versão impressa ISSN 1677-5449
J. vasc. bras. vol.12 no.2 Porto Alegre jun. 2013
http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492013000200009
A bicicleta é um veículo de propulsão humana cujo número de usuários tem aumentado significativamente na última década. Os ciclistas que não fazem uso da bicicleta para competição aproveitam para melhorar o condicionamento em horas de lazer ou como meio de transporte para trabalhar. Os que fazem uso sem pretensões esportivas estão menos suscetíveis às lesões por sobrecarga decorrente de postura indevida sobre a bicicleta. Por outro lado, os ciclistas profissionais estão mais propensos às lesões musculoesqueléticas por trabalharem muito próximo do limiar entre o treinamento em alto nível e o excesso de treinamento, principalmente quando a postura sobre a bicicleta e a técnica de treinamento são inadequadas1,2.
A grande variedade de disfunções musculoesqueléticas associada à prática esportiva contribui, provavelmente, para a subestimação da importância e ocorrência de arteriopatia em membros inferiores em ciclistas3-6. Nos últimos vinte anos, foram diagnosticados inúmeros casos de ciclistas com disfunção vascular em membros inferiores, condição que pode desencadear dor ao esforço, edema, perda de força e, consequentemente, redução do desempenho7-9, quadro clínico que anteriormente era relacionado somente à lesão musculoesquelética, sendo negligenciada a possibilidade de ocorrência de insuficiência arterial10,11.
O objetivo desta revisão foi abordar a ocorrência de disfunções vasculares em membros inferiores em ciclistas, visto que é um tema de grande importância à medicina esportiva, pois a falta de familiaridade com esta modalidade de disfunção pode contribuir com a realização do diagnóstico tardio e, consequentemente, aumento da morbidade.
Foram realizadas buscas por artigos nas bases de dados PubMed e ScienceDirect utilizando os descritores "ciclismo, arteriopatia periférica, fluxo sanguíneo, estenose" e os correspondentes em inglês e francês "cycling, peripheral arteriopathy, blood flow, stenosis", "cyclisme, artériopathie périphérique, le flux sanguin, sténose". Oitenta e cinco textos, entre artigos e livros publicados de 1950 a 2012 foram incluídos como referência científica para esta revisão.
Foram encontrados trinta e nove artigos originais citando lesão da artéria ilíaca externa, um de artéria ilíaca comum, dois de veia ilíaca externa, sete de artéria femoral comum, um de artéria femoral superficial, um de artéria femoral profunda e seis de artéria poplítea em ciclistas. A Tabela 1 mostra que as lesões em artéria ilíaca externa ocorrem predominantemente em membro inferior esquerdo, dado que coincide com relatos de Feugier e Chevalier12.
Tabela 1 Disfunções vasculares em membros inferiores relacionadas ao ciclismo.
Autor | Ano | Vascular disease | Nível | Idade | Sexo | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
A. I. C. | A. I. E. | V. I. E. | A. F. C. | A. F. P. | A. P. | |||||
Boyd e Jepson13 | 1950 | •e | Amador | 23 | Masculino | |||||
Walder et al.14 | 1984 | •d | Profissional | d. n. i. | Masculino | |||||
•d | Profissional | d. n. i. | Masculino | |||||||
Mosimann, Walder e Van Melle15 | 1985 | •d | Profissional | 23 | Masculino | |||||
•e | Profissional | 24 | Masculino | |||||||
Chevalier et al.3 | 1986 | •e | Amador e Profissional | 23 a 31ψ | Masculino | |||||
•d | ||||||||||
Pils et al.16 | 1990 | •d | Profissional | 28 | Masculino | |||||
Rousselet et al.17 | 1990 | •e,d | Amador e Profissional | 22 | Masculino | |||||
•e | 23 a 47α | Masculino | ||||||||
