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Disestesia do escalpo. Relato de caso

Disestesia do escalpo. Relato de caso

Autores:

Leticia Arrais Rocha,
João Batista Santos Garcia,
Thiago Alves Rodrigues

ARTIGO ORIGINAL

BrJP

versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192

BrJP vol.3 no.1 São Paulo jan./mar. 2020 Epub 27-Fev-2020

http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20200016

INTRODUÇÃO

A disestesia de escalpo (DE), descrita pela primeira vez em 19981, é classificada como uma das várias síndromes de dor cutânea crônica. Caracteriza-se pela presença de diversos sintomas localizados ou difusos, como queimação, dor, prurido ou sensações de picada, na ausência de uma desordem cutânea primária2,3. É por muitas vezes subdiagnosticada e confundida com a dermatite seborreica4. Pode ser causada por condição psiquiátrica, lesão nervosa, tensão muscular ou lesão cirúrgica direta. Representa um tipo de síndrome de dor crônica com sensações disestésicas transmitidas via fibras C amielinizadas aferentes5. Entretanto, não há consenso quanto à fisio-patologia, em parte pela grande complexidade anatômica e de todos os componentes da região do couro cabeludo, como a microflora, o sebo de produção regional e os circuitos neurais, que podem exercer influência sobre as manifestações de possíveis alterações na região3. O manuseio da DE não é padronizado, considerando que não existem estudos maiores1,2.

O objetivo deste relato foi descrever um caso de DE, desde a sua investigação clínica e laboratorial até a conduta adotada.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 38 anos. Primeiramente foi ao Serviço de Dermatologia do hospital com queixa de prurido no couro cabeludo há 5 anos. O exame dermatoscópico afastou dermatite se-borreica, psoríase, prurido pós-herpético e outras afecções de couro cabeludo. O paciente foi, então, encaminhado ao Serviço de Dor. Durante a consulta no serviço o paciente se queixava de sensações disestésicas, como formigamento e prurido em região biparieto-oc-cipital, que piorava com o calor, associados à dor intensa diária, intermitente e com queimação na região cervical. Após novo exame físico foram encontradas evidências de escoriações ligadas a esse prurido. Solicitou-se ressonância nuclear magnética (RNM) da região cervical e do crânio para avaliar possíveis alterações anatômicas que pudessem explicar o quadro. Iniciou-se o tratamento clínico com ga-bapentina (300mg) a cada 12h, associado à amitriptilina (12,5mg) em dose única diária por via oral.

A RNM evidenciou retificação fisiológica da coluna cervical, osteófi-tos periféricos com formação de sindesmófitos nos corpos vertebrais de C6 e C7, redução de altura e desidratação de seus respectivos discos vertebrais, caracterizada por hipossinal em T2, complexo dis-co-osteofitário posterior a C6-C7, com redução da amplitude das neuroformações correspondentes e pequena protrusão focal central ao nível de C3-C4.

Após instituição do tratamento, realizou-se estudo eletroneuromio-gráfico com teste de limiar sensitivo em regiões parietais, temporais, frontais e occipitais, estando o limiar de sensibilidade simétrico bilateral dentro dos padrões de normalidade. Com o ajuste para doses diárias de gabapentina (900mg) e amitriptilina (25mg), em três meses o paciente apresentou melhora importante do prurido e parestesia em região occipital, apenas com episódios esporádicos associados à exposição solar da região relacionada à sua atividade laboral.

DISCUSSÃO

A DE é descrita como uma das várias síndromes de dor cutânea crônica, que incluem a da boca ardente, da vulvodínia, da escrotodinose e da dor facial atípica1-3. Não tem preferência por raça ou sexo, tampouco é considerada uma doença grave, porém apresenta inúmeros impactos negativos na qualidade de vida do paciente6.

