versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.25 no.6 São Paulo 2013
http://dx.doi.org/10.1590/S2317-17822014000100009
O distúrbio de voz tem sido uma das principais causas de afastamento do trabalho docente. A importância desses afastamentos não se restringe aos aspectos econômicos, que não são desprezíveis, mas o distanciamento da atividade pedagógica conduz o docente à sensação de insegurança e isolamento( 1 , 2 ). Ao perder a voz, o professor, muitas vezes, é afastado de sua função e perde sua identidade.
O fato de que os professores constituem a categoria profissional com maior prevalência de distúrbios vocais em relação à população em geral é apontado na literatura nacional( 3 ) e internacional( 1 ). Estudo comparativo(4) entre professores e indivíduos que não desenvolvem práticas docentes realizado nos Estados Unidos revela que a prevalência de distúrbio vocal em professores, em algum momento da atividade profissional, é de 57,7%, bem superior à dos indivíduos não professores (28,8%). Mesmo estudo reproduzido no Brasil( 5 ) apresenta situação similar: presença de rouquidão foi mencionada em algum momento da carreira por 66,7% dos professores e 57,6% dos não professores, dados que refletem um panorama alarmante e alertam para os efeitos adversos dos problemas de voz no desempenho docente.
Diversos estudos têm procurado avaliar a associação do adoecimento vocal do professor e aspectos do trabalho docente, no sentido de definir fatores de risco biológicos e ambientais e minimizar os impactos físicos, sociais e psíquicos decorrentes desses transtornos( 4 ). Esses estudos identificam fatores de risco no ambiente escolar( 6 - 8 ), especialmente em escolas infantis e fundamentais( 9 ).
Professores têm intensa demanda vocal em atividades que exigem esforço, uma vez que lidam com muitas crianças em ambientes ruidosos. Além do ruído, aspectos referentes à presença de poeira, limpeza, iluminação e tamanho da sala prejudicam a qualidade do local de trabalho do professor e são fatores associados ao desenvolvimento de alterações vocais.
Entre os professores da rede municipal de São Paulo, pesquisa( 6 ) revela que 60% dos educadores referem presença de alterações vocais e apontam fatores de ambiente e da organização de trabalho como contribuintes para a ocorrência dessas alterações. No Departamento de Saúde do Servidor da Prefeitura do Município de São Paulo, responsável pela admissão, licença e readaptação de funcionários, os agravos mais frequentes que acometem os professores são transtornos mentais e doenças do aparelho respiratório. Nessa última categoria estão incluídos os distúrbios vocais, denominação genérica em que são classificadas manifestações como laringite aguda, pólipos ou nódulos em pregas vocais e disfonias funcionais em geral( 10 ). Mesmo comprometendo a produção vocal, as doenças do aparelho respiratório não são tidas como doenças ocupacionais ou acidentes de trabalho e o tratamento é, em geral, sintomático.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera o professorado como a categoria de maior risco de desenvolver distúrbios vocais. Entretanto, os fatores de risco para o adoecimento vocal mais comumente listados na literatura são biológicos ou relativos ao uso vocal, sendo poucos os que buscam fatores associados à forma e à intensidade com que o trabalho docente é executado( 11 ).
Características pessoais, como hábito de falar muito ou gritar, e aspectos biológicos, como a presença de alergia ou refluxo gastroesofágico, favorecem, mas não são causas suficientes nem necessárias para a ocorrência do distúrbio de voz. Há de se considerar, cada vez mais, os aspectos socioculturais e históricos que têm origem nas novas formas de organização e administração do trabalho docente, ou seja, fatores referentes ao conteúdo e à divisão do trabalho e às relações interpessoais, como determinantes do adoecimento vocal do professor. Aspectos do ambiente físico, químico e biológico afetam psiquicamente o trabalhador, principalmente se intensificados por tempo de exposição ou ritmo da organização do trabalho( 12 ). Desta forma, o trabalho em ambiente ruidoso pode demandar maior esforço para concentração de atenção e, portanto, quanto maior a jornada, maior o desgaste.
Sem recursos adequados para levar seus ideais à prática, ao mesmo tempo em que mantém o desejo de não renunciar a eles, o professor empreende maior esforço para realizar seu trabalho( 13 ). A intensificação de esforços como forma de lidar com a sobrecarga no trabalho pode ser de ordem física, cognitiva ou afetiva, e a sobrecarga em uma área pode resultar em manifestações nas outras( 12 ). Tais características do trabalho docente associadas às mudanças político-educacionais constantes( 2 ) favorecem o adoecimento do professor e propiciam manifestações de estresse e outras alterações psíquicas. Alguns estudos citam variáveis indicadoras de estresse associadas ao distúrbio de voz de professores, como experiências de violência na escola, dificuldades de relacionamento no trabalho, baixa autonomia e criatividade nas atividades, falta de tempo para correção de tarefas e provas e más condições de trabalho em geral( 8 , 9 ). O distúrbio de voz está também associado à referência de depressão e à mudança de profissão ou à aposentadoria precoce( 14 ).
Mesmo que os professores notem que estão perdendo a saúde, não veem como se proteger. A perda de capacidade para o trabalho é resultado de um processo que envolve aspectos sociodemográficos, estilo de vida, envelhecimento e exigências do trabalho, sendo a saúde um de seus principais determinantes( 15 ).
Este estudo teve por objetivo avaliar a associação do estresse no trabalho docente e da perda da capacidade funcional ao adoecimento vocal do professor. Seus resultados pretendem contribuir para avançar na identificação de aspectos da organização do trabalho docente como determinantes do estresse no trabalho e da perda da capacidade funcional associados ao adoecimento vocal do professor.
