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Disfunção primária do enxerto hepático: definições, critérios diagnósticos e fatores de risco

Disfunção primária do enxerto hepático: definições, critérios diagnósticos e fatores de risco

Autores:

Douglas Bastos Neves,
Marcela Balbo Rusi,
Luiz Gustavo Guedes Diaz,
Paolo Salvalaggio

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.14 no.4 São Paulo out./dez. 2016 Epub 24-Out-2016

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082016rw3585

INTRODUÇÃO

O transplante hepático é o tratamento de escolha para pacientes em estágio terminal de doença hepática. Uma das complicações mais graves do transplante hepático é a disfunção primária do enxerto (DPE), que está associada à maior morbidade na fase inicial do transplante, podendo comprometer a sobrevida do enxerto hepático.(1-3)

A DPE está relacionada à lesão de isquemia/reperfusão(1,2) do órgão transplantado e pode ser subdividida em disfunção precoce do enxerto (EAD - early allograft dysfunction) e na forma mais grave, o não funcionamento primário (PNF - primary nonfunction).(3,4) A DPE ocorre em até 38,7% dos transplantes hepáticos;(3) nestes, a incidência de PNF varia entre 0,9% e 8,5%.(1,4)

Diversos trabalhos procuraram estabelecer uma definição para a DPE, seus critérios diagnósticos e os fatores de risco relacionados. A DPE está relacionada com características da cirurgia do transplante, bem como com características clínicas e epidemiológicas do doador e do receptor, que apresentam particularidades diferentes em países Europeus, da América do Norte e da América Latina.(1)

As diversas definições e os critérios diagnósticos sobre o tema dificultam a adoção de uma linguagem universal entre os centros transplantadores. Além disso, os fatores de risco associados apresentam grande variação nos estudos disponíveis. A revisão sobre DPE teve como objetivo proporcionar um amplo conhecimento de definições, critérios diagnósticos e fatores de risco associados a essa importante complicação do transplante hepático em suas diferentes manifestações: a EAD e o PNF.

Para esta revisão, foram pesquisados estudos a partir da base de dados do PubMed publicados entre janeiro de 1980 e junho de 2015 com os termos descritivos: “primary graft dysfunction”, “early allograft dysfunction”, “primary non-function” e “liver transplantation”. Foram encontrados e incluídos artigos originais e de revisão de centros transplantadores da Europa, Estados Unidos, Canadá e Ásia. Há carência de estudos com bom poder estatístico em centros latino-americanos. Estudos com população pediátrica, doadores vivos, transplantes duplos e aqueles realizados em modelos experimentais foram excluídos.

DEFINIÇÃO

Não existe uma definição exata de EAD e PNF na literatura. Sabemos, entretando, que EAD e PNF representam diferentes graus de gravidade na alteração da função do enxerto hepático desde o período intra-operatório e, desse modo, refletem estágios diferentes de uma mesma síndrome.(4) Enquanto a EAD se caracteriza por um conjunto de alterações clínicas e laboratoriais transitórias representativas da má função do enxerto hepático após o transplante, o PNF se manifesta como um evento mais grave, de evolução catastrófica, no qual ocorrem necrose hepática, rápida elevação das transaminases, coagulopatia, elevação do lactato, instabilidade hemodinâmica, hipoglicemia, e falência respiratória e renal.(1,5,6) Diferente da EAD, na qual as manifestações são transitórias e o fígado transplantado recupera a função, no PNF ocorre a perda do enxerto e existe uma demanda por retransplante de urgência.

DISFUNÇÃO PRECOCE DO ENXERTO

Os estudos disponíveis utilizam diferentes parâmetros e pontos de corte para definir e diagnosticar EAD. A maior parte desses trabalhos se baseia em alterações laboratoriais relacionadas com o metabolismo e a função hepática nos primeiros dias após o transplante. São exemplos de exames utilizados: alanina aminotransferase (ALT), aspartato aminotransferase (AST), tempo de protrombina (TP), bilirrubina, international normalized ratio (INR), nível sérico de lactato e amônia.(2,7-15) A ocorrência da EAD está relacionada a uma menor taxa de sobrevida do enxerto hepático e do paciente, e com maior tempo de internação e permanência em unidade de terapia intensiva, além do aumento da morbimortalidade no pós-operatório.(9)

