versão impressa ISSN 1808-8694
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.80 no.6 São Paulo set./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2014.09.002
A somatização dos distúrbios emocionais através da voz é conhecida há anos e é denominada de disfonia funcional psicogênica.1,2 Este diagnóstico nem sempre é concluído no primeiro contato com o paciente, e parte das dificuldades reside nas diferentes formas de manifestação desse distúrbio vocal. Além disso, os pacientes tendem a omitir seus conflitos emocionais, mesmo quando insistentemente questionados, refletindo uma resistência inicial para relacionar os sintomas físicos às questões emocionais. Outro problema na confirmação do diagnóstico das disfonias psicogênicas é a necessidade de exclusão de outras doenças que podem manifestar sintomas vocais semelhantes, como as doenças infecciosas agudas, a paralisia das pregas vocais, a disfonia espasmódica e as doenças neuromusculares.3–5
Na disfonia psicogênica, conflitos familiares ou profissionais são frequentemente identificados. Pode haver comprometimento do controle respiratório, da intensidade, extensão e ressonância vocais, da frequência fundamental, da articulação, da velocidade e da entonação da fala.1,3 Na maioria dos casos, mais de um parâmetro vocal encontra-se alterado, de forma permanente ou não. O início dos sintomas vocais relacionados à disfonia psicogênica é geralmente repentino e pode ser descrito com precisão pelo paciente.4 O curso intermitente da disfonia psicogênica é a forma de evolução mais frequente, na qual períodos de voz normal se alternam com períodos de afonia ou de disfonia.2–6 Estas flutuações na emissão vocal são geralmente constatadas logo nos primeiros minutos da consulta médica, orientando o médico para o diagnóstico.
Considerando a diversidade de manifestações clínicas apresentada pelos pacientes portadores de disfonias psicogênicas, torna-se valiosa a troca de experiência entre os profissionais de saúde a fim de facilitar o diagnóstico. Assim, o objetivo deste estudo foi analisar as diversidades de apresentações clínicas e vocais de uma série de casos de pacientes com diagnóstico de disfonia psicogênica.
Estudo prospectivo que incluiu pacientes adultos, de ambos os sexos, com idade superior a 20 anos e, diagnóstico de disfonia psicogênica, atendidos nos ambulatórios de distúrbios da voz de um hospital universitário, no período entre 2002 a 2014, sendo excluída a população infantil e de adolescentes. Os pacientes foram incluídos no estudo em fluxo contínuo, após confirmação do diagnóstico, obtido em avaliação multidisciplinar entre médico otorrinolaringologista, psicólogo e fonoaudióloga. Todos os pacientes preencheram o protocolo de avaliação de distúrbios da voz padronizado no ambulatório e foram submetidos aos exames de videola- ringoestroboscopia e às avaliações fonoaudiológicas e psicológicas.
A videolaringoestroboscopia foi realizada sempre pelo mesmo médico otorrinolaringologista e autor da pesquisa, utilizando-se telescópio rígido (70°, 8 mm, marca Asap, Alemanha) ou nasofibroscópio flexível (3,3 mm, Ollimpus, Japão) naqueles pacientes que não permitiram o exame com o telescópio. Para a captura de imagens utilizou-se sistema conjugado (multifunctional videosystem type XE - 50, Eco V 50W X - TFT / USB - Carl - Zeiss, Alemanha). Durante essas avaliações foram investigadas: a presença de lesões laríngeas, secreções, coloração das mucosas e mobilidade das pregas vocais, presença de fendas glóticas, presença de movimentos anormais e comportamento das pregas vestibulares durante a fonação e inspiração (tensão, hiperconstrição). Esses exames foram complementados pela laringoestroboscopia (Fonte de luz estroboscópica marca Atmos - modelo Endo-Stroboscopel, Alemanha), atentandose para a amplitude, simetria, sincronismo e periodicidade do movimento muco-ondulatório, além da fase de abertura e de fechamento glótico.
Foram registrados os seguintes parâmetros: sexo, idade, profissão, características dos sintomas vocais, duração e evolução, achados de videolaringoestroboscopia e forma de apresentação de emissão vocal.