•d | 23 a 34β | Masculino | ||||||||
•e | 34 | Feminino | ||||||||
Pillet et al.18 | 1992 | •e | Recreacional | 56 | Masculino | |||||
Abraham et al.19 | 1993 | •d | Semiprofissional | 20 a 49π | Masculino | |||||
•e | ||||||||||
•e,d | ||||||||||
Cook et al.20 | 1995 | •e | Profissional | 45 | Masculino | |||||
Hindryckx et al.21 | 1996 | •d | Profissional | 32 | Masculino | |||||
Taylor et al.22 | 1997 | •e | Amador | 32 | Masculino | |||||
Abraham, Chevalier e Saumet23 | 1997 | •d | Profissional | 22 | Masculino | |||||
Brousse et al.24 | 1997 | •d | Amador | 49 | Masculino | |||||
•e,d | Semiprofissional | 53 | Masculino | |||||||
Wille et al.25 | 1998 | •e | Amador | 24 | Masculino | |||||
•e | 24 | Masculino | ||||||||
•e | •e | 21 | Masculino | |||||||
•d | 47 | Masculino | ||||||||
Abraham et al.26 | 1999 | •e | Profissional | 18 | Masculino | |||||
Speedy et al.27 | 2000 | •e | Profissional | 36 | Masculino | |||||
Paraf et al.5 | 2000 | •e,d | Amador | 44 | Masculino | |||||
Wijesinghe et al.28 | 2001 | •d | Profissional | 28 | Feminino | |||||
Arko et al.29 | 2001 | •e | Profissional | d. n. i. | Masculino | |||||
Kral et al.30 | 2002 | •e,d | Profissional | 24 a 37µ | Feminino | |||||
Sarfati et al.31 | 2002 | •e | Recreacional | 13 | Masculino | |||||
•e | Recreacional | 9 | Masculino | |||||||
O'Ceallaigh et al.32 | 2002 | •d | Semiprofissional | 34 | Masculino | |||||
Teh et al.33 | 2003 | •d | Semiprofissional | 60 | Masculino | |||||
Bredt et al.34 | 2003 | •d | Recreacional | 14 | Masculino | |||||
Sandri et al.35 | 2003 | •e | Recreacional | 23 | Masculino | |||||
Scheerder, Schütte e Schnater36 | 2006 | •e | Amador | 26 | Masculino | |||||
Shankar, Roskell e Darby37 | 2006 | •e | Amador | 30 | Masculino | |||||
Takach et al.38 | 2006 | •e | Amador | 47 | Masculino | |||||
Giannoukas et al.39 | 2006 | •d | Profissional | 25 | Feminino | |||||
•d | Amador | 47 | Masculino | |||||||
Moore e Krabak10 | 2007 | •d | Recreacional | 59 | Masculino | |||||
Korsten-Reck et al.8 | 2007 | •e,d | Profissional | 27 | Feminino | |||||
Halena, Kwiatkowski e Znaniecki40 | 2007 | •e | Amador | 16 | Masculino | |||||
Carmo et al.41 | 2008 | •d | Semiprofissional | 31 | Feminino | |||||
•d | Amador | 44 | Masculino | |||||||
McAree et al.42 | 2008 | •e,d | Profissional | 33 | Masculino | |||||
Venstermans et al.43 | 2009 | •e | Profissional | 25 | Masculino | |||||
Willson et al.44 | 2010 | •d | Amador | 47 | Masculino | |||||
Mathew et al.45 | 2010 | •e | Amador | 66 | Masculino | |||||
•d | Semiprofissional | 53 | Masculino | |||||||
Salam, Chung e Milner46 | 2010 | •e | Amador | 70 | Masculino | |||||
Getzin e Silberman9 | 2010 | •e | Profissional | 32 | Masculino | |||||
Vizcaíno et al.47 | 2010 | •d | Amador | 39 | Masculino | |||||
Bucci, Ottaviani e Plagnol48 | 2011 | •d | Semiprofissional | 38 | Masculino | |||||
Gaughen Jr.49 | 2011 | •e | Amador | 27 | Masculino | |||||
Barrett50 | 2011a | •d | Amador | 37 | Feminino | |||||
Weislo51 | 2011 | •e | Profissional | 28 | Masculino | |||||
Aubrey52 | 2011 | •e | Profissional | 21 | Masculino | |||||
Rezk e Drott53 | 2011 | •e | Profissional | 46 | Masculino | |||||
Mughal, Rashid e Mavor54 | 2011 | •e,d | Amador | 59 | Masculino | |||||
Bettega et al.55 | 2011 | •e,d | Amador | 18 | Masculino | |||||
Politano et al.56 | 2011 | •d | Amador | 55 | Masculino | |||||
Flors et al.57 | 2011 | •e | Semiprofissional | 25 | Masculino | |||||
•e,d | Profissional | 38 | Feminino | |||||||
•e,d | Amador | 36 | Masculino | |||||||
•e,d | Profissional | 26 | Masculino | |||||||