Considerando o tempo decorrido até o diagnóstico da disfunção como fator determinante na instituição de medidas de suporte ao paciente, estudos prévios estabeleceram critérios para EAD até o terceiro dia.(10,11) Para Nanashima et al.(10) a EAD ocorre quando os níveis de AST ou ALT estão acima de 1.500UI/L em dois exames consecutivos, até 72 horas após o transplante.(11) Segundo Dhillon et al.,(11) o diagnóstico deve ser baseado em um escore das transaminases calculado pela fórmula [(AST+ALT)/2] no segundo dia de pós-operatório. O resultado <285UI/L indica boa função do enxerto; entre 285 e 986UI/L demonstra um enxerto com funcionamento intermediário; resultados maiores que 986UI/L definem EAD.(11)

Outros trabalhos estabelecem escores para diagnosticar o perfil de funcionamento do enxerto hepático. González et al.(15) qualificaram a função inicial do enxerto mensurando ALT, produção de bile e atividade de protrombina nas primeiras 72 horas após o transplante. Para estratificar os resultados, foram atribuídas pontuações, de acordo com os resultados laboratoriais, e foi definido o bom funcionamento do enxerto hepático como aqueles com escore 3-4; como enxertos com função moderada aqueles com escore 5-6; e a EAD foi estabelecida nos pacientes com escore 7-9.(15) Heise et al.(16) propuseram um sistema de graduação com base na sobrevida a longo prazo utilizando os níveis de AST, ALT, produção de bile e atividade de protrombina nos dias 1, 3, 7 e 14 após o transplante.(16) Este sistema permite que o transplantado com diagnóstico de EAD possa ser realocado nos diferentes subgrupos do trabalho após o terceiro dia do transplante, uma vez que os níveis para diagnósticos são dinâmicos de acordo com o tempo decorrido da cirurgia, aumentando ou decrescendo com o passar dos dias. Dessa forma, o sistema gradua o funcionamento do enxerto como: Berlin A (pontuação 4 ou 5) para boa função do enxerto; Berlin B (pontuação 6) para função intermediária do enxerto; e Berlin C (pontuação 7 ou 8) para EAD.(16)

Um conceito amplamente utilizado é o preconizado por Ploeg et al.,(8) que utilizam fatores indicativos de lesão nos hepatócitos e avaliação da capacidade sintética do fígado por meio da mensuração do nível de transaminases e do TP, respectivamente.(8) Neste estudo, realizado em um único centro, a EAD é caracterizada por AST >2.000UI/L, TP acima de 16 segundos e nível de amônia maior que 50μmol/L entre o segundo e sétimo dia de pós-operatório.(8)

A primeira definição de EAD estabelecida após estudo multicêntrico considerou resultados da função hepática no pós-transplante e fatores relacionados a doador, enxerto e condição pré-transplante do receptor como risco.(2) Este trabalho considerou valores de bilirrubina sérica, TP e presença de encefalopatia hepática entre o segundo e sétimo dia pós transplante. A elevação no pré-transplante do valor do TP e bilirrubina, receptor em regime hospitalar devido à piora clínica, doador acima de 50 anos ou internado há mais de 3 dias e tempo de isquemia acima de 15 horas também foram associados à EAD.(2)

Olthoff e um grupo de experts em transplante hepático publicaram uma definição de EAD que considerou variáveis que refletem a função do enxerto (injúria, coagulopatia e colestase) até os primeiros 7 dias após o transplante.(7) O objetivo não foi estabelecer novos valores de corte nas variáveis já utilizadas, mas avaliar a validade das definições anteriores. Foram escolhidas variáveis objetivas e de fácil obtenção na investigação da evolução clínica do paciente.(2,17) Neste trabalho, a presença de EAD é diagnosticada quando uma ou mais das seguintes variáveis estão presentes: bilirrubina ≥10mg/dL no sétimo dia de pós-operatório; INR ≥1,6 no sétimo dia de pós-operatório; e ALT ou AST >2.000UI/L nos primeiros 7 dias após o transplante.(7)

Friedman et al. levantaram a hipótese de que a ocorrência de EAD teria reflexo na expressão de proteínas do soro associada à resposta inflamatória do ato cirúrgico.(18) Dessa forma, seria possível identificar um padrão de citocinas inflamatórias quando da ocorrência de EAD. A análise multivariada mostrou que, nos pacientes com EAD, os níveis de interleucina (IL) 6 e IL-2R eram mais elevados no pré-operatório, em comparação ao pós-operatório, enquanto os níveis de MCP-1 (CCL2), IL-8 (CXCL8) e RANTES (CCL5) foram mais elevados no pós-operatório imediato, em relação ao pré-operatório, evidenciando diversos biomarcadores possíveis de estarem associados à EAD.

