versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782
J. Pediatr. (Rio J.) vol.95 no.5 Porto Alegre set./out. 2019 Epub 28-Out-2019
http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2018.07.004
É um equívoco comum acreditar que o infarto do miocárdio e o acidente vascular cerebral são eventos agudos que atacam de forma repentina e inesperada adultos de meia-idade e idosos. No entanto, os estudos Bogalusa, Muscatine, Young Finns e PDAY demonstram claramente que a aterosclerose é uma doença crônica e progressiva que começa na infância.1 A identificação de crianças em alto risco e a implantação de medidas preventivas desde a mais tenra idade são, portanto, criticamente importantes.
Os determinantes cruciais da aterosclerose na adolescência e na idade adulta incluem obesidade, hiperlipidemia, hipertensão, intolerância à glicose, tabagismo, sedentarismo, além de histórico familiar de doença cardiovascular e acidente vascular cerebral precoces. As primeiras lesões estruturais da aterosclerose, estrias gordurosas, podem ser detectadas mesmo em crianças pequenas. O acúmulo de macrófagos carregados de lipídios, monócitos e células T é seguido por agregação plaquetária, proliferação de células musculares lisas vasculares e a formação de uma lesão envolta por músculo liso e colágeno, conhecida como placa fibrosa. Mas, antes do surgimento de estrias gordurosas e placas, há alterações na função endotelial que se manifestam como maior permeabilidade às lipoproteínas, up-regulação das moléculas de adesão de leucócitos e translocação de leucócitos para a parede arterial.2 Essas estão associados a alterações funcionais na complacência e reatividade micro e macrovascular, as quais estão associadas, ao menos em adultos, à mortalidade por doença cardiovascular.3
Conforme avaliado através de reduções na dilatação mediada por fluxo da artéria braquial e hiperemia mediada por fluxo de vasos periféricos, a disfunção endotelial tem sido demonstrada em crianças e adolescentes com obesidade e resistência à insulina.4 No entanto, os papéis da dieta e da atividade física no controle da função vascular em jovens obesos e magros são mal compreendidos.
O estudo de Penha et al.5 avaliou a relação entre a atividade física em crianças pré-púberes e a função vascular medida pela pletismografia de oclusão venosa. Esse método avalia alterações no volume do membro após a oclusão venosa. Um aumento agudo no volume do membro durante a obstrução do fluxo venoso reflete o influxo sanguíneo arterial, que depende da capacidade dos vasos arteriais maiores de superar a resistência de pequenas arteríolas; um aumento inadequado do volume do membro durante a oclusão venosa reflete maior resistência, ou menor capacidade vasodilatadora, de vasos de baixa resistência. Assim, a técnica é uma medida indireta da vasorreatividade da microcirculação.
Os autores encontraram uma resposta hiperêmica reduzida à oclusão venosa em crianças com sobrepeso e obesidade, associada a medidas de adiposidade (% de gordura corporal e hiperleptinemia). Curiosamente, não houve relação entre a reatividade vascular arterial e a aptidão física ou atividade física habitual, avaliada por questionário e por um teste de corrida. O desempenho da corrida correlacionou-se negativamente com a gordura corporal e a circunferência da cintura; ainda não está claro se a diminuição na aptidão física é uma causa ou consequência (ou ambos) da adiposidade.1
Os autores não exploraram os mecanismos pelos quais a obesidade reduz a reatividade microvascular em crianças pré-púberes. Um defeito no relaxamento vascular pode significar um déficit de geração de óxido nítrico (NO) pelas células endoteliais vasculares ou uma resposta prejudicada das células musculares lisas vasculares ao NO ou a outras substâncias vasodilatadoras endógenas.6,7 A síntese endotelial do NO é controlada em parte pela insulina e por vários outros hormônios e citocinas. Em indivíduos magros, a insulina promove vasodilatação, aumenta a expressão da óxido nítrico-sintase endotelial (eNOS); essa ação é mediada pela fosforilação da tirosina dos substratos 1 e 2 do receptor de insulina e pela ativação da fosfoinositídeo 3-quinase (PI-3 quinase) e Akt. Na obesidade e em outros estados associados à resistência à insulina, a fosforilação da serina dos substratos do receptor de insulina inibe a ativação da PI-3 quinase e Akt e impede a geração de NO; nessas condições, a insulina promove vasoconstrição através da indução de endotelina-1 mediada pela proteína quinase ativada por mitógeno (MAPK). 6,7 Os indivíduos com sobrepeso neste estudo eram resistentes à insulina, conforme determinado pela hipoadiponectinemia e aumentos no HOMA-IR e na razão triglicerídeos/HDL-C. No entanto, a resposta hiperêmica não se correlacionou com medidas de sensibilidade à insulina.