•e,d | •e,d | Amador | 43 | Feminino | ||||||
•e,d | Profissional | 33 | Masculino | |||||||
•e,d | Semiprofissional | 26 | Feminino | |||||||
•e | Amador | 39 | Feminino | |||||||
•e | Semiprofissional | 55 | Masculino | |||||||
•e | Amador | 35 | Feminino | |||||||
Nakamura et al.58 | 2011 | •e | •e | Amador | 57 | Masculino | ||||
Sarlon-Bartoli et al.59 | 2012 | •d | Semiprofissional | 56 | Feminino | |||||
Politano et al.60 | 2012 | 15•e | Profissional | 23 a 54 | 14 Masculinoγ11 Femininoγ | |||||
8•d | ||||||||||
4•e,d |
Observou-se a ocorrência de endofibrose da artéria ilíaca externa nas modalidades ciclismo de estrada, montanha e contrarrelógio (comumente praticado por triatletas), totalizando 146 casos (Tabela 1), sendo cento e dezenove homens (81,5%) e vinte e sete mulheres (18,5%), que, distribuídos quanto à lateralidade, revelaram a seguinte estatística entre os sexos (homem vs. mulher): 72 vs. 7, em membro inferior esquerdo (54,1%); 31 vs. 11, em membro inferior direito (28,8%); e 16 vs. 9, bilateralmente (17,1%). Os resultados demonstraram ainda que as disfunções vasculares de grandes vasos têm se tornado mais comuns e não específicas de profissionais, tampouco do sexo masculino, e que a falta de familiaridade com o mecanismo de lesão da artéria femoral comum pode explicar o atraso significativo no diagnóstico de quatro em cada seis casos relatados. Além disso, também mostraram que o quadro clínico das lesões vasculares em membros inferiores, geralmente, envolve queixa de dor, claudicação e fadiga precoce durante a prática esportiva de alto desempenho (principalmente), condição que pode ser reproduzida pelo teste de esforço máximo em cicloergômetro e monitorada pelo índice de pressão tornozelo-braquial, o qual apresentou média inferior a 0,49 para os casos diagnosticados com endofibrose da artéria ilíaca externa.
A literatura esportiva relata casos de trauma fechado em artéria ilíaca comum61, ilíaca externa e femoral comum por trauma com o guidão da bicicleta61,62. Embora não haja dados estatísticos que apontem a incidência da compressão da artéria ilíaca secundária à prática do ciclismo, Lim et al.11 relataram que a insuficiência arterial pode ser responsável por 10% a 20% dos sintomas de dor e cãibra em ciclistas profissionais resultantes de claudicação. Em decorrência da negligência, o atraso médio para o diagnóstico de endofibrose da artéria ilíaca em ciclistas de nível competitivo, por exemplo, é de dois anos a contar do início dos sintomas, segundo Lim et al.11. Até que o diagnóstico seja estabelecido, é comum muitos ciclistas serem acusados pelos treinadores de desmotivados63, o que pode levá-los, forçosamente, a abandonarem o esporte3,11,16,21,23, pois o aporte sanguíneo para suprir a demanda da atividade muscular é insuficiente para a prática esportiva de alto desempenho64.
O índice de pressão tornozelo-braquial (ITB) é um exame complementar utilizado no diagnóstico de doença arterial obstrutiva periférica (DAOP) e o valor considerado normal superior a 0,9. A ocorrência de ITB com valor normal ao repouso em ciclistas não elimina a possibilidade de DAOP12,29,45; por esse motivo, este exame deve ser realizado sob teste de esforço submáximo ou máximo para induzir o surgimento das queixas decorrentes da prática esportiva3,30,65. Para o ciclista, o teste de esforço é mais fidedigno quando realizado em cicloergômetro ou ciclossimulador (teste de Strandness), comparado ao teste de esteira, pois o ciclista consegue simular a condição mais próxima da realidade vivida em treinos ou competições7,9,12,66.
