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Disfunções do sistema estomatognático e aspectos vocais na doença de Fahr: relato de caso

Disfunções do sistema estomatognático e aspectos vocais na doença de Fahr: relato de caso

Autores:

Karoline Weber dos Santos,
Bruno Francisco de Fraga,
Maria Cristina de Almeida Freitas Cardoso

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.26 no.2 São Paulo mar./abr. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/2014498IN

INTRODUÇÃO

A Doença de Fahr, conhecida também como calcificação idiopática dos gânglios da base, é caracterizada pelo acúmulo de depósitos de cálcio nas regiões dos gânglios da base, podendo acometer ainda as regiões do núcleo caudado, do putâmen, do tálamo, da substância branca e do cerebelo( 1 , 2 ).

O surgimento dos depósitos de cálcio, geralmente bilaterais e benignos, está associado a alterações genéticas, metabólicas ou infecciosas. Dentre as patologias que também podem causar o acúmulo de cálcio destacam-se o hipotireoidismo, o pseudo-hipotireoidismo, a miopatia mitocondreal, a doença de Wilson, o lúpus eritematoso, a síndrome de Down e a neurobrucelose. Apesar disso, alguns indivíduos formam esses depósitos de cálcio e não apresentam etiologia bem definida, casos em que a calcificação cerebral caracteriza-se como Doença de Fahr( 1 - 3 ).

O diagnóstico da Doença de Fahr é atribuído quando há exclusão de outras patologias que também possam causar calcificação bilateral dos núcleos da base ou de outras regiões cerebrais. Nos exames de imagem cerebral, observa-se a presença de regiões radiopacas esbranquiçadas concentradas de acordo com a área afetada e com áreas bem delimitadas, porém, com maior concentração em determinado foco de calcificação, como, por exemplo, os núcleos da base( 1 - 3 ).

Quanto aos achados clínicos da doença, os dados da literatura apresentam que há modificação no comportamento social, alterações de caráter motor, tiques motores e fônicos e comportamento inadequado de acordo com a situação vivenciada( 4 ), características que implicarão na modificação da fala e na motricidade orofacial.

A modificação da fala é um processo intimamente relacionado com a capacidade de expressão oral e coordenação motora. No caso de pacientes com esta doença, observa-se a dificuldade de articulação dos sons devido à incapacidade de coordenação dos atos motores( 5 ). Sabe-se que a lesão de áreas cerebrais, principalmente as que envolvem a coordenação de movimentos, a manutenção do ritmo motor e tônus muscular, como a região dos núcleos da base, altamente afetados pela Doença de Fahr, pode implicar em alterações do funcionamento muscular, alterando as funções estomatognáticas. Nesta doença da expressividade oral, o individuo apresenta dificuldade ou impossibilidade de expressar-se pela fala devido à dificuldade na manutenção do discurso( 4 - 6 ).

Com isso, o presente estudo tem como objetivo relatar o caso de uma paciente com Doença de Fahr buscando descrever as principais características estomatognáticas e os aspectos vocais encontrados.

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

Este estudo de caso foi realizado no ambulatório de Neurologia do Hospital Santa Clara - Complexo Hospitalar Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre pela Equipe de Fonoaudiologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).

Para este trabalho, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFCSPA sob parecer número 1850/12, foi recrutada uma paciente com diagnóstico médico de hiperparatireoidismo e Doença de Fahr, atendida pelos acadêmicos do Curso de Fonoaudiologia da UFCSPA. A paciente I.C.G, sexo feminino, 66 anos, recebeu orientações a respeito dos objetivos e procedimentos desta pesquisa e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Em busca da caracterização do quadro clínico, a paciente foi avaliada a partir dos seguintes protocolos: Protocolo de Avaliação Fonoaudiológica das Disfagias Orofaríngeas de Etiologia Neurogênica - AFDN( 7 ), Protocolo de Disartria(8) e Protocolo Alpha (Protocolo Montreal - Toulouse Alpha 1)( 9 ). As avaliações foram realizadas por dois avaliadores em um mesmo momento e de forma independente. Ao término da bateria de avaliação, houve comparação e discussão para a obtenção dos dados finais e apresentação neste estudo.

Em relação aos resultados do Protocolo AFDN, observou-se boa interação comunicativa, sendo capaz de compreender e responder aos questionamentos realizados. Além disso, verificou-se que a sensibilidade dos orgãos fonoarticulatórios estava preservada, porém apresentava lentificação dos movimentos, principalmente em relação à abertura de boca e à lateralidade de língua, apresentando também flacidez da musculatura orofacial. Em relação à ingesta de alimento, verificou-se mastigação em topo para alimentos sólidos; dificuldade no controle de saliva, com escape pelas comissuras labiais; deglutição múltipla para alimentos líquido e pastoso fino; além de escape anterior para líquidos. Por meio da ausculta cervical percebeu-se a presença de ruídos cervicais compatíveis com estase de alimento sendo manifestado pela paciente como sensação de glóbus faríngeo. Com base nos achados observados na avaliação, notou-se a presença de disfagia orofaríngea de grau leve caracterizada por alterações de controle oral e dismotilidade faringolaríngea.

Os mesmos aspectos motores orais foram observados no Protocolo de Disartria. Em relação aos aspectos vocais avaliados neste protocolo, a paciente apresentou respiração de modo misto e ressonância com predomínio nasal. Os tempos máximos de fonação encontraram-se rebaixados, com média de 7 segundos, e a relação s/z foi de 0,8 segundos. Os marcadores de qualidade vocal encontrados foram: rouquidão, tremor, monotonia e nasalidade, ocasionada pela diminuição da mobilidade do palato mole. Também se pode observar articulação com pouca amplitude de movimento. Na avaliação de bases combinadas envolvendo respiração, fonação, articulação e ressonância, encontrou-se lentificação da fala, ocorrência de tremores e incoordenação pneumofonoarticulatória, as quais são compatíveis com um quadro de disartria do tipo hopocinética.