O estudo caso-controle foi realizado com professoras do Ensino Infantil, Fundamental e Médio da rede municipal de São Paulo. A escolha por realizar o estudo apenas com participantes do sexo feminino deu-se pelo fato de as mulheres representarem ampla maioria na população pesquisada (96,1% na pré-escola e 91,2% nos anos iniciais do Ensino Fundamental, segundo dados censitários de 2007 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), bem como maior prevalência de distúrbio vocal em comparação com professores do sexo masculino. Foram excluídas as professoras que apresentaram alterações em pregas vocais não associadas ao uso da voz e as que estavam afastadas da sala de aula por licença médica, readaptação funcional ou em funções administrativas, uma vez que o uso vocal, nesses casos, é distinto das atividades letivas. A opção por compor o grupo de controle com professoras das mesmas escolas dos casos teve por objetivo controlar os fatores relativos aos aspectos do ambiente físico e contextual (como ruído, poeira, indisciplina, violência), associados ao distúrbio de voz em diversos estudos.
A seleção de participantes constou de duas etapas. Da primeira etapa, participaram todas as professoras que compareceram ao Setor de Fonoaudiologia do Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM) com queixa de alteração vocal no período de julho/2007 a maio/2009. As educadoras submeteram-se às avaliações da voz e da laringe e responderam questionários (instrumentos detalhados a seguir).
Na segunda etapa, as pesquisadoras entraram em contato telefônico com as escolas das professoras participantes do estudo e agendaram uma visita, para fornecer esclarecimentos e selecionar, aleatoriamente, professoras para o grupo de controles. As educadoras selecionadas compareceram ao HSPM para se submeterem aos mesmos procedimentos da etapa anterior.
Para avaliação de voz, as coletas de amostra de fala foram realizadas por fonoaudiólogas, sempre às sextas-feiras, no início da manhã, a fim de garantir descanso vocal noturno. O registro foi realizado diretamente em computador portátil, com microfone de cabeça. Optou-se pela análise perceptivo-auditiva por ser um procedimento soberano na avaliação da qualidade vocal e pela escala GRBASI, por ser instrumento de uso internacional e de alto grau de confiabilidade. A avaliação das vozes foi realizada por análise simultânea de três juízas, fonoaudiólogas especialistas em voz. As juízas não participaram da coleta de amostra de fala e não tinham conhecimento da identificação dos sujeitos. A voz foi classificada em "com alteração", quando a alteração foi julgada moderada (grau geral 2) ou intensa (grau geral 3), e "sem alteração", quando normal (grau geral 0) ou leve (grau geral 1).
Todas as avaliações otorrinolaringológicas foram efetuadas pelo mesmo médico, otorrinolaringologista e foniatra com experiência clínica em laringologia, sempre após a coleta de amostra de fala. Foi realizada videolaringoscopia com laringoscópio rígido e flexível sob anestesia local, quando necessário. O protocolo de avaliação incluiu aspectos otorrinolaringológicos gerais e laríngeos específicos. O julgamento das imagens laríngeas foi realizado pelo mesmo profissional que realizou as avaliações, que não conhecia a história clínica das participantes. Os sujeitos foram classificados em "com alteração", na presença de lesão, alteração irritativa, estrutural ou de coaptação de pregas vocais, ou "sem alteração", na ausência de qualquer lesão ou alteração visível.
No presente estudo, a definição de caso foi baseada nos resultados das avaliações vocal e laringoscópica. Como caso, foram classificadas as professoras que apresentaram alteração nas avaliações vocal e otorrinolaringológica. Como controle, foram consideradas as participantes sem alteração em ambas as avaliações. Foram excluídas da amostra as professoras que apresentaram alteração em apenas uma das avaliações, com o objetivo de compor grupos bem distintos pela doença em questão, ainda que as mesmas tenham sido consideradas casos do ponto de vista clínico e acolhidas para tratamento.
Foram utilizados três questionários:
(1) Condição de produção vocal do professor (CPV-P) - instrumento utilizado em diversas pesquisas no Brasil, é adequado para caracterizar as condições de ambiente escolar e perfil vocal de professores. Neste estudo, as respostas forneceram os dados das variáveis sociodemográficas, de estilo de vida, de ocupação e de ambiente e organização do trabalho docente( 16 ).
(2) Job Stress Scale (JSS) - instrumento que avalia as dimensões de demanda, controle e apoio no trabalho referentes às fontes de estresse no ambiente psicossocial do trabalho e o desgaste resultante de sua interação. Foi utilizada a versão resumida adaptada para o português( 17 ), com 17 questões em três dimensões: demanda, controle e apoio. Demanda é qualquer tipo de pressão de natureza psíquica para realização de um trabalho, que pode ser tanto quantitativa, como pressão de velocidade e tempo, quanto qualitativa, referente à execução de tarefas contraditórias, por exemplo. Controle é a possibilidade que o trabalhador tem de utilizar as habilidades intelectuais para realizar seu trabalho e a autoridade que possui para tomar decisões. A terceira dimensão refere-se ao apoio social no ambiente de trabalho, sendo que a falta dessa interação social pode gerar consequências negativas à saúde do trabalhador. Neste estudo, a análise foi realizada considerando os quadrantes resultantes das interações entre as dimensões, a saber: alto controle e baixa demanda (baixa exigência), alto controle e alta demanda (trabalho ativo), baixo controle e baixa demanda (trabalho passivo) e baixo controle e alta demanda (alto desgaste). As condições de baixo desgaste e de trabalho ativo são consideradas ideal e boa, respectivamente, uma vez que favorecem a criatividade e podem motivar o desenvolvimento de novos comportamentos. As condições de trabalho passivo e alto desgaste são as mais nocivas, sendo que a segunda, alto desgaste, é a que apresenta maiores riscos de exigência psicológica e adoecimento psíquico ao trabalhador( 17 ).