Devido à dificuldade de posicionamento do manguito, enquanto o paciente está pedalando, as mensurações da pressão arterial são realizadas imediatamente após o esforço (a partir de 30 segundos ou no primeiro minuto) com o paciente em decúbito dorsal67. A Figura 1 ilustra o monitoramento de três pressões arteriais de um ciclista logo após o teste de Strandness66. É possível notar que, durante os primeiros três minutos, ocorre queda do ITB em membro inferior esquerdo, comportamento hemodinâmico muito diferente ao do membro inferior direito. Em seguida, com 12 minutos de repouso, o ITB à esquerda torna-se normal. Os resultados do teste de Strandness, associado a um ITB < 0,5, sugerem lesão na artéria ilíaca, femoral ou poplítea66.
Figura 1 Monitoramento da pressão arterial periférica em ciclista após teste de esforço. Fonte: Adaptado de Feugier66, p. 354 (reproduzida com a permissão do Professor Feugier).
Falha em reconhecer esta modalidade de lesão vascular pode resultar em um tratamento inespecífico por meses ou anos e, por conseguinte, malsucedido7,10,21. A falta de um diagnóstico específico e precoce, muitas vezes, ocorre porque lesões vasculares são confundidas ou mascaradas por disfunções musculoesqueléticas5,8,10,15,21,22,27,38,59,64,68, como distensão muscular10, ciatalgia23, lombociatalgia24 e síndrome compartimental27, realidade que retarda o tratamento e dificulta a reabilitação do ciclista26,27.
Speedy et al.27 ilustraram um caso de diagnóstico e tratamento inespecífico. De acordo com os autores, um triatleta apresentou dor, em membro inferior esquerdo, aos esforços, durante sete anos. Inicialmente, os sintomas eram restritos à face anterior da perna, levando a assistência médica, após 2 anos, a diagnosticar o caso como síndrome compartimental e efetuar fasciotomia sem antes realizar o estudo de pressão dos compartimentos envolvidos. O procedimento realizado não mostrou eficácia no alívio dos sintomas. Depois de inúmeras tentativas de diagnóstico, foi realizada arteriografia e foi constatada presença de endofibrose em artéria ilíaca esquerda, tratada com endarterectomia.
Teh et al.33 relataram um caso de um ciclista de 60 anos, sem histórico de disfunção cardiovascular, que apresentou claudicação em membro inferior direito com a prática esportiva de curta distância. O início dos sintomas ocorreu ao subir um trecho de elevada inclinação, quando notou início súbito de dor na região glútea direita, que evoluiu para todo o membro inferior ipsilateral. O ciclista, então, interrompeu sua participação em competições, procurou atendimento médico e foi diagnosticado, após angiografia, dissecção da artéria ilíaca comum direita que se estendia até a artéria femoral comum. O tratamento inicial consistiu em posicionar um stent (14 × 64 mm) da artéria ilíaca comum à artéria ilíaca externa, porção proximal. Angiografia pós-operatória mostrou estreitamento distal persistente da artéria femoral comum, todavia os sintomas melhoraram notavelmente. Após um mês, o ciclista voltou a queixar de claudicação. O angiograma mostrou o mesmo grau de estreitamento do lúmen (ITB < 0,9) e, então, foi submetido à endarterectomia da artéria femoral comum direita, eliminando os sintomas de insuficiência arterial no membro.
O primeiro relato de trombose em artéria ilíaca externa em ciclista foi descrito por Boyd e Jepson13, em 1950. Por outro lado, Walder et al.14 descreveram o primeiro caso de estenose da artéria ilíaca externa, em ciclistas profissionais, decorrente de endofibrose. Desde então, vários casos têm sido relatados. Para alguns autores, a endofibrose arterial é característica de atividade esportiva de resistência realizada em alto desempenho, como ciclismo e triatlo9,20,27,41,51,66,69. De acordo com Schep et al.70, um em cada cinco ciclistas de elite apresentam limitação do fluxo sanguíneo nas artérias ilíacas relacionadas à prática esportiva. A literatura médica relata que o ciclismo tem o maior número de casos de endofibrose na artéria ilíaca externa, sendo a esquerda12,44, significativamente, mais acometida do que a direita66.