Croome et al.(19) utilizaram informações relacionadas ao doador associadas ao escore Modelo para Doença Hepática Terminal (MELD - Model for End-Stage Liver Disease) como preditor de EAD.(19) Wagener et al. evidenciaram a importância do escore MELD na primeira semana após o transplante como forma de predizer a ocorrência de EAD e mortalidade nos primeiros 90 dias.(20)

Estudo realizado com 66 pacientes transplantados(21) sugere que o melhor momento para se detectar o pico de AST ocorre no intervalo entre 5 a 11 horas pós-reperfusão. Após esse período, os níveis da enzima diminuem à metade já no primeiro dia de pós-operatório.(21) Este trabalho traz importante contribuição para a literatura, pois, até o presente, não há consenso entre os centros de transplante sobre quando se deve realizar a primeira dosagem de AST. Um recurso a ser explorado para o diagnóstico precoce de disfunção é o uso de testes que avaliem diretamente a função hepática como, por exemplo, o verde de indocianina.(22) Nesse contexto, Lock et al.(22) utilizaram o teste LiMAx (maximal liver function capacity)(22-24) nas primeiras 24 horas após o transplante.(22) Este teste avalia o desempenho do fígado em tempo real e foi capaz de avaliar a função do enxerto hepático já nos momentos iniciais após o transplante.(22) As principais definições de disfunção precoce do enxerto hepático constam no quadro 1.

Quadro 1 Principais definições de disfunção precoce do enxerto 

Autor Definição
Olthoff et al.(7) Pelo menos um dos seguintes: bilirrubina ≥10mg/dL no sétimo dia; INR ≥1,6 no sétimo dia; ALT ou AST >2.000UI/L até o sétimo dia
Ploeg et al.(8) AST >2.000UI/L, TP >16 segundos e amônio >50μmol/L entre o segundo e sétimos dias
Nanashima et al.(10) AST ou ALT >1.500UI/L em 2 exames consecutivos nas primeiras 72 horas
Dhillon et al.(11) [(ALT+AST)/2] >986UI/L no segundo dia

INR: international normal ratio; ALT: alanina aminotransferase; AST: aspartato aminotransferase; TP: tempo de protrombina.

NÃO FUNCIONAMENTO PRIMÁRIO DO ENXERTO

A manifestação mais grave da disfunção do enxerto é o PNF.(1,4) Assim como a EAD, o PNF não possui uma definição clara e universalmente aceita na literatura mundial. Contudo, o que observamos em comum nos estudos disponíveis é o desfecho do paciente que apresenta essa condição: retransplante precoce ou óbito.(4,7-9)

Em 1987, Makowka et al.(25) definiram PNF como a necessidade de retransplante ou óbito nas primeiras 72 horas, relacionado com insuficiência hepática sem outra causa identificável. Ploeg et al.(8) conceituaram PNF como uma função hepática em patamar incompatível com a manutenção da vida do receptor, com necessidade de retransplante ou evolução para óbito até o sétimo dia após o transplante.(8) De acordo com Broering et al.,(12) o tempo decorrido do transplante ao diagnóstico pode ser de até 10 dias, adotando a mesma definição conceitual para PNF que Ploeg et al.(8) Já Uemura et al.(1) destacaram a evolução inicial ruim do enxerto, necessitando retransplante ou evoluindo a óbito nos primeiros 7 dias, com destaque para exclusão de outras causas de falência do órgão, sobretudo as vasculares, como as tromboses da artéria hepática e da veia porta.(1,26)

Outros autores buscam estabelecer definições mais objetivas por meio de um ponto de corte nos resultados laboratoriais, acima do qual o PNF estaria diagnosticado. Kremers et al.(27) apresentaram critérios para o diagnóstico: ALT >2.500UI/L, glicose <60mg/dL, INR >2,5 ou fluxo de bile <50mL ao dia. Dhillon et al.(11) associaram o critério laboratorial por eles estabelecido para caracterizar EAD em conjunto com a má evolução clínica do receptor.(11) Segundo estes autores, o PNF ocorre quando [(ALT + AST)/2]>986UI/L, no segundo dia após o transplante, evoluindo a óbito do receptor ou retransplante até o sétimo dia.(11) Máthé et al., também utilizaram dados laboratoriais associados à evolução clínica e definiram como PNF todo caso clínico em que AST ou ALT >1.500UI/L em dois resultados consecutivos até as primeiras 72 horas de transplante, que evolui para retransplante ou óbito do receptor.(28)

A United Network for Organ Sharing (UNOS), órgão americano responsável pela regulamentação dos transplantes, também estabelece critérios exatos para definir PNF, sendo eles AST ≥3.000, associado a pelo menos um dos seguintes: INR ≥2.5; acidose, caracterizada por pH arterial ≤7,30 ou pH venoso ≤7,25 e/ou lactato ≥4mMol/L. O argumento dos pesquisadores que defendem critérios objetivos para caracterizar o PNF é a simplificação do diagnóstico, permitindo rápida reinclusão em lista para transplante, única alternativa para evitar o óbito do paciente.(4)