Em paralelo aos seus efeitos sobre a sensibilidade à insulina, a obesidade pode prejudicar a função endotelial através do acúmulo de gordura visceral e perivascular e inflamação vascular: a hipertrofia induzida pela obesidade de adipócitos brancos viscerais e perivasculares é acompanhada pela acidemia gordurosa livre, infiltração de macrófagos e geração de citocinas inflamatórias e espécies reativas de oxigênio. Em conjunto, essas promovem inflamação tecidual, reduzem a disponibilidade de NO vascular e inibem a resposta vasodilatadora de células musculares lisas ao NO. 6-8 Outros fatores que contribuem para a perda da complacência vascular na obesidade incluem a ativação do sistema nervoso simpático pela hiperleptinemia, 6-8 indução da atividade renina-angiotensina-aldosterona via aumento da produção de angiotensinogênio de adipócito branco6-9 e perda de perfusão capilar associada à hipoadiponectinemia.6-10
Qual a significância da disfunção endotelial em crianças com sobrepeso e obesidade? A perda da vasodilatação endotelial provavelmente contribui para a hipertensão, uma comorbidade comum em indivíduos obesos, e para o desenvolvimento de glomeruloesclerose relacionada à obesidade.7 Igualmente ou ainda mais preocupante, evidências experimentais sugerem que a disfunção endotelial pode limitar o fluxo sanguíneo cerebral e predispor a disfunções cognitivas.7
A relação entre disfunção endotelial em crianças pré-púberes e doença cardiovascular em adultos é menos clara. Nenhum estudo até o momento demonstrou claramente que a disfunção endotelial pré-puberal predispõe a infarto do miocárdio ou acidente vascular cerebral. Por outro lado, a obesidade durante a infância e adolescência aumenta os riscos de doença arterial coronariana se o excesso de deposição de gordura persistir na vida adulta. Um grande estudo longitudinal (n = 2,3 milhões) de adolescentes israelenses11 descobriu que a obesidade na idade média de 17,3 anos estava associada a um aumento de 4,9 vezes no risco de doença arterial coronariana e a um aumento de 4,1 vezes na morte por doença cardiovascular nas idades de 47 a 57 anos. Riscos menores (mas estatisticamente significativos) de eventos coronarianos agudos futuros (aumento de 10% para cada aumento de uma unidade no z-IMC) foram observados em um estudo de crianças dinamarquesas de sete a 13 anos.12 Por fim, uma metanálise13 mostrou que um DP de aumento no IMC na infância e adolescência (7-18 anos) prediz um aumento de 14 a 30% no risco de doença cardíaca coronária em adultos.
No entanto, a associação do espessamento intimal carotídeo com obesidade infantil foi eliminada após o ajuste para obesidade em adultos nos estudos Bogalusa, Muscatine e Young Finns.1 Além disso, a mortalidade cardiovascular não aumentou em indivíduos suecos adultos que eram obesos na infância, mas não durante a adolescência ou na vida adulta.14 Dessa forma, a disfunção endotelial em crianças e os riscos relacionados à obesidade para a morbidade e a mortalidade cardiovasculares são potencialmente reversíveis.
Quais medidas podem ser tomadas para reverter a disfunção endotelial em crianças obesas? Sabe-se que a perda de peso promove a geração de NO e uma combinação de dieta e treinamento aeróbico melhora a função endotelial macrovascular em crianças obesas em seis a oito semanas; 15,16 uma intervenção mais prolongada pode ser necessária para melhorar a função endotelial microvascular.17 Acredita-se que o aumento do fluxo sanguíneo nos membros durante episódios de atividade física pode facilitar o aumento da produção e/ou atividade do NO endotelial. Tanto o treinamento aeróbico quanto o de resistência são eficazes;18 no entanto, os benefícios do exercício físico na função vascular parecem se perder caso o treinamento cesse.15
O aconselhamento dietético e de exercícios físicos pode não ser suficiente para indivíduos com disfunção metabólica mais grave; nesses casos, a adição de um agente farmacológico pode ser útil. Por exemplo, uma literatura emergente sugere que a metformina pode melhorar a função endotelial em adultos com resistência grave à insulina, diabetes mellitus tipo 2 e síndrome dos ovários policísticos.19 O fármaco pode, portanto, proporcionar benefícios cardiovasculares e glicêmicos em adolescentes com pré-diabetes ou intolerância à glicose evidente. Inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA) e bloqueadores do receptor da angiotensina II (BRAs) melhoram a vasodilatação dependente do endotélio em adultos com doença renal 9,20 e podem ser úteis em crianças e adolescentes obesos com hipertensão e/ou microalbuminúria.
Ainda existem lacunas importantes em nosso entendimento sobre o desenvolvimento e a patogênese da disfunção vascular e aterogênese em crianças. Estudos de longo prazo de intervenções dietéticas e de exercícios em indivíduos com sobrepeso e obesos aumentarão nossa capacidade de prevenir complicações vasculares em longo prazo e melhorar a qualidade de vida.