O tempo médio que o ciclista leva para procurar atendimento médico especializado desde o início dos sintomas é de três anos15,27,48,58. Durante este período, é comum ele negligenciar o quadro clínico para não ter que interromper a prática esportiva. Inicialmente os sintomas surgem ao esforço submáximo15, depois ao esforço leve de curta e média distância, e, posteriormente, evolui ao ponto dos sintomas serem referidos durante caminhada13,48,54,59. Entre os ciclistas diagnosticados com endofibrose/trombose da artéria ilíaca externa, é possível observar que a prática de treino anual varia de 5.000 km a 33.000 km3,5,8,9,15,17,19,24,44, sendo que os sintomas, segundo os casos relatados, podem surgir após terem acumulado distância que varia de 50.000 km a 380.000 km9,17,32,44,48.
A ocorrência da disfunção da artéria ilíaca externa em ciclistas, geralmente, não está associada à DAOP, como histórico de doença tromboembólica, nível de colesterol anormal30,45 e diabetes mellitus 30 , o que reforça a hipótese de estresse mecânico como fator etiológico, decorrente da combinação de postura na bicicleta, em especial a aerodinâmica21, tempo de prática e intensidade de treinamento67. Para Mosimann, Walder e Van Melle15, a combinação de alto débito cardíaco, hipertensão arterial e fluxo sanguíneo turbulento, na artéria durante esforço submáximo, pode ser uma das causas de endofibrose.
A tortuosidade com acotovelamento (kinking) gerada pela hiperflexão de quadril3,9,22,27-30,36,39,62,71 (Figura 2a, b) e compressão da artéria pela hipertrofia do músculo psoas e ligamento inguinal durante a pedalada3,27,29,36,39,61,71,72 são, segundo a literatura, os fatores responsáveis pela redução do fluxo sanguíneo. Por esta razão é comum a excisão deste ligamento em pacientes com compressão vascular (e. g. artéria ilíaca externa e artéria femoral comum) ao nível da região inguinal9,49,57,58,60. Segundo Schep63, a tortuosidade da artéria pode ser mensurada com uma margem de erro de cinco graus, e os valores encontrados variam de 50 a 130 graus.
Figura 2 Ilustração da artéria ilíaca externa em postura aerodinâmica: (a) sem tortuosidade e acotovelamento e (b) com acotovelamento. Fonte: (a) Adaptado de Lim et al.11, p. 182; (b) Kral et al.30, p. 567 (imagens reproduzidas com autorização da editora detentora dos direitos autorais).
Durante a prática esportiva, o débito cardíaco encontra-se aumentado. Em esforços submáximos ou máximos, o fluxo sanguíneo e a pressão arterial na artéria ilíaca externa aumentam durante a sístole, elevando a tensão sobre a camada íntima da parede arterial nas zonas de tortuosidade7,65,72,73. A tortuosidade também pode ocasionar estenose da artéria, aumentando a colisão do sangue contra a camada íntima da parede, podendo resultar em lesão do endotélio e induzir uma reação endofibrótica7,72.
A fixação da artéria ilíaca externa ao músculo psoas pelos ramos colaterais (artérias epigástrica e circunflexa), associada à flexão acentuada do quadril, comum em postura aerodinâmica, favorece o alongamento excessivo da artéria3,17,28,29,65,72-75, aumentando a tortuosidade do vaso com o quadril em posição neutra3,12. O aumento da tortuosidade pode ocorrer na presença de hipertrofia do músculo psoas, condição que predispõe a artéria ao deslocamento anterior72. O teste de hiperflexão do quadril em ciclistas sintomáticos geralmente diminui o pulso na fossa poplítea8,17 e facilita o diagnóstico quando associado ao exame de imagem9,23,24,43,57,60 (e. g. arteriografia, angiografia por tomografia computadorizada, angiografia por subtração digital, angiografia por ressonância magnética).