(3) Índice de Capacidade para o Trabalho (ICT)( 18 ) - instrumento que retrata o conceito do trabalhador sobre sua própria capacidade para o trabalho e tem o objetivo de avaliar a perda da capacidade para o trabalho, bem como propor medidas de intervenção para prevenção de mais perdas e manutenção da atual capacidade de trabalho. Pode ser aplicado desde o ingresso na força de trabalho para prognosticar, de forma confiável, mudanças na capacidade para o trabalho em diferentes grupos ocupacionais. A avaliação considera as exigências físicas e mentais do trabalho, o estado de saúde do trabalhador e seus recursos físicos e mentais. É composto por sete dimensões: capacidade para o trabalho atual, comparada com a melhor de toda a vida, capacidade para o trabalho em relação às exigências do trabalho, número atual de doenças diagnosticadas por médico, a partir de uma lista de 51 doenças, perda estimada para o trabalho devido a doenças, faltas ao trabalho por doenças, prognóstico próprio sobre a capacidade para o trabalho e recursos mentais. O escore é calculado pela soma dos pontos recebidos para cada um dos itens (Quadro 4) e varia de sete a 49 pontos, a saber: de sete a 27 corresponde à baixa capacidade; de 28 a 36, à moderada capacidade; de 37 a 43, à boa capacidade; e de 44 a 49, à ótima capacidade para o trabalho.
A variável dependente foi a presença de distúrbio de voz (sim=caso; não=controle); a variável independente de interesse foi estresse no trabalho, medido pela JSS, e a capacidade para o trabalho, medido pelo ICT. Como variáveis independentes de controle foram consideradas as características sociodemográficas (idade, estado civil, escolaridade), de estilo de vida (tabagismo, etilismo), da função docente (tempo de profissão, vínculo como professora, horas/aulas por semana), do ambiente (presença de ruído, de eco, de poeira, de umidade, temperatura agradável, adequação da acústica, do tamanho da sala, da iluminação, da limpeza da escola e dos banheiros, utilização de produtos químicos irritativos na limpeza) e da organização do trabalho (se o ambiente é calmo, há supervisão constante, ritmo é estressante, tempo para realizar todas atividades na escola, local de descanso, facilidade para sair da sala, satisfação na função, comprometimento dos funcionários com a manutenção da escola, trabalho é monótono, trabalho é repetitivo, estresse no trabalho, situações de violência e frequência: depredação, roubo de objetos pessoais, ameaça ao professor, necessidade de intervenção da polícia, manifestação de racismo, indisciplina, briga, agressão, insulto, violência à porta da escola, violência contra funcionários, problemas com drogas e pichação).
Na análise estatística, avaliou-se, inicialmente, a consistência interna da JSS e ICT por meio do cálculo do coeficiente alfa de Cronbach. A seguir, foi realizada análise descritiva e de associação com a variável de interesse para comparação dos grupos de caso e controle pelo teste de associação pelo χ2, com correção de Yates. Foram estimados os modelos de regressão logística para calcular a Razão de Chances (Odds Ratio - OR) bruta e ajustada, com respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), para avaliar os riscos em relação à variável independente de interesse. A avaliação do ajuste da análise de regressão logística foi feita pelo teste de Hosmer-Lemeshow. No cálculo do tamanho da amostra, foi assumido erro tipo I de 5%, poder de teste de 80%, frequência esperada máxima de exposição entre os controles de 40%, valor mínimo de OR de 2,5 e estimou-se que seriam necessários 85 casos e 85 controles.
A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) - nº 173/07 - e do HSPM (nº 101/07). Todas as participantes receberam esclarecimentos e concordaram em participar do estudo, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Este estudo contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Foram analisadas 354 avaliações e, ao final, o grupo caso contou com 167 sujeitos e o grupo controle, com 105. Na comparação dos dados sociodemográficos, não houve diferença entre os grupos em nenhuma das variáveis avaliadas, fato que confirma que tais características das professoras de ambos os grupos são semelhantes (Tabela 1). A variável idade mostrou p<0,10 na análise univariada, sendo considerada variável de controle na análise de regressão logística.
Tabela 1 Distribuição de casos e controles, segundo características sociodemográficas e de estilo de vida
Características sociodemográficas e de estilo de vida | Controles (n=105) | Casos (n=167) | Valor de p | ||
---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | ||
Idade | |||||
20-29 anos | 15 | 14,3 | 21 | 12,6 | 0,092 |
30-39 anos | 38 | 36,2 | 50 | 29,9 | |
40-49 anos | 33 | 31,4 | 77 | 46,1 | |
50-65 anos | 19 | 18,1 | 19 | 11,4 | |
Estado civil | |||||
Solteira | 27 | 25,7 | 49 | 29,3 | 0,513 |
Casada | 62 | 59,0 | 100 | 59,9 | |
Separada/viúva | 16 | 15,2 | 18 | 10,8 | |
Escolaridade | |||||
Até superior incompleto | 4 | 3,8 | 13 | 7,8 | 0,187 |
Superior completo e mais | 101 | 96,2 | 154 | 92,2 | |
Tempo profissão | |||||
=10 anos | 33 | 31,7 | 40 | 24 | 0,244 |
11-15 anos | 23 | 22,1 | 29 | 17,4 | |
16-20 anos | 29 | 27.9 | 62 | 37,1 | |
=21 anos | 19 | 18,3 | 36 | 21,5 | |
Vínculo | |||||
Professora titular | 101 | 96,2 | 158 | 94,6 | 0,552 |
Professora substituta | 4 | 3,8 | 9 | 5,4 | |
Aulas/ semana | |||||
=10 horas | 14 | 13,3 | 29 | 17,4 | 0,187 |
11-20 horas | 16 | 15,2 | 22 | 13,2 | |
21-30 horas | 32 | 30,5 | 31 | 18,6 | |
31-40 horas | 24 | 22,9 | 48 | 28,7 | |
=41 horas | 19 | 18,1 | 37 | 22,2 | |
Tabagismo | |||||
Não fumante | 84 | 74,1 | 132 | 79,0 | 0,238 |
Ex-fumante | 11 | 10,5 | 16 | 9,6 | |
Fumante | 10 | 9,5 | 19 | 11,4 | |
Etilismo | |||||
Nunca | 45 | 43,3 | 78 | 46,7 | 0,666 |
Raramente | 43 | 41,3 | 60 | 35,9 | |
Às vezes | 16 | 15,4 | 29 | 17,4 |
Da mesma forma, não se observou diferença estatística entre os grupos de caso e controle na caracterização das condições físicas e contextuais do ambiente de trabalho, situação esperada, uma vez que os grupos foram pareados pelo local de trabalho (Tabelas 2 e 3). A única variável que apresentou diferença estatística foi acústica insatisfatória (p=0,010), adicionada na análise de regressão para ajuste.