O diagnóstico de disfonia funcional psicogênica foi estabelecido nos pacientes que apresentavam os sintomas vocais acompanhados de exames de videolaringoscopia normais, apresentando apenas disfunções motoras funcionais impróprias utilizadas como ajustes fonatórios, e com suspeita de distúrbio psicoemocional relacionado ao quadro de disfonia2,3 confirmado nas avaliações psicológicas e fonoaudiológicas. Foram questionados e excluídos os pacientes com relato recente de infecções das vias respiratórias ou demais comorbidades realcionadas ao quadro atual de disfonia.
Após a confirmação do diagnóstico iniciou-se a terapia multidisciplinar (psicoterapia e fonoterapia) em todos os pacientes, cujo período variou entre três a seis meses, havendo remissão do quadro de disfonia em períodos variáveis para cada paciente e maior estabilidade psicoemocional em todos os casos com o suporte psicoterapêutico. Todos os pacientes foram acompanhados nos ambulatórios após a alta da terapia psicológica e fonoaudiológica durante um período de quatro a seis meses, e não apresentaram recidivas dos sintomas durante esse período de follow-up.
A classificação adotada para caracterizar o tipo de emissão vocal foi a estabelecida por Behlau,2 como sendo: afonia de conversão, uso divergente de registros, falsete de voz, vocalização intermitente, síndrome de tensão muscular esquelética, disfonia vestibular, a disfonia por fixação de registro basal, disfonia espasmódica psicogênica por adução e disfonia por movimentos paradoxais das pregas vocais. Os pacientes com lesões laríngeas orgânicas e com diagnósticos duvidosos foram excluídos. O projeto recebeu aprovação do Comitê de Ética da Universidade onde foi desenvolvido (Plataforma Brasil n° 18033313.6.0000.5411).
A tabela 1 sumariza os parâmetros analisados nos 28 pacientes incluídos neste estudo. Dentre os 28 pacientes com diagnóstico de disfonia psicogênica, pertencentes à faixa etária entre 26 a 78 anos, 26 eram mulheres e dois eram homens. O início súbito dos sintomas foi relatado por um grande número de pacientes (n - 16), a duração dos sintomas por mais de três meses foi relatada por 21 pacientes e o curso intermitente da disfonia por 15. Quanto à profissão, a grande maioria dos pacientes realizava atividades domésticas (n - 18). O tipo mais frequente de apresentação vocal foi a afonia de conversão (n - 17), a sonoridade intermitente (n - 5) e a tensão musculoesquelética (n - 5). Ao exame de videolaringoestroboscopia, todos os pacientes apresentavam pregas vocais sem lesões estruturais ou alterações em sua mobilidade. Em cinco pacientes foi identificada hiperconstrição das pregas vestibulares durante a fonação e fenda glótica triangular anteroposterior. Dentre os pacientes com afonia de conversão, cinco apresentavam fenda glótica anteroposterior. Todos os pacientes apresentaram remissão dos sintomas vocais e melhor controle psicoemocional após o tratamento fonoaudiológico e psicológico. Durante o seguimento de 4 a 6 meses não identificamos recidivas dos sintomas em nenhum paciente.