Quanto à avaliação realizada utilizando-se o protocolo Alpha, não foram encontradas variações da compreensão e expressão da linguagem sugestivas de alterações.

A Tabela 1 apresenta as principais alterações estomatognáticas e aspectos vocais observados no caso apresentado.

Tabela 1 Alterações estomatognáticas e aspectos vocais observadas no caso 

Aspecto avaliado Alterações apresentadas
Musculatura orofacial Sensibilidade facial preservada
Lentificação dos movimentos (menor abertura de boca e lateralidade de língua)
Flacidez facial
Mastigação e deglutição Dificuldade no controle de saliva (escape pelas comissuras labiais)
Mastigação em topo
Deglutições múltiplas para alimentos líquido e pastoso fino
Escape anterior para líquidos
Presença de ruídos cervicais compatíveis com estase de alimento
Sensação de glóbus faríngeo
Disfagia orofaríngea de grau leve
Respiração e produção vocal Respiração de modo misto
Incoordenação pneumofonoarticulatória
Ressonância com predomínio nasal
Tempo máximo de fonação reduzido
Qualidade vocal rouca, trêmula e monótona
Nasalidade devida à pouca mobilidade do palato mole
Lentificada e com presença de tremores

DISCUSSÃO

Atualmente, considera-se que o cérebro é uma estrutura dinâmica e plástica e que a integração dos sistemas ocorre de forma generalizada, ou seja, o conjunto de neurônios de uma região é capaz de cumprir funções de outras( 10 ). Apesar disso, a distribuição das funções cerebrais ocorre de forma organizada, havendo predomínio de cada região para a realização dos comandos cerebrais e podendo-se, assim, admitir uma função para determinada região. Considerando esse aspecto, uma lesão cerebral acarreta perdas na capacidade funcional do indivíduo de acordo com o seu local e extensão( 11 ).

A região dos núcleos da base é uma localidade extremamente especializada que, em termos de funcionalidade motora, possui o desempenho principal de manutenção do tônus muscular e coordenação dos movimentos em conjunto com o sistema cerebelar( 12 ). Em relação às funções do sistema estomatognático, as doenças que acometem essa região afetam a motricidade orofacial e a capacidade de expressão da fala, além dos aspectos vocais, e geram dificuldades na condução do bolo alimentar pela alteração na tonicidade muscular. Dentre as doenças mais estudadas que acometem esse sistema citam-se a Doença de Parkinson, muito estudada no campo fonoaudiológico, e mais recentemente as doenças que geram a degeneração e calcificação desta região, como a Doença de Fahr( 1 , 12 , 13 ).

Observa-se que o acometimento de estruturas cerebrais envolvidas no processo de coordenação dos movimentos ocasiona incapacidade na realização de atos motores combinados, uma vez que a integração das informações motoras não ocorre de forma ordenada( 13 ). Especificamente em relação às funções estomatognáticas, esta incoordenação se expressa de maneira bastante evidente uma vez que todos os atos dependem de uma combinação complexa de inúmeros músculos que realizarão essas funções, principalmente nos atos de deglutição e fala( 14 ).

De acordo com os dados que constam neste relato de caso, as alterações fonoaudiológicas relacionadas ao sistema estomatognático apresentadas por indivíduos acometidos pela doença se assemelham muito às características de indivíduos com Doença de Parkinson, como é o caso de lentificação dos movimentos, alterações na modulação da fala com presença de tremores e qualidade vocal alterada, sendo possível observar um quadro compatível com diagnóstico de disartria do tipo hipocinética( 14 ).

Outros relatos da literatura sobre indivíduos com Doença de Fahr corroboram estes achados, demonstrando que lesões nos núcleos da base decorrentes de calcificações causam alterações das funções de fala, motricidade oral, voz e deglutição, manifestando-se de maneira bastante característica e sendo possível descrever um perfil comunicativo e funcional bastante típico, porém com graus variados de comprometimento de acordo com a extensão da lesão( 1 - 3 , 5 , 15 ).

Cabe salientar que, apesar da distinção da fisiopatologia das doenças discutidas, a funcionalidade do sistema estará comprometida, gerando impactos comunicativos importantes. Desta forma, é possível observar que, de acordo com os relatos da literatura e as características clínicas apresentadas pela paciente descrita, independente do tipo de acometimento as características fonoaudiológicas tendem a se apresentar de maneira semelhante aos achados em indivíduos com Doença de Parkinson, sendo este um importante marcador para a suspeita de doenças que não completam um quadro típico desta doença, mas que indicam alterações nos núcleos da base, assim como a Doença de Fahr( 12 - 14 ).

Com base nestas descrições, evidencia-se a importância do profissional fonoaudiólogo na avaliação acurada das funções estomatognáticas. Verifica-se que a associação de alterações na execução motora e coordenação dos movimentos, observada pela modificação das características estomatognáticas e dos aspectos vocais, pode caracterizar algumas das alterações nos núcleos da base.

COMENTÁRIOS FINAIS

O relato de alterações fonoaudiológicas na Doença de Fahr na literatura ainda é escasso e, em geral, descreve dificuldades na coordenação dos movimentos e alterações na atividade muscular. O relato de caso descrito no presente estudo pode propiciar a compreensão das características da Doença de Fahr de interesse fonoaudiológico, direcionando a abordagem de atuação. Isso permite a realização de intervenção interdisciplinar, incluindo a abordagem fonoaudiológica, que deve ser preconizada a fim de minimizar as dificuldades descritas, visando, inclusive, a melhora da qualidade de vida.

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