Tabela 2 Distribuição de casos e controles, segundo características do ambiente físico do trabalho
Aspectos de ambiente físico de trabalho | Controles (n=105) | Casos (n=167) | Valor de p | ||
---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | ||
Presença de ruído | |||||
Não | 3 | 2,9 | 4 | 2,4 | 0,791 |
Sim | 99 | 97,1 | 162 | 97,6 | |
Acústica satisfatória | |||||
Não | 20 | 19,0 | 55 | 33,5 | 0,010 |
Sim | 85 | 81,0 | 109 | 66,5 | |
Presença de eco | |||||
Não | 19 | 18,3 | 35 | 21,3 | 0,541 |
Sim | 85 | 81,7 | 129 | 78,7 | |
Presença de poeira | |||||
Não | 10 | 9,6 | 1 | 7,2 | 0,476 |
Sim | 94 | 90,4 | 155 | 92,8 | |
Presença de umidade | |||||
Não | 24 | 23,5 | 39 | 24,1 | 0,919 |
Sim | 78 | 76,5 | 123 | 75,9 | |
Temperatura agradável | |||||
Não | 22 | 21,6 | 41 | 24,7 | 0,557 |
Sim | 80 | 78,4 | 125 | 75,3 | |
Tamanho sala adequado | |||||
Não | 53 | 51,0 | 91 | 54,5 | 0,571 |
Sim | 51 | 49,0 | 76 | 45,5 | |
Iluminação adequada | |||||
Não | 7 | 6,7 | 9 | 9 | 0,663 |
Sim | 98 | 93,3 | 158 | 94,6 | |
Limpeza satisfatória na escola | |||||
Não | 16 | 15,2 | 21 | 12,6 | 0,533 |
Sim | 89 | 84,8 | 146 | 87,4 | |
Limpeza satisfatória nos banheiros | |||||
Não | 6 | 5,7 | 20 | 12,0 | 0,087 |
Sim | 99 | 94,3 | 147 | 88,0 | |
Produtos limpeza causam irritação | |||||
Não | 24 | 22,9 | 31 | 18,7 | 0,404 |
Sim | 81 | 77,1 | 135 | 81,3 |
Tabela 3 Distribuição de casos e controles, segundo características da organização do trabalho
Aspectos organização do trabalho | Controles (n=105) | Casos (n=167) | Valor de p | ||
---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | ||
Ambiente calmo | |||||
Não | 37 | 35,6 | 60 | 37,5 | 0,751 |
Sim | 67 | 64,4 | 100 | 62,5 | |
Supervisão constante | |||||
Não | 11 | 13,2 | 22 | 13,2 | 0,582 |
Sim | 90 | 89,1 | 145 | 86,8 | |
Ritmo estressante | |||||
Não | 1 | 1,0 | 2 | 1,2 | 0,843 |
Sim | 104 | 99,0 | 163 | 98,8 | |
Tempo para realizar as atividades | |||||
Não | 19 | 18,1 | 37 | 22,6 | 0,379 |
Sim | 86 | 81,9 | 127 | 77,4 | |
Facilidade para ausentar-se da sala | |||||
Não | 32 | 30,5 | 68 | 41,0 | 0,081 |
Sim | 73 | 69,5 | 41 | 59,0 | |
Satisfação no exercício da função | |||||
Não | 4 | 3,8 | 6 | 3,6 | 0,934 |
Sim | 101 | 96,2 | 160 | 96,4 | |
Trabalho monótono | |||||
Não | 26 | 27,4 | 41 | 25,9 | 0,804 |
Sim | 69 | 72,6 | 117 | 74,1 | |
Trabalho repetitivo | |||||
Não | 19 | 18,4 | 32 | 19,5 | 0,829 |
Sim | 84 | 81,6 | 132 | 80,5 | |
Presença de violência | |||||
Depredação | |||||
Não | 23 | 22,1 | 42 | 25,3 | 0,551 |
Sim | 81 | 77,9 | 124 | 74,7 | |
Roubo de objetos pessoais | |||||
Não | 36 | 34,6 | 60 | 35,9 | 0,826 |
Sim | 68 | 65,4 | 107 | 64,1 | |
Ameaça ao professor | |||||
Não | 28 | 26,9 | 51 | 30,5 | 0,524 |
Sim | 76 | 73,1 | 116 | 69,5 | |
Manifestação de racismo | |||||
Não | 31 | 30,1 | 56 | 33,5 | 0,557 |
Sim | 72 | 69,9 | 111 | 66,5 | |
Indisciplina | |||||
Não | 7 | 6,7 | 10 | 6,0 | 0,832 |
Sim | 98 | 93,3 | 156 | 94,0 | |
Brigas | |||||
Não | 18 | 17,1 | 28 | 17,0 | 0,971 |
Sim | 87 | 82,9 | 137 | 83,0 | |
Violência contra funcionários | |||||
Não | 34 | 32,4 | 52 | 31,3 | 0,856 |
Sim | 71 | 67,6 | 114 | 68,7 | |
Problemas com drogas | |||||
Não | 29 | 27,6 | 38 | 22,8 | 0,365 |
Sim | 76 | 72,4 | 129 | 77,2 |
Em relação aos aspectos vocais, os grupos se diferenciaram, conforme esperado, uma vez que todos os sintomas vocais e as sensações laringofaríngeas avaliados tiveram associação estatisticamente significativa na distinção dos grupos (Tabela 4).