Tabela 1 Características clínicas, achados videolaringoscópicos e tipo de emissão vocal em pacientes com disfonia psicogênica
Caso | Sexo | Idade | Início dos sintomas | Profissão | Duração dos sintomas | Curso dos sintomas | Videolaringoscopia | Tipo de emissão vocal |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1 | F | 25 | Progressivo | Doméstica | Acima de 6 m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, hipercontração das pregas vestibulares. Fenda glótica triangular anteroposterior | Afonia de conversão e tensão musculoesquelética |
2 | F | 26 | Súbito | Professor | Entre 3 m e 6 m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal, pregas vocais estiradas | Falseto de conversão |
3 | F | 26 | Progressivo | Doméstica | Acima de 6 m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal, Fenda glótica anteroposterior | Afonia de conversão |
4 | F | 28 | Súbito | Doméstica | Entre 1 m e 3 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Sonoridade intermitente |
5 | F | 31 | Súbito | Doméstica | Acima de 6 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, hipercontração das pregas vestibulares. Fenda glótica triangular anteroposterior | Sonoridade intermitente e tensão musculoesquelética |
6 | F | 35 | Súbito | Doméstica | Acima de 6m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Uso divergente de registro |
7 | F | 37 | Súbito | Professor | Acima de 6m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal, fenda glótica anteroposterior | Afonia de conversão |
8 | F | 39 | Súbito | Doméstica | Acima de 6 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Sonoridade intermitente |
9 | F | 40 | Súbito | Enfermeira | Entre 1 m e 3 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal, fenda glótica anteroposterior | Afonia de conversão |
10 | F | 40 | Progressivo | Vendedora | Entre 1 m e 3 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, hipercontração das pregas vestibulares. Fenda glótica triangular anteroposterior | Afonia de conversão e tensão musculoesquelética |
11 | F | 40 | Progressivo | Doméstica | Entre 1 m e 3 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Afonia de conversão |
12 | F | 40 | Progressivo | Doméstica | Acima de 6 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Afonia de conversão |
13 | F | 41 | Súbito | Doméstica | Acima de 6m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal, fenda glótica anteroposterior | Afonia de conversão |
14 | F | 42 | Súbito | Professora | Entre 3 m e 6 m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Afonia de conversão |
15 | F | 42 | Progressivo | Doméstica | Acima de 6 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Sonoridade intermitente |
16 | F | 50 | Súbito | Doméstica | Acima de 6 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Afonia de conversão |
17 | F | 50 | Progressivo | Vendedora | Acima de 6 m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Afonia de conversão |
18 | M | 55 | Súbito | Vendedora | Entre 3 e 6 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Disfonia psicogênica espasmódica |
19 | F | 56 | Progressivo | Vendedora | Acima de 6 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Uso divergente de registro |
20 | F | 56 | Progressivo | Professora | Acima de 6 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, hipercontração das pregas vestibulares. Fenda glótica triangular anteroposterior | Afonia de conversão e tensão musculoesquelética |
21 | F | 58 | Progressivo | Doméstica | Acima de 6 m | Iintermitente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Afonia de conversão |
22 | F | 59 | Progressivo | Vendedora | Acima de 6 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Afonia de conversão |
23 | F | 62 | Súbito | Psicóloga | Entre 1 m e 3 m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal, fenda glótica anteroposterior | Afonia de conversão |
24 | F | 64 | Súbito | Doméstica | Entre 1 m e 3 m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Afonia de conversão |
25 | F | 68 | Súbito | Doméstica | Entre 1 m e 3 m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Disfonia psicogênica espasmódica |
26 | F | 68 | Súbito | Doméstica | Acima de 6 m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Sonoridade intermitente |
27 | M | 72 | Progressivo | Aposentada | Entre 3m e 6 m | Intermitente | Ausência de lesões estruturais, mobilidade normal | Disfonia psicogênica espasmódica |
28 | F | 75 | Súbito | Aposentada | Acima de 6 m | Permanente | Ausência de lesões estruturais, hipercontração das pregas vestibulares. Fenda glótica triangular anteroposterior | Tensão musculoesquelética |
