepinefrina, com consequente elevação de seus níveis séricos e redução da densidade dos b-adrenoreceptores pós-sinápticos.10,13,14
Na cardiopatia chagásica crônica (CCC), está bem estabelecido que há comprometimento precoce do sistema nervoso parassimpático,15,16 acreditando-se, ainda que não totalmente estabelecido, que a disfunção simpática esteja presente também nas fases iniciais da doença,11,17-19 quando a função de bomba cardíaca está preservada e potencialmente associada às arritmias malignas e morte súbita.20-22
Uma vez que a disfunção autonômica cardíaca está presente precocemente na CCC e a incidência de arritmias malignas e morte súbita está elevada nesses pacientes,15,16,20-22 delineou-se este estudo objetivando avaliar a presença e a magnitude da disfunção simpática cardíaca em pacientes chagásicos com IC. Compararam-se pacientes chagásicos versus não-chagásicos, considerando os pacientes submetidos a transplante cardíaco (TC) como padrão de coração desnervado (sabidamente anormais).23 Para essa avaliação, utilizou-se a cintilografia miocárdica com metaiodobenzilguanidina marcada com 123Iodo (123I-MIBG) por adequadamente avaliar a disfunção simpática cardíaca,12,13,24,25 oferecendo parâmetros relevantes para a compreensão da progressão dos quadros de IC.12,13,24
Trata-se de estudo transversal composto por 76 pacientes, selecionados dentre aqueles atendidos no "Ambulatório do Centro de Insuficiência Cardíaca e Transplante Cardíaco" da nossa instituição, no período de março de 2014 a fevereiro de 2016.
Os critérios de elegibilidade para os portadores de IC foram: idade maior que 18 anos; fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) ≤ 45%; etiologia comprovadamente não chagásica ou chagásica (positividade para doença de Chagas confirmada por duas técnicas sorológicas diferentes) associada à disfunção sistólica do ventrículo esquerdo;26 e concordância em participar do estudo. Para os portadores de IC submetidos ao TC (grupo de comparação ou modelo de coração desnervado),23 considerou-se também: tempo de TC inferior a 12 meses. Pacientes portadores de diabetes mellitus, doença renal crônica, doença pulmonar obstrutiva crônica, doença de Parkinson, de ritmo cardíaco não sinusal, ou ainda de marca-passo implantável foram excluídos.
Os pacientes foram estudados prospectivamente, divididos em três grupos: grupo CCC - 25 pacientes portadores de CCC, com média de idade de 53,3 ± 9,2 anos, sendo 17 deles do sexo masculino; grupo não-CCC - 25 portadores de cardiopatias de outras etiologias que não a CCC, dos quais 56% eram portadores de miocardiopatia idiopática, 36% de etiologia isquêmica e 8% de miocardiopatia pós-parto, com média de idade de 43,3 ± 12 anos, sendo 14 do sexo masculino; e grupo TC - 26 pacientes previamente submetidos a TC há menos de 12 meses (média de 6,5 ± 3,8 meses), com média de idade de 47,3 ± 13,1 anos, sendo 20 do sexo masculino. Todos os pacientes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido aprovado pelo Comitê de Ética da instituição, de acordo com a Declaração de Helsinki, e mantiveram-se em controle clínico durante o período deste estudo.