Tabela 4 Distribuição de casos e controles, segundo sintomas vocais
Sintomas vocais | Controles (n=105) | Casos (n=167) | Valor de p | ||
---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | ||
Rouquidão | |||||
Não | 50 | 49,0 | 11 | 6,6 | <0,001 |
Sim | 52 | 51,0 | 156 | 93,4 | |
Perda de voz | |||||
Não | 82 | 79,6 | 70 | 42,4 | <0,001 |
Sim | 21 | 20,4 | 95 | 57,6 | |
Falta de ar ao falar | |||||
Não | 75 | 72,1 | 72 | 43,6 | <0,001 |
Sim | 29 | 27,9 | 93 | 56,4 | |
Voz grossa | |||||
Não | 73 | 71,6 | 58 | 35,6 | <0,001 |
Sim | 29 | 28,4 | 105 | 64,4 | |
Voz variando | |||||
Não | 85 | 84,2 | 92 | 56,4 | <0,001 |
Sim | 16 | 15,8 | 71 | 43,6 | |
Voz fraca | |||||
Não | 72 | 69,2 | 65 | 19,4 | <0,001 |
Sim | 32 | 30,8 | 100 | 60,6 |
Na Tabela 5, o Modelo 1 apresenta os resultados da análise de regressão logística univariada das variáveis independentes de interesse; o Modelo 2, a análise de regressão logística multivariada com as variáveis demanda e controle (JSS); o Modelo 3, a análise de regressão logística multivariada com as variáveis demanda (JSS) e capacidade para trabalho (ICT) e, finalmente, o Modelo 4, a análise de regressão logística multivariada com as variáveis interação controle/demanda (JSS) e capacidade para trabalho (ICT).
Tabela 5 Análise de associação de estresse no trabalho e perda de capacidade para trabalho ao distúrbio de voz
Variável | Modelo 1 | Modelo 2 | Modelo 3 | Modelo 4 |
---|---|---|---|---|
OR1 (p) | OR2 aj (p) | OR3 aj (p) | OR4 aj (p) | |
JSS | ||||
Demanda | ||||
1º tercil | 1,0 | 1,0 | 1,0 | |
2º tercil | 2,2 (0,005) | 2,1 (0,014) | 1,3 (0,401) | |
3º tercil | 1,4 (0,343) | 1,3 (0,521) | 0,6 (0,255) | |
Controle | ||||
1º tercil | 2,0 (0,016) | 1,7 (0,095) | ||
2º tercil | 1,1 (0,731) | 1,0 (0,892) | ||
3º tercil | 1,0 | 1,0 | ||
Interação controle/demanda | ||||
Baixo controle | 1,0 | 1,0 | ||
Trabalho ativo | 1,8 (0,275) | 0,6 (0,382) | ||
Trabalho passivo | 1,7 (0,132) | 1,0 (0,967) | ||
Alto desgaste | 2,1 (0,028) | 0,7 (0,463) | ||
ICT | ||||
Baixa | 8,0 (0,001) | 6,0 (0,004) | 9,5 (0,001) | |
Moderada | 5,9 (0,001) | 4,5 (0,001) | 6,7 (<0,001) | |
Boa | 1,7 (0,308) | 1,3 (0,545) | 1,8 (0,280) | |
Ótima | 1,0 | 1,0 | 1,0 |
OR1: análise de regressão logística univariada de todas as variáveis independentes de interesse
OR2: modelo de regressão logística multivariada com demanda e controle
OR3: modelo de regressão logística multivariada com demanda e capacidade para trabalho
OR4: modelo de regressão logística multivariada com interação controle/demanda e capacidade para trabalho.
Legenda: JSS = Job Stress Scale
ICT = Índice de Capacidade para o Trabalho
aj: odds ratio ajustado.
Destaca-se, na análise de associação dos aspectos de estresse no trabalho, avaliados pela JSS, a diferença nas categorias demanda (p=0,019) e controle (p=0,034). Dentre os participantes do grupo de controles, 78,8% concentram-se nos níveis mais baixos de demanda, enquanto no grupo de casos, 69,3% situam-se nos níveis mais altos. Em relação ao controle do trabalho, observa-se situação inversa, ou seja, 63,1% dos professores do grupo de controles manifestam níveis mais altos de controle, enquanto 73,1% do grupo de casos encontram-se nas categorias mais baixas de controle. Não houve diferença em relação ao apoio (p=0,730).
Na análise de associação dos aspectos de capacidade para o trabalho, avaliados pelo ICT, verifica-se associação entre capacidade para o trabalho e distúrbio de voz (p<0,001). Pode-se observar que 66,6% dos participantes do grupo de controle consideram sua capacidade para trabalho como boa ou ótima, enquanto 67,4% dos participantes do grupo de caso a consideram baixa ou moderada.
Este estudo, do tipo caso-controle pareado, avaliou a associação do estresse no trabalho docente e da perda da capacidade funcional ao adoecimento vocal do professor. Optou-se por esse delineamento por ser um tipo de estudo apropriado para estimar a magnitude da associação entre exposição e doença e eficiente para avaliar agravos relacionados ao trabalho.