A disfonia psicogênica é considerada uma desordem vocal funcional, uma vez que não se observam lesões laríngeas estruturais ou alterações neurológicas relacionadas diretamente aos sintomas vocais atuais.2,3,6 As disfonias psicogênicas predominam entre as mulheres, em uma proporção muito alta, como demonstrada neste estudo (26:2), bem como por outros autores.2–5 O acúmulo de tarefas diárias, tanto domésticas como profissionais, é destacado como potencialmente responsável pela maior demanda das mulheres nas consultas com psicólogos e psiquiatras, especialmente nos dias atuais, com participação importante da mulher no orçamento doméstico.5 Neste estudo, a maioria dos pacientes exercia tarefas domésticas como profissão e apenas quatro pacientes eram professores. Muitos autores, no entanto, têm enfatizado a alta incidência de disfonia psicogênica entre os professores, o que está relacionado à sobrecarga profissional, pois a maioria deles geralmente trabalha em turno completo.7
Na disfonia psicogênica, distúrbios psicoemocionais e psicossociais são geralmente identificados, incluindo ansiedade, angústia, depressão, a reação de conversão (incluindo disfonia), transtornos de personalidade e os conflitos interpessoais na família ou ambiente profissional.2,3,8 A faixa etária predominante é aquela em que as mulheres estão em intensa atividade profissional, entre 30 e 50 anos de idade, como verificado também neste estudo. Em crianças e adolescentes, a disfonia psicogênica é rara, mas, quando ocorre, é geralmente relacionada às situações traumáticas de abuso sexual ou morte de familiar próximo.9
Os exames de videolaringoscopias nas disfonias psicogênicas não identificam lesões laríngeas orgânicas; entretanto, desordens funcionais estão normalmente presentes durante a emissão vocal, tais como tremores, adução das pregas vocais em tensão, fonação ventricular com hipercontração e constrição, fendas glóticas e movimentos paradoxais das pregas vocais. Assim, o exame de videolaringoscopia nem sempre é capaz de diferenciar a disfonia psicogênica de outras disfonias funcionais, e os exames de estroboscopia, eletromiografia e as medidas vocais acústicas e perceptivoauditiva tornam-se importantes.10–12
Nas análises vocais perceptivo-auditivas, nota-se dificuldade na manutenção da estabilidade da emissão vocal devido à falta de controle dos músculos da laringe. Outros achados são graus variados de tensão musculoesquelética e de soprosidade. Esta última condição é frequentemente observada na emissão vocal da insuficiência glótica e constitui um valioso recurso para minimizar a fenda glótica, no entanto, também tem sido observada na disfonia psicogênica e pode resultar na fonação ventricular.
Na série de casos apresentados na tabela 1 observa-se predomínio da afonia de conversão, da sonoridade intermitente e da tensão musculoesquelética. A afonia de conversão tem sido destacada por diversos autores como sendo a principal forma de apresentação de disfonia psicogênica, corroborando nossos achados.1,2,4 No entanto, Schalen et al.3 enfatizaram que este padrão vocal também pode ser encontrado na laringite aguda inflamatória e nas paralisias das pregas vocais, não sendo específica dos distúrbios emocionais, confirmando a importância da inclusão dessas informações na anamnese. Esses autores conduziram um estudo com 40 pacientes com diagnóstico de disfonia psicogênica e com um grupo de pacientes com laringite infecciosa aguda e não encontraram diferenças no padrão de emissão vocal entre os grupos, alertando-nos para a necessidade de valorizar o exame físico e a história clínica.
Bader e Schick13 ressaltaram o frequente atraso no diagnóstico dos pacientes com disfonia psicogênica, culminando em erros no diagnóstico e no tratamento, sendo que muitos desses pacientes são submetidos a tratamentos medicamentosos, inclusive com antibióticos, de forma desnecessária. Reiter et al.14 destacaram a importância do tratamento multidisciplinar na abordagem desses pacientes. Os autores avaliaram 40 pacientes com disfonia psicogênica e os benefícios do tratamento (terapia vocal e/ou psicoterapia) foram avaliados por meio da aplicação de protocolos de qualidade de vida em voz (VHI). Neste grupo de pacientes, 70% deles referiram melhora ou resolução dos sintomas vocais, entretanto, a psicoterapia foi realizada e aceita por apenas 37,5% deles.
Quando a fonoterapia foi utilizada isoladamente, apenas 12,5% dos pacientes referiram melhora dos sintomas vocais. No nosso estudo, acreditamos que o tratamento multidisciplinar tenha sido a chave do sucesso e da evolução favorável de todos os pacientes. Em pacientes resistentes à psicoterapia o tratamento é difícil, árduo e prolongado, exigindo esforço, disciplina e determinação por parte do paciente e do terapeuta.2 Sudhir et al.15 e Baker16 reforçam a relevância do tratamento multidisciplinar nas disfonias psicogênicas e enfatizaram a importância de se entender a complexa relação entre os comportamentos neuropsicológico, intrapsicológico e interpessoal que afeta esses pacientes.
Nesta série de casos de pacientes com diagnóstico de disfo-nia psicogênica, a forma de apresentação clínica mais frequente foi a afonia de conversão, seguida pela tensão musculoesquelética e sonoridade intermitente. Frente à diversidade na apresentação clínica e vocal dos pacientes com disfonia psicogênica, a abordagem multidisciplinar (otorrinolaringológica, fonoaudiológica e psicológica) é fundamental para a boa evolução desses pacientes.