Clinicamente, o PNF pode ocorrer até a segunda semana após o transplante e ser representado por hiperpotassemia, aumento do lactato, instabilidade hemodinâmica e insuficiência renal oligúrica.(26) Outras manifestações incluem a persistência de encefalopatia, acidose metabólica persistente, hipoglicemia acentuada, presença de coagulopatia e redução ou ausência de produção de bile associadas ao aumento progressivo de AST.(29) As principais definições de não funcionamento primário do enxerto hepático estão no quadro 2.

Quadro 2 Principais definições de não funcionamento primário 

Autor Definição
Ploeg et al.(8) Função hepática incompatível com a vida com necessidade de retransplante ou evolução ao óbito do paciente antes do sétimo dia
Nanashima et al.(10) AST ou ALT >1.500UI/L em dois exames consecutivos nas primeiras 72 horas, com evolução para óbito do receptor ou retransplante
Dhillon et al.(11) [(ALT+AST)/2] >986UI/L no segundo dia, com evolução para óbito do receptor ou retransplante até o sétimo dia
Broering et al.(12) Necessidade de retransplante até o décimo dia após o implante ou óbito devido a não funcionamento do enxerto
Máthé et al.(28) AST ou ALT >1.500UI/L em dois exames consecutivos nas primeiras 72 horas, culminando em óbito ou retransplante
Kremers et al.(27) ALT >2.500UI/L, glicemia <60mg/dL, INR >2,5 ou fluxo de bile <50mL/d

AST: aspartato aminotransferase; ALT: alanina aminotransferase; INR: international normal ratio.

FATORES DE RISCO PARA DISFUNÇÃO PRECOCE DO ENXERTO E NÃO FUNCIONAMENTO PRIMÁRIO

Early allograft dysfunction e PNF são síndromes multifatoriais. Características do doador, da cirurgia do transplante e do receptor estão relacionados com estes desfechos.(1,4,7,28)

Em relação ao doador, a idade é um fator frequentemente presente nos estudos, porém controverso quando se procura definir um ponto de corte. Segundo Ploeg et al.,(8) a idade acima de 49 anos está associada a maior risco de EAD,(8) enquanto Corradini et al.(30) apontaram para um risco maior para os doadores acima de 65 anos. Olthoff et al.(7) registraram que a idade acima de 45 anos está relacionada com uma maior incidência de EAD. No mesmo trabalho, a análise univariada mostrou tendência à maior incidência de EAD em doadores acima de 49,6 anos, quando a idade (em anos) for considerada como uma variável contínua.(7)

A esteatose hepática é outro fator frequentemente associado à EAD na literatura. O tipo (macro ou microvesicular) e o grau (leve: <30%; moderado: 30 a 59%; ou severo >60%) estão relacionados à ocorrência de EAD e PNF.(31,32) Foi observada uma incidência de PNF após o transplante utilizando enxertos sem esteatose de 1,8% versus 5,1% naqueles com esteatose macrovesicular acima de 30%.(33) Já enxertos com até 30% de esteatose apresentam o mesmo índice de PNF quando comparado ao não esteatótico.(32) Enxertos com esteatose moderada, entre 30 a 59%, podem ser utilizados desde que bem alocado para um receptor sem outros fatores de risco existentes.(34,35) Por último, enxertos com mais de 60% de esteatose não são utilizados pela maioria dos grupos de transplante, por aumentar o risco de EAD e PNF, sendo seu uso limitado a poucos centros no mundo.(35,36)

Devido à oferta de enxertos ser incapaz de suprir a demanda por órgãos para transplante, vários centros de transplante utilizam doadores previamente considerados como contraindicação para transplante. Esses doadores, definidos como doadores com critérios expandidos, incluem aqueles com idade ≥60 anos, índice de massa corporal >27 a 30kg/m2, esteatose macrovesicular ≥30%, tempo de unidade de terapia intensiva >4 a 5 dias, uso de drogas vasoativas (dopamina >10μ/kg/minuto ou uso de outra catecolamina em qualquer dose), hipotensão prolongada (acima de 1 hora), sódio >150 a 155mmol/L, tempo de isquemia fria >8 horas, tempo de isquemia quente >40 a 45 minutos, sepse controlada, creatinina >1,2mg/dL, história de alcoolismo, bilirrubina >2,0mg/dL, ALT >170UI/L e AST >140UI/L.(37-39) Doadores com critérios expandidos têm sido amplamente associados a EAD do enxerto hepático.(37,39) O doador é considerado como “critério expandido” quando acumula três ou mais fatores citados anteriormente, de acordo com a maioria dos autores.(4,37,38)