Bender et al.72 relataram que o recrutamento dos músculos flexores do quadril aumentou com o advento do pedal de encaixe, acessório que pode colaborar para a hipertrofia do músculo psoas72,75. Pils et al.16 e Abraham, Chevalier e Saumet23 descreveram dois casos de abandono da carreira profissional de ciclismo em decorrência das dores e disestesia em membro inferior direito (membro dominante) sob atividade de esforço máximo. De acordo com a anamnese, os sintomas iniciaram há três anos, posteriormente à substituição dos pedais com "firma pé" pelos de encaixe (para uso de sapatilha), alteração que, segundo os autores, favoreceu a hipertrofia do músculo psoas. Desta forma, é interessante desestimular a realização de torque positivo (puxar o pedal) pelo membro inferior na fase de recuperação do ciclo da pedalada (de 180° a 0°, correspondente ao ponto mais baixo e mais alto, respectivamente)72,75, pois a contração do psoas hipertrofiado pode levar à significativa redução do fluxo sanguíneo na artéria ilíaca externa8,72. Além disso, ainda que a assimetria de posicionamento da aorta descendente (à esquerda da coluna vertebral) resulte em desigualdade no comprimento das artérias ilíacas comuns, esta característica anatômica não tem sido citada na literatura como um fator etiológico17,76.
Historicamente, o surgimento de endofibrose em artéria ilíaca externa coincide com o início do uso da eritropoetina, fármaco conhecido por elevar o hematócrito7,25. Embora o uso desta substância eleve significativamente o hematócrito, ainda não se conseguiu estabelecer um nexo entre seu uso e o desenvolvimento de endofibrose arterial em ciclistas, mesmo sabendo que usuários apresentam aumento da viscosidade do sangue, podendo viabilizar alterações hemodinâmicas sob alto fluxo sanguíneo7.
A estenose provocada pela endofibrose da camada íntima reduz a luz do vaso de 20% a 80%3,5,8,17,23,25-27,41,66 (Figura 3a), em extensão variando de 4 a 6 cm de comprimento3,24,44,66, distante de 2 a 6 cm da origem da artéria ilíaca externa38,66. A Figura 3b mostra os achados histológicos de estenose acentuada (aproximadamente 75% da luz do vaso) em um corte de seção transversal.
Figura 3 Segmentos "dissecados" da artéria ilíaca externa em ciclistas (corte transversal) (a); exame histológico revelando estenose da artéria ilíaca externa (b). Fonte: (a) Kral et al.30, p. 569; (b) Abraham et al.26, p. 1 (imagens reproduzidas com autorização da editora detentora dos direitos autorais).
A disfunção vascular assintomática pode comprometer o desempenho de ciclistas que demandam por elevado aporte sanguíneo7,48. Os sinais e sintomas comuns em ciclistas com insuficiência da artéria ilíaca externa são claudicação intermitente, dor e edema em membro inferior, cãibra, parestesia, fadiga ao esforço submáximo ou máximo, perda de força e desempenho9,22,26,28,30,48,70. Segundo Chevalier et al.3, em ciclistas, quando relatam desaparecimento dos sintomas após interrupção da prática esportiva, a ocorrência de disfunção vascular periférica deve ser considerada e investigada, pois, entre os casos tidos suspeitos, 60% são diagnosticados com insuficiência vascular, afirmaram Schep et al.70. Fukui et al.77 descreveram o primeiro caso de claudicação decorrente de dissecação bilateral da artéria ilíaca externa, comprometimento vascular que também apresenta ITB reduzido ao teste de esforço provocativo.
A insuficiência arterial unilateral pode induzir à lesão musculoesquelética pelo seguinte mecanismo: endofibrose/trombose → estenose → redução do aporte sanguíneo → hipoxemia → fadiga precoce assimetria de força na pedalada → perda de força → tentativa de compensação pelo membro inferior contralateral → sobrecarga no membro contralateral → lesão musculoesquelética13. Por meio deste esquema, percebe-se que a ocorrência de fadiga precoce é proporcional à intensidade do exercício e grau de estenose provocado pela endofibrose. Segundo Carpes et al.78, a aplicação de força simétrica no pedal é importante à otimização do desempenho. Além disso, o fenômeno da assimetria parece estar associado aos mecanismos da fadiga neuromuscular e adaptação para reduzir a vulnerabilidade à fadiga precoce ou lesão78,79.