A principal dificuldade metodológica foi conceituar caso, uma vez que a variável dependente - distúrbio de voz - é manifestação dinâmica e funcional, o que impossibilita uma definição dicotômica entre doença e não doença. No presente estudo, optou-se por definir caso pela presença de alteração nas avaliações vocal, realizada por fonoaudiólogo, e laríngea, realizada por médico otorrinolaringologista.
Considerar como critério de exclusão o afastamento da sala de aula, por licença médica ou readaptação funcional, pode ter favorecido o viés do trabalhador sadio. Entretanto, a manutenção dessa parcela da população causaria distorções nas análises de comparação dos grupos, uma vez que a necessidade de uso vocal é distinta nessas ocupações. Optou-se por não considerar como critério de exclusão o fato de as professoras terem recebido orientação ou tratamento, uma vez que seria impossível garantir a ausência de qualquer informação prévia.
Para minimizar viés de aferição, foram utilizados questionários adaptados e validados para uso no Brasil, com avaliação da confiabilidade de cada instrumento antes da análise da medida de interesse.
Avaliar os efeitos do trabalho na saúde dos trabalhadores tem sido um desafio e diversas propostas teóricas e metodológicas vêm sendo elaboradas na perspectiva de apresentar modelos para estudar essa dimensão.
Optou-se por utilizar a JSS, instrumento baseado no modelo teórico de demanda, controle e apoio. Originado nos estudos de Karasek e com foco no modo de organização do trabalho, busca identificar a forma como o sujeito vivencia seu contexto de trabalho( 17 ).
O modelo demanda-controle tem sido usado em diversos estudos, especialmente na associação demanda/controle e doenças cardiovasculares. Essas pesquisas indicam que há associação mais forte com o controle do trabalhador com o próprio trabalho (ou com a falta dele) do que com a demanda( 19 ). Toda situação em que há baixo controle do trabalho pode produzir algum efeito na saúde advindo de perda de habilidade e desinteresse. A relação entre grande demanda e baixo controle é a mais nociva ao trabalhador e gera alto desgaste.
Não foram encontrados, na literatura consultada, estudos que utilizem a JSS associado ao distúrbio de voz do professor. Algumas pesquisas utilizaram a escala Job Content Questionnaire (JCQ) versão ampliada, com 49 questões, da qual a JSS se originou( 11 ). Neste estudo, as professoras classificadas na categoria de alto desgaste para interação controle/demanda (p=0,020) têm 2,2 vezes mais chance de terem distúrbio de voz quando comparadas com as categorias de baixo desgaste (Tabela 5, Modelo 1). A categoria de alto desgaste representa alta demanda de trabalho associada à baixa autonomia, situação na qual se encontra a maioria das reações adversas das exigências psicológicas, tais como fadiga, ansiedade, depressão e doença física( 19 ). O trabalho em alta exigência produz situações de maior repercussão negativa sobre a saúde psíquica, estando estatisticamente associado ao estresse psicológico, insatisfação no trabalho e síndrome de burnout.
Quanto maior o nível de determinação externa sobre o trabalho docente, maior sua intensificação, com redução do tempo para pensar, programar, planejar. Da mesma forma, quanto maior o grau de racionalização do trabalho escolar e complexidade das formas de organização e administração escolar, maior será o controle sobre o trabalho docente( 20 ).
As recentes reformas nos sistemas de ensino buscaram ampliar o atendimento educacional estendendo-o aos que não têm acesso( 2 ). Tais reformas geraram uma transformação nos aspectos físicos e de organização dos sistemas educativos, acompanhada pela adoção de critérios de eficácia, produtividade e excelência. Essa situação, segundo as autoras, provoca maior demanda de atendimento, com ampliação no número de matrículas, maior número de turmas e de alunos por sala de aula, configurando intensificação tanto em termos qualitativos, caracterizados pelas transformações da atividade sob pressão temporal, quanto em termos quantitativos, relacionados ao aumento do volume de tarefas.
Ao mesmo tempo em que aumenta a pressão e o volume da tarefa, o professor perde, progressivamente, o controle sobre as atividades docentes, que se tornam múltiplas e complexas dentro da sala de aula, com simultaneidade de eventos, imprevisibilidade e imediatismo( 21 ). É comum ao professor executar outras tarefas enquanto leciona, como atender ao aluno individualmente, controlar a turma e preencher instrumentos e formulários de controle( 2 ). Tais situações de sobreposição de tarefas explicam o cansaço físico, vocal e mental do docente.
As tomadas de decisão dos professores representam um ponto de equilíbrio na sobreposição de tarefas que abruptamente se instalam, fato que conduz à perda da qualidade e sensação de trabalho inacabado ou objetivo não alcançado( 2 ). As autoras acrescentam que trabalhar sob pressão desfavorece o desenvolvimento de estratégias de autoproteção à saúde, como a busca de melhor postura corporal ou projeção vocal, e resulta na adoção de estratégias com hipersolicitação do corpo e consequente fadiga física e mental.
A somatória de exigências leva a um aumento de esforços que ultrapassa os limiares adequados às condições de saúde do trabalhador. Frente ao acúmulo de trabalho em condições adversas, além da fadiga, o trabalhador procura aumentar sua capacidade de trabalho e busca, em seu repertório, novos recursos para enfrentar a situação que se apresenta. Essa autoexigência acarreta esforço no sentido de controlar e não demonstrar cansaço, irritação, raiva( 12 ).
O modelo de avaliação do estresse no trabalho adotado prediz que o trabalho na condição de alto desgaste, definido como trabalho com alta demanda e baixo controle, pode conduzir ao declínio na atividade global do indivíduo e à redução da capacidade de produzir soluções para as atividades e problemas enfrentados( 17 ). Tal condição situa-se na direção contrária dos valores idealizados para educação, como ser criativo, transformador, capaz de propiciar o desenvolvimento do aluno em seu sentido mais amplo, o que dificulta a superação dessa condição. A decepção com a realidade encontrada é citada como causa primeira da frustração com o trabalho docente( 22 ). Ao abandonar a imagem idealizada e subordinar-se ao trabalho proposto, o professor elimina, em última instância, o próprio sentido do seu trabalho.