Os dados clínicos, eletrocardiográficos (ECG em repouso) e ecocardiográficos foram coletados pelo mesmo investigador. O ecocardiograma foi realizado utilizando-se o ultrassom Phillips iE33® (Phillips Medical, Andover, MA, EUA), sendo a FEVE estimada utilizando-se a fórmula de Simpson.27 A cintilografia planar de inervação miocárdica foi realizada administrando-se lentamente 111MBq/3mCi de 123I-MIBG (IPEN/CNEN) por via venosa, com aquisição de imagens anterior do tórax após 15 minutos e 180 minutos em gama-câmara Hawkeye® (GE healthcare, Milwaukie, EUA), 10 min/frame, fotopico do 123I de 159KeV, janela de 20%, colimador de baixa energia e alta resolução (LEHR). A região de interesse (ROI) do coração foi traçada englobando todo o ventrículo esquerdo e a do mediastino superior, traçando-se um ROI quadrado de 12x12 pixels. As captações cardíacas precoce e tardia foram estimadas pela razão entre as contagens radioativas da ROI cardíaca e do mediastino na imagem precoce (HMR precoce) e na tardia (HMR tardia), respectivamente. O washout cardíaco (Wc%) da 123I-MIBG foi calculado pela fórmula: (captação cardíaca precoce captação mediastino precoce) (captação cardíaca tardia captação mediastino tardia) / (captação cardíaca precoce captação mediastino precoce) x 100, sem considerar o decaimento radioativo, expressos em porcentagem28 (Figura 1). Dois médicos nucleares analisaram separadamente as imagens, com 98% de concordância interobservador, definindo-se valores de Wc% > 27% e de HMR tardia ≤ 1,8 como anormais.29
Figura 1 Imagem planar na projeção anterior do tórax precoce (15 min) e tardia (180 min) de cintilografia com 123I-MIBG, com definição de regiões de interesse (ROIs) posicionadas no mediastino e no coração. ROI: Região de Interesse (ROI) do mediastino, de 12x12 pixels, posicionada no mediastino superior entre os campos pulmonares e ROI do coração, envolvendo o miocárdio na projeção anterior.
Estima-se que a dose efetiva de radiação para o paciente, resultante da administração de 111MBq/3mCi de 123I-MIBG, seja aproximadamente 4,8mSv, comparável a uma das etapas dos estudos de perfusão miocárdica com 99mTc-isonitrila.30
Para esta análise, a amostra de 76 pacientes foi calculada para detectar uma variação de 12% para a captação da 123I-MIBG (HMR) precoce ou tardia, com erro α de 5% e poder de 80% (IC = 95%), para três grupos de pacientes.
Para caracterização da amostra, inicialmente, realizou-se análise descritiva das variáveis: sexo, idade, frequência cardíaca (FC), FEVE, HMR precoce, HMR tardia e Wc% de 123I-MIBG expressos por distribuição de frequência ou medidas de tendência central e variabilidade. Esta análise foi estratificada por grupo (CCC, não-CCC e TC). Na comparação entre os três grupos, para as variáveis categóricas (sexo, FC, NYHA, uso de betabloqueadores), foi realizado o teste qui-quadrado de Pearson; para as variáveis contínuas (idade, FEVE, Wc%), utilizou-se a análise de variância com um fator; e para as comparações múltiplas, utilizou-se o método Least significant difference (LSD). Na análise das variáveis (HMR precoce e tardia) também foi utilizada a análise de variância, baseada, porém, no modelo de medidas repetidas e teste LSD para comparações múltiplas.
Ressalta-se que os pressupostos para a utilização desta análise (ANOVA) foram verificados e aceitos, isto é, a normalidade de resíduos (Teste K-S - Kolmogorov-Smirnov) e variâncias constantes (teste de Levene).
Para análise de correlação entre as medidas de HMR precoce, HMR tardia ou Wc% e a FEVE, utilizou-se teste de correlação de Pearson e seu respectivo valor p. Em todas as análises, considerou-se o nível de significância de 5% e utilizou-se o software estatístico SPSS, versão 17.0 (SPSS Inc., Illinois, EUA).31,32
A Tabela 1 apresenta os dados demográficos, clínicos e ecocardiográficos dos pacientes estudados. Os pacientes portadores de IC medicados com inibidores da enzima conversora de angiotensina (iECA) e betabloqueadores mantiveram o uso dessas medicações. Em cerca de 70% dos pacientes TC, a FC manteve-se acima de 80 bpm (média de 90,7 bpm), enquanto nos portadores de CCC e não-CCC, a média foi de 72,7 bpm e 75,6 bpm, respectivamente (p = 0,03). Nenhum dos pacientes estava em uso de antidepressivos tricíclicos.