Para mensurar a eficiência da regularização do aporte sanguíneo, após endarterectomia, em ciclista diagnosticado com endofibrose da artéria ilíaca externa, Korsten-Reck et al.8 realizaram teste ergométrico no segundo mês de pós-operatório e puderam observar que houve melhora significativa no desempenho do ciclista, sem que tenha realizado nenhum trabalho para ganho de condicionamento anterior ao teste. Este achado foi acompanhado de redução da frequência cardíaca e do limiar anaeróbio.
De acordo com Abraham, Chevalier e Saumet23, esta disfunção pode estabilizar com a interrupção do treinamento, todavia é importante considerar a necessidade de submeter o ciclista ao procedimento cirúrgico, caso suas pretensões sejam de continuar com a carreira esportiva3,23,25,44,60. A incidência de recidiva entre as artérias tratadas cirurgicamente é inferior a 10%25,28,57,60. Contudo é pertinente tentar, por meio do ajuste da bicicleta ao ciclista (bike fit), encontrar uma flexão de tronco que possibilite amenizar os sintomas durante a prática esportiva9.
Salam, Chung e Milner46 descreveram o primeiro caso de trombose venosa profunda devido a estenose na veia ilíaca externa. O caso ocorreu com um ciclista que procurou atendimento médico em decorrência de dor, edema e hiperemia em membro inferior esquerdo, após ter percorrido 291 km em uma jornada de três dias consecutivos. De acordo com os autores, a lesão no endotélio pode ter decorrido do elevado fluxo venoso ou da flexão de tronco associada aos movimentos repetitivos de flexo-extensão da articulação do quadril somada à compressão do vaso pelo ligamento inguinal. Esses mecanismos poderiam converter o endotélio, normalmente antitrombogênico, em pró-trombótico, estimulando a produção de fator tecidual, fibronectina e fator de von Willebrand.
A artéria femoral comum é outro vaso que também apresenta relatos de lesão em ciclistas, principalmente por mecanismo de trauma agudo na região do trígono femoral (Scarpa), onde se encontra mais exposta35,62,66. O primeiro caso de lesão da artéria femoral comum pelo mecanismo de trauma com a extremidade de guidão foi descrito por Rich80, e, desde então, vários casos têm sido relatados na literatura. A artéria femoral comum é relativamente imóvel, pois apresenta múltiplos ramos, tecido conjuntivo periadventicial e bainha femoral34, o que a torna vulnerável à compressão contra estruturas ósseas subjacentes31. Segundo Sarfati et al.31, a artéria pode ser lesionada quando a extremidade do guidão choca-se contra a região inguinal, mecanismo comum em quedas, conforme ilustra Figura 4a, levando à oclusão (Figura 4b).
Figura 4 Mecanismo de lesão da artéria femoral comum por trauma agudo: a extremidade do guidão comprime a artéria contra a cabeça do fêmur e o ramo do púbis (a). Arteriografia mostrando oclusão do fluxo arterial na artéria femoral comum esquerda (b). Fonte: Sarfati et al.31, p. 590 (reproduzida com a permissão do Professor Sarfati e com autorização da editora detentora dos direitos autorais).
Os sinais e sintomas comuns em ciclistas com lesão da artéria femoral comum por trauma agudo aparecem geralmente dentro de 48 horas e resumem-se a dor, equimose local, parestesia, palidez, pulso reduzido (ou ausente) e temperatura significativamente menor na extremidade do membro inferior acometido, se comparado ao contralateral31. Em ciclistas jovens, ainda em fase de crescimento, quando a lesão não é diagnosticada e tratada, o quadro evolui para isquemia crônica, compromete o suprimento sanguíneo na placa de crescimento proximal do fêmur, resultando em discrepância no comprimento dos membros inferiores e alterações na marcha31. A intervenção cirúrgica deve ser a conduta prioritária em ciclistas com sinais evidentes de isquemia, pois a interrupção do fluxo sanguíneo por mais de 4 horas pode causar danos neurológicos irreversíveis e necrose muscular62.
Embora a lesão arterial provocada por trauma do guidão na região inguinal seja bastante incomum, deve ser reconhecida pelo médico socorrista35, pois a falta de conhecimento sobre este mecanismo de trauma por profissionais médicos é o fator responsável por retardar o diagnóstico em quatro de cada seis casos relatados31.