A ênfase nas habilidades e competências individuais do docente e suas repercussões sobre os projetos educacionais encobrem as inadequações entre os objetivos da educação para todos e as condições de trabalho existentes( 13 ):
o mal-estar docente pode ser explicado pela presença de obstáculos relacionados ao volume de trabalho e à precariedade das condições existentes, mas também às altas demandas no trabalho, incluindo as demandas emocionais, junto a uma expectativa social de excelência, cujo limite é exigir do professor uma atuação capaz de reverter a situação na qual se encontra (p. 5).
Se, por um lado, as educadoras convivem diariamente com as condições precárias de seu ambiente de trabalho, submetidas à hierarquia e à pressão, por outro, desejam manter seu trabalho letivo de forma criativa e crítica( 23 ). Instala-se um paradoxo entre conformismo e resistência que pode se manifestar em sintomas mentais e físicos e, entre esses, a alta prevalência de distúrbio de voz na categoria docente reforça a hipótese do desgaste e do mal-estar dos professores( 13 ).
Ter que trabalhar e não conseguir fazê-lo de forma satisfatória, ter consciência do seu papel de transformação frente à sociedade e não conseguir levar os alunos a desenvolverem suas competências e habilidades para atuar como cidadãos e no mercado de trabalho gera uma condição de sofrimento, um mal-estar do trabalho impedido( 24 ). O desgaste relacionado à imagem na mídia reforça essa posição contraditória: se for mero executor, não se implica no processo educativo, por outro lado, as próprias formas de avaliação de seu trabalho, bem como os parâmetros de qualidade aferidos pelos dados oficiais, baseiam-se nessa submissão( 24 ).
Essa dinâmica de forças contrárias conduz o professor ao adoecimento e, principalmente, à inviabilidade de manter-se na função docente. Em que pese a interação demanda/controle de alto desgaste ter associação estatística com o distúrbio de voz, tal associação não se mantém quando o ICT é adicionado ao modelo múltiplo, o que demonstra o papel preponderante da capacidade de trabalho na relação com o sintoma vocal do professor.
Assim como estresse, o conceito de capacidade para o trabalho está ancorado na interação das exigências do trabalho e dos recursos físicos e mentais do trabalhador, representando uma medida de envelhecimento funcional( 25 ).
Não foram encontrados, na literatura pesquisada, estudos que utilizem o ICT com professores e a escolha por esse instrumento deu-se pela possibilidade de retratar a repercussão do adoecimento vocal na carreira e na vida do professor.
Neste estudo, o ICT mostrou-se um marcador fortemente associado ao distúrbio de voz. Na análise de associação univariada realizada com todas as variáveis independentes de interesse, as categorias de capacidade para o trabalho baixa (OR=8,0; p=0,001) e moderada (OR=5,9; p=0,001) mostraram forte associação estatística ao distúrbio de voz (Tabela 5, Modelo 1). Na análise múltipla que considerou a interação controle/demanda e a capacidade para o trabalho, verificou-se que essa última tem associação significativa e independente nas categorias baixa e moderada capacidade para o trabalho (Tabela 5, Modelo 4).
Observa-se, em todas as análises do ICT, a presença da relação dose/resposta, ou seja, quanto maior a exposição, maior a chance de ocorrer o desfecho e maior a resposta apresentada, que representa um indicador de relação causal.
Os resultados indicam um envelhecimento funcional precoce nas professoras com distúrbio de voz, independentemente do declínio associado à idade. Aspectos referentes à saúde são determinantes para a capacidade para o trabalho e, neste caso, o sintoma vocal tem papel preponderante. Os educadores dependem essencialmente da voz para realizar o seu trabalho e a presença do distúrbio de voz gera progressivo distanciamento da docência.
Professores têm mais limitação no desempenho profissional e nas interações sociais (43%) que não professores (16%), sendo que um em cada três professores é levado a reduzir suas atividades letivas devido ao distúrbio de voz( 5 ). Da mesma forma, professores encontram mais dificuldades para realizar suas atividades de comunicação diária e faltam mais ao trabalho por problemas vocais( 5 , 6 ) do que trabalhadores de outras categorias profissionais, sendo a categoria que apresenta maior taxa de afastamento por problemas de comunicação( 26 ).
Na impossibilidade de trabalhar, o afastamento da docência ou da escola é concretizado por faltas, licenças ou readaptação funcional, recurso no ensino público quando o professor não apresenta condição física ou mental de permanecer na atividade que exerce. Ao ser readaptado, o professor afasta-se de suas atividades pedagógicas, assumindo outra atividade em que não precise utilizar a voz. Essa indicação médica, que visa à diminuição do esforço vocal, acaba sendo um benefício menor perto da dificuldade de retorno às atividades letivas. Ao realizar outra atividade na escola, o professor afasta-se das atividades pedagógicas e de seu papel como educador, passando a cumprir trabalho burocrático.
O recurso da readaptação funcional para o professor como forma de poupar o uso da voz, cada vez mais, tem sido um caminho sem volta. Esse afastamento o distancia das práticas pedagógicas e, consequentemente, do contato com alunos e colegas. Ao deixar de "utilizar a voz", o professor também deixa de estar na posição de quem tem a palavra, de sustentar um lugar de saber. Por outro lado, enquanto permanece readaptado, também se afasta das condições de indisciplina, violência e estresse da sala de aula. Ao reassumir a sala de aula, haverá não apenas a utilização da voz em período prolongado, mas, principalmente, retorno àquela situação desgastante anteriormente descrita( 23 ).