Tabela 1 Características demográficas, clínicas e ecocardiográficas dos pacientes
CCC | não-CCC | TC | p | |
---|---|---|---|---|
sexo masculino† | 68,0 | 56,0 | 77,0 | 0,281a |
idade (anos)* | 53,3 ± 9,2 | 43,3 ± 12 | 47,3 ± 13,1 | 0,016c |
FC > 80 bpm† | 30,8 | 33,3 | 69,2 | 0,072a |
NYHA II-IV† | 62,5 | 92,0 | 0,0 | < 0,001a |
FEVE % (ECO)* | 30,6 ± 7,8 | 25,9 ± 8,0 | 66,6 ± 8,3 | < 0,001cCCC = não-CCC < TC |
iECA† | 91,3 | 88 | 77,3 | 0,394 b |
Betabloqueadores† | 91,3 | 100 | 18,2 | < 0,001a CCC = não-CCC > TC |
CCC: cardiopatia chagásica crônica; não-CCC: cardiopatia de outra etiologia que não chagásica; TC: pacientes submetidos a transplante cardíaco; FC: frequência cardíaca, expressa em batimentos por minuto (bpm); NYHA - New York Heart Association (classificação funcional da insuficiência cardíaca); iECA: inibidores da enzima conversora da angiotensina;
(*)expresso pela média e desvio-padrão;
(†)expresso em porcentagem. Nota: a probabilidade de significância estatística para a comparação dos grupos refere-se ao teste
(a)qui-quadrado
(b)Exato de Fisher e
(c)análise de variância.
Os valores de HMR precoce e tardia foram superiores aos descritos para os pacientes TC (p < 0,001) (Tabela 2), porém não diferentes entre os pacientes portadores de IC, sejam CCC ou não-CCC, mesmo quando ajustados para a idade e faixa etária (HMR precoce: p = 0,251 e HMR tardia: p = 0,011). Os valores de HMR precoce dos pacientes CCC foram 8,6% mais elevados que os encontrados para os não-CCC e 39,7% mais elevados que os encontrados para os TC. Por sua vez, os valores para HMR tardia dos CCC foram 9,7% mais elevados que os dos não-CCC e 31,7% maior que os dos TC, conforme ilustrado na Figura 2.
Tabela 2 Parâmetros cintilográficos de disfunção miocárdica (123I-MIBG) nos pacientes CCC, não-CCC e TC
123I-MIBG | CCC | não-CCC | TC | p |
---|---|---|---|---|
HMR precoce* | 1,73 ± 0,24 | 1,62 ± 0,21 | 1,26 ± 0,10 | < 0,001a |
HMR tardia* | 1,58 ± 0,27 | 1,44 ± 0,16 | 1,20 ± 0,12 | < 0,001a |
Wc % | 41,60 ± 21,41 | 47,37 ± 14,19 | 43,29 ± 23,02 | 0,057b |
CCC: cardiopatia chagásica crônica; não-CCC: cardiopatia de outra etiologia que não chagásica; TC: pacientes submetidos a transplante cardíaco; HMR precoce: relação coração/mediastino nas imagens de 15 min (captação precoce); HMR tardia: relação de contagens coração/mediastino nas imagens de 180 min (captação tardia); Wc%: washout cardíaco da 123I-MIBG, expresso em porcentagem;
(*)valores expressos pela média e desvio-padrão. Nota: A probabilidade de significância refere-se à análise de variância baseada em
(a)medidas repetidas e
(b)análise de variância.
Figura 2 HMR precoce e tardia de 123I-MIBG nos pacientes CCC, não-CCC e TC. HMR precoce - relação das contagens coração/mediastino estimada nas imagens de 15 min (captação precoce). Grupos: CCC: cardiomiopatia chagásica crônica; não-CCC: cardiopatia de outra etiologia que não chagásica; TC: transplantados cardíacos; HMR tardia: relação das contagens coração/mediastino estimada nas imagens de 180min (captação tardia).
Os valores do Wc% também não apresentaram diferenças com significância estatística entre os portadores de IC e entre os portadores de IC comparados aos pacientes TC (p = 0,577), conforme ilustrado na Figura 3.
Figura 3 Washout cardíaco da 123I-MIBG (Wc%) nos pacientes CCC, não-CCC e TC. Grupos: CCC: cardiomiopatia chagásica crônica; não-CCC: cardiopatia de outra etiologia que não chagásica; TC: pacientes submetidos a transplante cardíaco.
