versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.1 São Paulo jan. 2019
https://doi.org/10.5935/abc.20180249
A terapia de redução da pressão arterial (PA) melhora os parâmetros do ventrículo esquerdo (VE) na lesão a órgãos-alvo causada pela condição hipertensiva na hipertensão de estágio II; no entanto, se existem ou não diferenças relacionadas à classe de medicamentos nos parâmetros ecocardiográficos de pacientes com hipertensão estágio I é menos frequentemente estudado. No estudo PREVER-treatment, em que indivíduos com hipertensão estágio I foram randomizados para tratamento com diuréticos (clortalidona/amilorida) ou losartana, 110 participantes aceitaram participar de um subestudo, no qual foram realizados ecocardiogramas bidimensionais basais e após 18 meses de tratamento anti-hipertensivo. Como no estudo geral, a redução da PA sistólica foi semelhante com diuréticos ou com losartana. Os parâmetros ecocardiográficos mostraram pequenas mas significativas alterações em ambos os grupos de tratamento, com um remodelamento favorável do VE com tratamento anti-hipertensivo por 18 meses, quando a pressão arterial alvo foi atingida com clortalidona/amilorida ou com losartana como estratégia inicial de tratamento. Em conclusão, mesmo na hipertensão estágio I, a redução da pressão arterial está associada à melhora nos parâmetros ecocardiográficos tanto com o uso de diuréticos ou losartana como primeiro esquema de tratamento farmacológico.
Palavras-chave Inibidores da Enzima Conversora de Angiotensina; Hipertensivos; Pressão Arterial; Hipertensão/complicações; Hipertensão/terapia; Canais de Cálcio; Ecocardiografia
Blood pressure (BP)-lowering therapy improves left ventricular (LV) parameters of hypertensive target-organ damage in stage II hypertension, but whether there is a drug-class difference in echocardiographic parameters in stage I hypertension patients is less often studied. In the PREVER treatment study, where individuals with stage I hypertension were randomized for treatment with diuretics (chlorthalidone/amiloride) or losartan, 110 participants accepted to participate in a sub-study, where two-dimensional echocardiograms were performed at baseline and after 18 months of antihypertensive treatment. As in the general study, systolic BP reduction was similar with diuretics or with losartan. Echocardiographic parameters showed small but significant changes in both treatment groups, with a favorable LV remodeling with antihypertensive treatment for 18 months when target blood pressure was achieved either with chlorthalidone/amiloride or with losartan as the initial treatment strategy. In conclusion, even in stage I hypertension, blood pressure reduction is associated with improvement in echocardiographic parameters, either with diuretics or losartan as first-drug regimens.
Keywords Angiotensin-Converting Enzyme Inhibitors; Anihypertensive Agents; Antihypertensive Agents/therapy; Blood Pressure; Hypertension/complications; Hypertension/therapy; Calcium Channel; Echocardiography
A insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEP) é uma condição cada vez mais prevalente e onde a hipertensão exerce um papel importante.1 A ecocardiografia identifica aumento da massa ventricular esquerda (MVE),2 remodelação concêntrica do VE,3 aumento do átrio esquerdo (AE) e disfunção diastólica,4 que são utilizados para diagnosticar a ICFEP1 e são independentemente associados a eventos cardiovasculares.
O tratamento para reduzir a pressão arterial (PA) melhora a função diastólica e reduz a MVE e o tamanho do AE, especialmente na hipertensão estágio II, mas os graus de benefícios podem ser diferentes de acordo com o medicamento utilizado.5 Se há diferenças nos parâmetros ecocardiográficos com o uso de diferentes classes de medicamentos anti-hipertensivos na hipertensão estágio I, isso ainda é pouco estudado.
O presente estudo foi realizado para comparar os efeitos da clortalidona/amilorida versus losartana nas evidências ecocardiográficas de consequências do estado hipertensivo em pacientes com hipertensão estágio I.