É caracterizada clinicamente por presença de diversos sintomas localizados ou difusos, como queimação, dor, prurido ou sensações de picada, sendo que podem estar presentes mais de uma sensação disestésica na mesma área4. Para realizar o diagnóstico, que é essencialmente clínico, é necessária a ausência de uma desordem cutânea primária, sendo que na literatura alguns padrões dermatoscópicos são propostos em pacientes com esta síndrome. Na tricoscopia, os mais comuns foram a tricoptilose e a cobertura das lesões por cabelos pequenos e uniformes em tamanho, sendo que alguns deles tinham características de tricorrexia nodosa, com achados que indicam lesão mecânica5. No caso reportado não houve, à primeira consulta, achados no exame físico, somente após novo exame foram encontradas leves escoriações.

O paciente apresentou alterações de coluna cervical no exame de imagem, algo que já foi demonstrado como comum, em especial sob a forma de doença degenerativa de disco. A patogenia dessa anormalidade no exame de imagem de cervical pode ser associada, como dito já descrito, à tensão muscular crônica colocada nos músculos pericranianos e na aponeurose do couro cabeludo, secundária à doença da coluna mostrada em imagem2,8. Pode estar associada ou não a distúrbios psiquiátricos, sendo os transtornos mais comuns o depressivo persistente, ansiedade generalizada e somatização2,6. Apesar dos achados corroborarem com as teorias etiológicas encontradas na literatura, não há consenso quanto origem da DE.

Não há consenso sobre o tratamento da DE, mas existem algumas opções na literatura que demonstraram boa resposta. Como a DE é uma síndrome associada a alterações de fibras finas, trata-se como neuropatia e, portanto, utiliza-se a gabapentina associada a antide-pressivos tricíclicos em baixas doses, no caso a amitriptilina, alcançando resultados satisfatórios. A maioria dos casos já relatados na literatura, assim como este, demonstraram boa resposta e até ausência por completo dos sintomas clínicos relatados1-4. Dentre as outras formas de tratamento, existe a associação de fármacos, ainda não disponível no Brasil, feita de amitriptilina, cetamina e lidocaína4, além de exercícios físicos e fisioterapia, já que a DE pode estar diretamente relacionada a problemas cervicais e de coluna8.

Esta síndrome se caracteriza como uma condição desafiadora e fTus-trante para o paciente e para o médico, pois não possui patogênese nem tratamentos bem estabelecidos ou mesmo baseados em evidências. É necessária uma uniformização na conduta terapêutica por meio da realização de mais estudos sobre o tema, como a melhor via de administração, dose e fármaco.

CONCLUSÃO

Este relato corroborou alguns resultados já descritos na literatura como a associação com alterações cervicais e a melhora por meio do uso de antidepressivos em baixas doses e de anticonvulsivantes como a gabapentina.

REFERÊNCIAS

1 Hoss D, Segal S. Scalp dysesthesia. Arch Dermatol. 1998;134(3):327-30.
2 Thornsberry LA, English JC 3rd. Scalp dysesthesia related to cervical spine disease. JAMA Dermatol. 2013;149(2):200-3.
3 Sarifakioglu E, Onur O. Women with scalp dysesthesia treated with pregabalin. International J Dermatol. 2012;52(11):1417-8.
4 Kinoshita-Ise M, Shear NH. Diagnostic and therapeutic approach to scalp dysesthesia: a case series and published work review. J Dermatol. 2019;46(6):526-30.
5 Rakowska A, Olszewska M, Rudnicka L. Trichoscopy of scalp dysesthesia. Postepy Dermatol Alergol. 2017;34:245-7.
6 Shumway NK, Cole E, Fernandez KH. Neurocutaneous disease: neurocutaneous dysesthesias. J Am Acad Dermatol. 2016;74(2):215-28.
7 Bin Saif G, Ericson ME, Yosipovitch G. The itchy scalp--scratching for an explanation. Exp Dermatol. 2011;20(12):959-68.
8 Laidler NK, Chan J. Treatment of scalp dysesthesia utilising simple exercises and stretches: a pilot study. Australas J Dermatol. 2018;59(4):318-21.