Por fim, observou-se uma fraca correlação positiva entre os valores de HMR tardia e a FEVE nos pacientes CCC (r = 0,42; p = 0,045). Quando considerados os pacientes não-CCC, observou-se correlação positiva tanto entre a FEVE e a HMR precoce (r = 0,46; p = 0,023) quanto entre a FEVE e a HMR tardia (r = 0,49; p = 0,015), porém, em nenhum dos grupos, nem no de pacientes TC, foi observada correlação entre a FEVE e o Wc%, ilustrado pelas figuras 4, 5 e 6.
Figura 4 Gráfico de dispersão para avaliar a correlação entre a FEVE e a HMR precoce em CCC, não-CCC e TC. HMR precoce - relação das contagens coração/mediastino estimadas nas imagens de 15min (captação precoce); FEVE- fração de ejeção do ventrículo esquerdo. (A) CCC: cardiomiopatia chagásica crônica; (B) não-CCC: cardiopatia de outra etiologia que não chagásica; (C) TC: pacientes submetidos a transplante cardíaco.
Figura 5 Gráfico de dispersão para avaliar a correlação entre a FEVE e a HMR tardia na CCC, não-CCC e TC. HMR tardia - relação das contagens coração/mediastino estimadas nas imagens de 180min (captação tardia); FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo. (A) CCC: cardiomiopatia chagásica crônica; (B) não-CCC: cardiopatia de outra etiologia que não chagásica; (C) TC: pacientes submetidos a transplante cardíaco.
Figura 6 Gráfico de dispersão para avaliar a correlação entre a FEVE e o washout cardíaco da 123I-MIBG (Wc%) na CCC, não-CCC e TC. CCC: cardiomiopatia chagásica crônica; FEVE:fração de ejeção do ventrículo esquerdo. (A) CCC: cardiomiopatia chagásica crônica; (B) não-CCC: cardiopatia de outra etiologia que não chagásica; (C) TC: pacientes submetidos a transplante cardíaco.
Este estudo investigou a presença e a magnitude da disautonomia cardíaca em pacientes com IC, com FEVE ≤ 45%, empregando o método cintilográfico (123I-MIBG) e dividindo os pacientes em três grupos CCC, não-CCC e TC, esse último analisado como padrão de anormalidade, uma vez que representa o modelo coração desnervado.23
Foram encontradas evidências cintilográficas de hiperatividade simpática, traduzidas por baixos valores de captação (HMR precoce e tardia) da 123I-MIBG pelas terminações pré-sinápticas, nos três grupos estudados, conforme dados da literatura.13,23,24,28 A baixa captação da 123I-MIBG traduz a disfunção dos receptores e a perda da integridade das fibras simpáticas pré-sinápticas, reforçando a teoria da hiperatividade simpática na patogênese da IC.8-10,12,24
O método cintilográfico é a única modalidade não invasiva, segura, com sensibilidade suficiente para avaliar o sistema nervoso autônomo simpático,12,24 capaz de oferecer parâmetros reconhecidamente acurados e reprodutíveis para estimar a eficácia da terapêutica clínica13 e o prognóstico de pacientes portadores de IC.13,24,25,33 No entanto, a falta de padronização da aquisição e do processamento das imagens cintilográficas dificulta a incorporação do método na prática clínica, uma vez que inexistem valores de referência bem definidos.28,29 Em meta-análise de sete estudos, totalizando 96 indivíduos saudáveis, Patel e Iskandrian,29 descreveram valores de 2,13 ± 0,3 para HMR e de 20 ± 10% para Wc% (variando de 10 ± 6% a 37 ± 5%) para indivíduos sadios.
