versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.9 no.3 São Paulo jul./set. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011rc1862
O distúrbio da diferenciação sexual testicular 46,XX (DDS 46,XX; OMIM 278850), ou síndrome do homem XX, foi descrito em 1964 por de la Chapelle(1). Tratase de uma condição rara, na qual o desenvolvimento testicular ocorre na ausência do cromossomo Y detectado citogeneticamente. Incide em 1:20.000 a 25.000 recém-nascidos do sexo masculino(1) e representa 2% dos casos de infertilidade masculina(2). Para esse tipo de cariótipo, podem ser observadas três categorias clínicas: homem XX com genitália normal; homem XX com genitália ambígua e hermafroditas verdadeiros XX com tecidos ovariano e testicular(3).
Apesar de o diagnóstico poder ser feito na época da puberdade, já que 1/3 dos pacientes desenvolvem ginecomastia, ele é, frequentemente, estabelecido no momento da investigação da causa da infertilidade pela detecção de um cariótipo 46,XX em um indivíduo com fenótipo masculino, visto que todos os homens XX são estéreis. Esses pacientes apresentam, em geral, diminuição da pilosidade facial e tendência à distribuição feminina de pelos pubianos. Os testículos têm pequeno volume, e o aspecto histológico assemelhase ao da síndrome de Klinefelter. Os dutos de Wolff desenvolvem-se em estruturas masculinas (epidídimo, deferente, vesícula seminal e ductos ejaculatórios) e os ductos de Müller sofrem apoptose, resultado da atuação do hormônio antimülleriano produzido pelas células de Sertoli. A secreção de testosterona pelas células de Leydig costuma ser normal durante a puberdade, mas pode decair na fase adulta, levando a um quadro de hipogonadismo hipergonadotrófico(3,4). Com relação à estatura, esta tende a ser intermediária, entre a masculina e a feminina(4).
Em cerca de 10% dos casos, ocorre ambiguidade genital, caracterizada por hipospádia e micropênis podendo haver associação com outras anomalias congênitas, particularmente anomalias cardíacas(5). É observada na maioria dos casos inteligência normal, apesar de muitos casos apresentarem problemas cognitivos e dificuldades de aprendizagem(6).
Os autores apresentam o relato de um homem XX com fenótipo masculino e infertilidade atendido no Serviço de Reprodução Humana da Faculdade Medicina do ABC (FMABC).
Paciente de 34 anos atendido no Ambulatório de Andrologia do Serviço de Reprodução Humana da FMABC com queixa de infertilidade primária há 6 anos. O paciente apresentava antecedente cirúrgico de correção de criptorquidia à direita aos 3 anos e, ao exame físico, foram observados pênis sem alterações, testículo direito atrófico, testículo esquerdo diminuído, pilificação ginecoide, e crescimento e desenvolvimento normais (Figura 1). O pacientes media 1,61 m e pesava 80 kg. Exames de imagem, resultados bioquímicos e hematológicos, e provas sorológicas também foram normais. Os níveis de T (404 ng/dL) e PRL (9,2 ng/ mL) estavam dentro dos limites normais; no entanto, os níveis de FSH (15,45 mUI/mL) e LH (10,9 mUI/ mL) caracterizavam um quadro de hipogonadismo hipergonadotrófico. Os resultados de duas análises seminais do paciente mostraram azoospermia não obstrutiva. As análises de sêmen foram realizadas de acordo com os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS). Além disso, para determinar as causas da infertilidade, foram solicitadas análise citogenética e pesquisa de microdeleção do cromossomo Y. O estudo citogenético revelou constituição cromossômica 46,XX em todas as 40 células analisadas (Figura 2). A investigação de microdeleção do cromossomo Y revelou a presença apenas do gene SRY (Figura 3). Esse paciente tinha um irmão casado e com filhos. O casal infértil foi encaminhado para aconselhamento genético.