O afastamento de um professor da escola acarreta, ainda, aumento de demanda para os outros que permanecem, com reordenamento dos alunos do colega que se ausentou em suas salas( 2 ). Estudo sobre lesões por esforços repetitivos destaca que os colegas dos trabalhadores que adoecem sentem-se, em geral, sobrecarregados de trabalho com suas ausências e passam a culpar o doente pela manifestação do sintoma ( 27 ) :
[...]a estranheza é recíproca e consequente a uma situação inusitada e desagregadora. O adoecido que via a si próprio nos outros e com eles se identificava, através de manifestações de afeto, elogios e solidariedade, sente-os afastados, incriminadores. Os sadios, que do mesmo modo se viam no adoecido quando esse era são, o percebem diferente, trabalhando pouco ou mal e se comportando socialmente de maneira estranha [...] A dor, a tristeza e a irritabilidade, sinais premonitórios que acompanham a perda da capacidade de trabalho, "de não poder fazer", são percebidas externa e socialmente, como vontade deliberada de não trabalhar (p. 90).
Quando não é afastado da função, muitas vezes, o professor opta por demissão voluntária. Estudo realizado no Estado de São Paulo aponta que houve um aumento de 300% entre 1990 e 1995 nos pedidos de exoneração no magistério público em São Paulo( 28 ). Os baixos salários, as precárias situações, a insatisfação no trabalho e o desprestígio profissional estão entre os fatores que mais contribuem para que os professores deixem a profissão docente.
Trabalhadores que exercem funções com exigências predominantemente mentais, como é o caso dos educadores, tendem a ter sua capacidade para o trabalho mais preservada do que aqueles com conteúdo predominantemente físico( 15 ). Mas essas ocupações com tais características, em geral, envolvem maior reconhecimento, prestígio profissional, autonomia, participação na tomada de decisões e, principalmente, salários melhores, características que, hoje, não estão associadas ao trabalho docente.
Se o trabalho tem um sentido próprio para o professor, investido de afetividade, projeção de valores e dignidade, o reconhecimento é fundamental para a mobilização subjetiva que permite a manutenção do comprometimento e criatividade no trabalho( 12 ). A falta de reconhecimento da dinâmica coletiva implícita ao adoecimento vocal do professor contribui para a crescente perda da capacidade para o trabalho e consequente afastamento da docência.
Nos últimos anos, tem-se intensificado o debate sobre o comprometimento da saúde vocal de profissionais que utilizam a voz como instrumento de trabalho( 29 ). Doença relacionada ao trabalho é aquela que, ainda que não possua especificidade com determinado tipo de ocupação, tem maior incidência e prevalência em trabalhadores envolvidos em determinada atividade( 30 ). Entende-se por Distúrbio de Voz Relacionado ao Trabalho qualquer alteração vocal diretamente relacionada ao uso da voz durante a atividade profissional que diminua, comprometa ou impeça a atuação e/ou a comunicação do trabalhador( 29 ). O desenvolvimento do distúrbio vocal decorrente do uso profissional da voz tem se mostrado, cada vez mais, associado à organização do trabalho e levado trabalhadores de diversas categorias, como professores e teleoperadores, a situações de afastamento e incapacidade para o desempenho de suas funções, o que implica custos financeiros e sociais.
Ainda que estudos apontem associação de fatores do ambiente escolar ao desenvolvimento do distúrbio de voz do professor, não é possível estabelecer relação causal entre tais fatores e o distúrbio vocal. Há dificuldade no estabelecimento de nexo causal nas doenças contemporâneas, mesmo naquelas inferidas como resultantes do trabalho, uma vez que esses agravos expressam-se por transtornos de função e de comportamento social( 27 ). Assim como outras doenças funcionais, o distúrbio de voz tem, por característica, causalidade difusa e complexa, não objetiva e linear. Não há causas independentes que determinem o desenvolvimento dos distúrbios vocais do professor, e sim aspectos que se sobredeterminam, pressupondo, mais do que somatória dos fenômenos, a noção dinâmica de um processo dialético( 23 ).
A situação remete à discussão de essa morbidade poder ser, ou não, considerada doença relacionada ao trabalho para fins trabalhistas. Tal reconhecimento, se considerado, poderia diminuir o sofrimento de docentes que ficam incapacitados de lecionar pela presença de alterações vocais e são afastados de suas funções, com prejuízos financeiros e profissionais. Considerando a complexidade da relação entre a saúde do professor e o trabalho docente, estratégias de intervenção coletiva podem ser mais eficientes na modificação do perfil de morbidade e melhora da qualidade de vida dessa categoria.
Este estudo caso-controle confirmou a associação entre distúrbio de voz e estresse no trabalho, bem como entre distúrbio de voz e perda de capacidade para o trabalho em professoras da rede municipal de ensino de São Paulo. Foi encontrada diferença entre o grupo de casos e de controles em relação ao estresse no trabalho na condição de alta exigência (OR=2,1; IC95% 1,1-3,9), que representa alta demanda associada a baixo controle do trabalho, situação com maior risco de presença de reações adversas à saúde física e mental dos trabalhadores. Em relação à capacidade de trabalho, as categorias baixa e moderada capacidade para o trabalho estão associadas à presença de distúrbio de voz, independentemente dos fatores estresse no trabalho, idade e acústica insatisfatória.
Ainda que o delineamento de caso-controle não permita estabelecer relação causal entre a exposição e o efeito na saúde, os resultados do estudo, ao confirmarem a associação dos aspectos de estresse e redução da capacidade para o trabalho ao distúrbio de voz, podem embasar a elaboração de estratégias de promoção de saúde e construção de políticas públicas que favoreçam o professor e demais trabalhadores que utilizem intensamente a voz em suas atividades profissionais.