Na IC, a literatura relata valores reduzidos de HMR tardia (≤1,80),24 havendo correlação entre redução da captação e pior prognóstico, expresso por maior número de eventos cardíacos e por mortalidade mais elevada.13,24,25 Os valores de HMR tardia encontrados para os nossos pacientes portadores de IC (Tabela 2) foram inferiores aos adotados por diferentes autores que utilizaram como ponto de corte valores < 1,75 (sensibilidade de 84% e especificidade de 60%),13 < 1,68,25 ou ainda, mais restritivo, < 1,60.24
Os valores de HMR encontrados para os pacientes TC (1,20 ± 0,12) foram mais baixos que os encontrados para os portadores de IC, com significância estatística (p < 0,001), em concordância com o descrito pela literatura para pacientes no primeiro ano pós-transplante, especialmente em portadores de cardiopatia idiopática.23,29
Ressalta-se que os pacientes deste estudo estavam em uso regular de betabloqueadores e iECA. Essas drogas não interferem diretamente na captação da noradrenalina, porém, ao melhorar a performance cardíaca e, consequentemente, o tônus simpático, incrementam também a captação da 123I-MIBG.34 Dessa forma, presume-se que os valores de HMR de nossos pacientes estejam superestimados, reforçando o seu grau de disfunção simpática.
Considerando que os valores de HMR tardia dos portadores de CCC (1,580,27) estejam superestimados e que Gadioli et al.,21 encontraram em seu estudo correlação significativa entre os valores de HMR tardia de 1,68 ± 0,19 e arritmias ventriculares severas, supúnhamos que a disfunção simpática fosse mais grave na CCC em função de seus quadros arrítmicos quando comparados aos não-CCC.20,22 No entanto, em nosso estudo, esses valores não diferiram significativamente daqueles dos não-CCC (1,44 ± 0,16), mesmo quando feito ajuste estatístico para idade e FEVE (p = 0,111).
É possível que esse fato se explique pelo quadro avançado de IC dos nossos pacientes, quando a disfunção autonômica simpática sustentada representa um mecanismo deletério na patogênese da própria IC8-10,13,24,25,33 e, portanto, independente da etiologia, conforme descrito previamente por outros autores.13
Por outro lado, a importância da disfunção simpática na CCC vem sendo questionada por diferentes autores em decorrência de: variação da intensidade da desnervação; ausência de correlação entre desnervação parassimpática e extensão da disfunção miocárdica;19 presença da disfunção autonômica já nos estágios precoces da doença de Chagas;4,15,19 correlação entre a persistência do processo inflamatório miocárdico e a morbimortalidade desses pacientes,35 a despeito dos níveis séricos de catecolaminas.
Os valores estimados para o Wc% mostraram-se elevados e anormais nos três grupos estudados, sendo compatíveis com disfunção simpática em pacientes com IC não diferente dos TC (p = 0,577). É possível que o tônus simpático, traduzido pelo Wc%,13,28 encontre-se alterado mais precocemente e de maneira mais acentuada que a HMR tardia e, portanto, podendo até mesmo se constituir em parâmetro mais sensível para avaliação prognóstica, conforme já descrito.33
Por fim, observamos uma correlação positiva, ainda que fraca, porém com significância estatística entre HMR e FEVE nos portadores de IC. A FEVE é rotineiramente utilizada para avaliação prognóstica na IC.22,36 Assim, essa fraca correlação pode indicar que esse parâmetro cintilográfico seja mais acurado e mais precocemente alterado, conforme relatado por Ogita et al., sugerindo que seja melhor preditor prognóstico que a FEVE.33 Ressaltamos também que a correlação entre HMR precoce e tardia com FEVE em pacientes CCC identificada por este estudo ainda não foi descrita na literatura.
Trata-se de estudo transversal, não randomizado e de pacientes portadores de IC avançada, classe funcional II-IV (NYHA), de modo que os achados não podem ser generalizados para todos os portadores de CCC. Não existem valores de referência rigidamente estabelecidos para a quantificação dos parâmetros cintilográficos em função do uso de diferentes metodologias (uso de fator de decaimento, correção da penetração septal do iodo).28,29 A manutenção da medicação pelos pacientes (iECA e betabloqueadores) pode ter superestimado os valores de HMR e influenciado nossos resultados, embora o número de pacientes em uso de medicamentos não tenha diferido entre aqueles com CCC e não-CCC, tendo a maioria dos estudos da literatura sido realizada dessa maneira em função da gravidade da IC.24,25,33
Este estudo evidenciou a presença de disfunção autonômica simpática cardíaca à cintilografia miocárdica (123I-MIBG) independentemente da etiologia da IC, sendo de mesma magnitude em portadores de CCC e não-CCC quando comparados a pacientes TC.