Figura 1 Pilificação ginecoide, pênis sem alterações, testículo direito atrófico, testículo esquerdo diminuído e ductos deferentes presentes
Figura 2 Análise cromossômica por bandamento G do probando mostrando constituição cromossômica 46,XX
Figura 3 Gel de agarose 2,5% mostrando (M) marcador de peso molecular 50pb, (1) controle masculino com todas as regiões do cromossomo Y presentes, (2) probando com os genes AMELX e SRY presentes, (3) controle feminino normal somente com o gene AMELX presente e o branco (B)
Os dados foram coletados somente após a exposição dos objetivos do estudo e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FMABC.
A análise do DNA do DDS 46,XX demonstrou que, em aproximadamente 80 a 90% dos casos, há sequências do cromossomo Y em seu genoma, particularmente do gene SRY(7). A detecção desse gene em homens com constituição cromossômica 46,XX elucidou o motivo pelo qual, na ausência do cromossomo Y, a gônada bipotencial se diferencia em testículo. Nos 10 a 20% dos pacientes que não apresentam o SRY, geralmente são observadas hipospádia, criptorquidismo ou vários graus de ambiguidade genital. Esse fato indica que genes autossômicos e/ou ligados ao cromossomo X devem fazer parte de um mecanismo muito amplo de determinação gonadal(8).
Três mecanismos diferentes foram propostos para explicar a etiologia dos homens XX: (1) translocação de sequências do cromossomo Y, incluindo o gene SRY, para o cromossomo X ou autossomo (Figura 4); (2) mutação em um gene ligado ao X ou autossomo, gene este ainda desconhecido, que ativaria a cascata de diferenciação testicular em homens XX e SRY negativo; ou (3) mosaicismo oculto do cromossomo Y limitado ao tecido gonadal ou eliminado durante o desenvolvimento(5).
Figura 4 Um dos mecanismos propostos para explicar a etiologia dos homens XX: translocação do gene SRY para o cromossomo X devido a um crossing over anormal
Neste estudo, nós relatamos o caso de um homem XX SRY-positivo com fenótipo masculino e infertilidade como principal queixa. A análise de 40 metáfases revelou constituição cromossômica 46,XX sem alterações cromossômicas numéricas ou estruturais. A investigação de sequências do cromossomo Y mostrou a presença somente do gene SRY. O paciente tinha estatura baixa, o que poderia ser atribuído à ausência do estirão de crescimento na puberdade, devido à ausência do cromossomo Y.
É bem conhecido que homens inférteis apresentam 8 a 10 vezes mais anomalias cromossômicas do que os homens férteis e, muitas vezes, não apresentam outras características fenotípicas. Em revisão de 11 estudos envolvendo 9.766 homens azoo-oligozoospérmicos, as anormalidades dos cromossomos sexuais e autossomos foram encontradas em 4,2 e 1,5% dos homens, em comparação com 0,14 e 0,25%, respectivamente, dos controles(9). Com base nos dados de prevalência e na falta de outras características fenotípicas associadas, recomenda-se que seja solicitado de rotina o cariótipo dos homens inférteis com deficiência na espermatogênese e concentração de espermatozoides inferior a 10 milhões/ mL antes de serem submetidos à qualquer técnica de reprodução assistida(10).
A natureza heterogênea das anormalidades cromossômicas e seu resultado reprodutivo potencialmente complexo tornam indispensável que o geneticista e o clínico tenham conhecimento da prática moderna de fertilidade, tanto para o diagnóstico como para o aconselhamento de casais sobre a concepção natural ou por reprodução assistida. Se o esperma está disponível, mas o homem é portador de uma anormalidade cromossômica, observa-se risco superior ao da população normal de ocorrer um concepto inviável, ou um nascido vivo com deficiências. Em alguns casos, o genótipo pode apresentar uma perspectiva nula para recuperação de espermatozoides, como por exemplo, nos homens 46,XX, e, nesses casos, devem ser discutidas outras opções, tais como o uso de esperma de doador ou adoção(10).
Em conclusão, a investigação de alterações genéticas nos homens com infertilidade é muito importante porque os achados podem determinar o prognóstico e direcionar o tratamento adequado. O achado de homens com o cariótipo 46,XX, apesar de raro na população, pode ser frequente nos serviços de reprodução humana. Dessa forma, os clínicos devem estar cientes das diferentes apresentações fenotípicas que podem ser observadas nesses indivíduos.