Feng et al.(40) introduziram, em 2006, o conceito do Donor Risk Index (DRI), um escore com base em características do doador, com o objetivo de predizer o risco de falência do enxerto. O DRI não contraindica a utilização do doador, mas oferece subsídio à melhor alocação do órgão. As variáveis que compõem o DRI são: idade do doador, causa mortis, raça, captação com coração parado, uso de enxerto bipartido, altura do doador, local da captação e tempo de isquemia fria.(41) Diferentemente da maioria dos trabalhos sobre o tema, que abordam os fatores de risco de forma categórica, Feng et al.(40) criaram um escore numérico contínuo na avaliação do risco de disfunção. No entanto, o DRI apresenta limitações no Brasil devido à dificuldade em se classificar a raça do doador e, sobretudo, pela não contemplação do uso de órgãos provenientes de doador com coração parado. Avolio et al.(42) utilizaram o DRI associado ao MELD do receptor para avaliar a sobrevida do enxerto.

O tempo de isquemia fria e o tempo de isquemia quente são associados à EAD e PNF em diversos trabalhos.(4,7,8,43) Não existem pontos de corte bem estabelecidos na literatura quanto ao tempo adequado de isquemia tanto na fase fria como na quente.(4) Em relação ao tempo de isquemia fria, estudos sinalizam que períodos acima de 10 horas estão associados à maior incidência de EAD, PNF e complicações biliares a longo prazo.(8,43) Em relação ao tempo de isquemia quente, períodos prolongados estão associados à maior dano aos hepatócitos, o que justifica a relação com a incidência de EAD.(4) Cameron et al.(39) afirmam que o tempo de isquemia quente maior que 40 minutos aumenta a incidência de EAD e PNF. Sirivatanauksorn et al.(44) definiram que o tempo de isquemia quente acima de 45 minutos é um fator de risco independente para os mesmos desfechos.(44)

Fatores relacionados ao receptor também estão associados à EAD.(7,43,44) De forma controversa, diversos autores identificam a idade e a raça do receptor como um fator de risco.(5,39) O risco de EAD e PNF é menor, quanto mais novo for o receptor.(39) No entanto, devido à condição clínica em geral mais favorável quando comparado ao paciente mais idoso, a faixa etária mais nova tende a receber enxertos mais limítrofes, o que pode justificar o achado de maior risco nesse grupo de pacientes em alguns estudos.(8,43) Os fatores de risco para DPE relacionados ao doador, à cirurgia do transplante e ao receptor estão listados no quadro 3.

Quadro 3 Principais fatores de risco para disfunção primária do enxerto 

Doador Cirurgia Receptor
Esteatose macro ≥30%(34-36) Tempo de isquemia quente >40 minutos(39) >45 minutos(44) Receptor jovem, pela tendência em receber órgãos com critérios expandidos(5,8,39,43)
Doadores com critérios expandidos(1,4,7) Tempo de isquemia fria >10 horas(8,43)
Idade >49 anos(8,43)
>65 anos(30)

CONCLUSÃO

A disfunção primária do enxerto pode ser dividida em disfunção precoce e não funcionamento primário. Enquanto a disfunção precoce é caracterizada por alterações laboratoriais na primeira semana e ocorre plena recuperação do órgão, o não funcionamento primário é marcado por deterioração clínica e laboratorial catastróficas. Além dos critérios para disfunção primária, esses casos evoluem com necessidade de retransplante ou óbito até o sétimo dia pós-transplante, após a exclusão de complicações vasculares agudas.

Os estudos destacam a idade e a esteatose (doador), o tempo de isquemia fria e o tempo de isquemia quente (cirurgia) como fatores de risco mais frequentemente associados à disfunção primária. Variáveis relacionadas ao receptor são relatadas de forma controversa como fatores de risco para disfunção do enxerto hepático. A forma heterogênea que os autores abordam o tema dificulta a determinação de pontos de corte que possam ser reproduzidos de maneira universal pelos centros de transplante.

Dessa forma, os esforços devem se concentrar em critérios que permitam o diagnóstico mais uniforme e precoce para rápida adoção de medidas de suporte pelo centro transplantador. O uso de um teste pode padronizar o diagnóstico e eliminar o potencial fator de confusão que os diferentes critérios adotados apresentam nos estudos sobre fatores de risco. Nesse sentido, um campo promissor é a utilização do teste com verde de indocianina.

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