Mughal, Rashid e Mavor54 relatam um caso de lesão em artéria femoral comum decorrente da prática habitual do ciclismo. Trata-se de um ciclista de 59 anos que apresentou queixa de cãibra, durante exercício, em ambos os membros inferiores, persistente há 4 anos, que aliviava ao repouso, após cinco minutos. Após endarterectomia, para eliminar a estenose, os sintomas desapareceram, todavia o ciclista foi orientado a não voltar a competir.
A síndrome do aprisionamento da artéria poplítea se configura na compressão da artéria poplítea, apresentando-se sob as formas anatômica (congênita) e funcional (adquirida)55,81,82, acometendo, comumente, esportistas que fazem movimentos repetitivos dos membros inferiores, como ciclistas42,62,66. Na forma anatômica, ocorre um desenvolvimento embriológico anormal da artéria poplítea ou das estruturas musculotendinosas ao seu redor55,83, podendo levar à formação de aneurisma pós-estenótico, tromboembolismo e trombose arterial55,83,84; na forma funcional, a artéria é comprimida através da hipertrofia dos músculos vizinhos55,83, resultando em incapacidade para a prática esportiva. Os sintomas incluem claudicação, parestesia e fadiga muscular do tríceps sural durante o exercício, e geralmente estão ausentes no repouso85.
Moore e Krabak10 relataram um caso atípico, no qual o ciclista se queixava de dor em face lateral do joelho e em tríceps sural do membro inferior direito, de início insidioso e persistente por sete meses. Inicialmente foi diagnosticado distensão do músculo gastrocnêmio e tratado com repouso e fisioterapia. Com o retorno ao esporte após três meses, a dor ressurgiu com maior intensidade. O ciclista foi reavaliado e a ressonância magnética revelou um aneurisma da artéria poplítea de dimensões iguais a 3,0 cm × 2,7 cm × 2,3 cm.
McAree et al.42 também descreveram um caso de ciclista com lesão em artéria poplítea que apresentou-se com claudicação progressiva ao longo de cinco meses e dificuldade em manter o desempenho em treinos devido a dor em tríceps sural. O exame físico mostrou que o ITB foi de 0,55 e 0,64, respectivamente, em membros inferiores, esquerdo e direito, e a ressonância magnética identificou um feixe fibroso na fossa poplítea e hipertrofia da cabeça medial do gastrocnêmio, bilateralmente, confirmando o diagnóstico de síndrome do aprisionamento da artéria poplítea.
Bettega et al.55 relataram um caso de um ciclista com queixa de fadiga na panturrilha direita há dois anos e parestesia quando realizava maior esforço muscular ao pedalar. Ao realizar a flexão dorsal e flexão plantar forçadas, ocorria compressão completa da artéria poplítea em ambos os membros inferiores. A arteriografia pré-operatória demonstrou desvio medial bilateral das artérias poplíteas ao realizar manobra de flexão dorsal forçada. Após ressecção da cabeça medial do gastrocnêmio e liberação da artéria poplítea, foi realizada arteriografia transoperatória, com flexão dorsal do pé, que mostrou ausência de compressão.
O diagnóstico de insuficiência arterial em ciclistas tem despertado interesse crescente nos últimos 20 anos, que se reflete no grande número de publicações abordando esse tema nesse período de tempo. As artérias mais lesionadas são a ilíaca externa, femoral comum e poplítea. O quadro clínico, geralmente, envolve queixa de dor e claudicação durante a prática esportiva de alto desempenho, condição que pode ser reproduzida pelo teste de esforço máximo em cicloergômetro e monitorada pelo índice de pressão tornozelo-braquial. Arteriopatia em membro inferior tem sido equivocadamente abordada como disfunção musculoesquelética em decorrência da pouca familiaridade da medicina esportiva, ou especialidades afins, com esta modalidade de disfunção; condição que pode levar à realização de um diagnóstico inespecífico, prolongando um tratamento inadequado e, consequentemente, retardando a reabilitação do ciclista. Esta insuficiência vascular periférica é praticamente desconhecida pela fisioterapia desportiva e principalmente por profissionais que trabalham com ciclistas, em especial os que realizam ajuste de suas bicicletas.