Trata-se de um subestudo ecocardiográfico, realizado em um único centro, do estudo PREVER-Treatment,6 um ensaio controlado randomizado (ECR), multicêntrico e duplo-cego, comparando o uso de clortalidona e amilorida versus losartana para o tratamento da hipertensão estágio I como a primeira opção no manejo da hipertensão estágio I.
População, métodos e resultados do estudo PREVER-Treatment são descritos em detalhes em outro estudo.6 Em resumo, todos os participantes elegíveis do estudo PREVER-Treatment tinham entre 30 e 70 anos de idade, com hipertensão estágio I conforme as diretrizes do Eighth Joint National Committee (JNC 8) sobre hipertensão (PA sistólica entre 140 e 159 ou PA diastólica entre 90 e 99 mmHg),7 e não estavam em uso de medicação anti-hipertensiva. Eles foram submetidos a uma fase de intervenção no estilo de vida pré-inclusão no estudo; caso a BP permanecesse controlada de forma inadequada após 3 meses de intervenção no estilo de vida, eles eram incluídos no ECR. Os participantes foram distribuídos aleatoriamente em uma proporção de 1: 1 para um comprimido combinado de clortalidona/amilorida 12,5/2,5 mg ou para losartana 50 mg. Uma reavaliação era feita a cada 3 meses e, se necessário, o tratamento era ampliado com medicamentos para hipertensão open-label, de acordo com o protocolo. A consulta final ocorreu após 18 meses de seguimento.
A ecocardiografia transtorácica foi obtida no início e após 18 meses de tratamento. Todos os exames ecocardiográficos foram realizados com o mesmo equipamento (Envisor C HD ou HD 11, Philips) com transdutor setorial multifrequencial padrão por 2 cardiologistas treinados e cegos para as informações do estudo e local do tratamento, seguindo um protocolo padronizado descrito anteriormente.8 Os estudos ecocardiográficos foram avaliados com cegamento por um único médico utilizando uma estação de trabalho dedicada (Image Arena versão 4 - TomTec, Alemanha). As medições foram realizadas de acordo com as diretrizes da sociedade internacional.9 O estudo foi aprovado pelo comitê de pesquisa em seres humanos da instituição e o consentimento informado foi obtido de cada paciente.
As comparações entre as medidas ecocardiográficas iniciais e finais em cada grupo de tratamento foram avaliadas com testes t pareados. As comparações entre as diferenças nos grupos de tratamento foram avaliadas por testes t para amostras independentes. Um modelo linear generalizado foi utilizado para ajustar os resultados ecocardiográficos para a variação da pressão arterial média, parâmetro ecocardiográfico basal e tempo entre a randomização e o exame ecocardiográfico. A reprodutibilidade intraobservador foi avaliada em 20 estudos escolhidos aleatoriamente, utilizando-se o coeficiente de correlação intraclasse, e variou entre 0,99 e 0,67, com a menor reprodutibilidade encontrada para a medida da espessura da parede posterior.
Dos 655 participantes do estudo PREVER-Treatment, 230 participantes do centro do Hospital de Clínicas de Porto Alegre foram convidados a participar da avaliação ecocardiográfica, dos quais 133 participantes estavam dispostos a participar e 110 realizaram ecocardiograma no início e após 18 meses de seguimento.
As características clínicas e demográficas basais são mostradas na Tabela 1. A pressão arterial sistólica (PAS) foi menor no grupo losartana do que no estudo principal, mas foi similar entre os pacientes recebendo diuréticos e losartana que realizaram ecocardiogramas. Todas as outras características basais foram semelhantes entre os grupos de tratamento e o grupo principal do estudo, incluindo o uso prévio de medicamentos anti-hipertensivos (diuréticos: 71,4%, losartana: 65%, p = 0,47).
Tabela 1 Características clínicas e demográficas iniciais dos participantes por grupo de tratamento
Estudo PREVER-Treatment | Subestudo Eco | |||
---|---|---|---|---|
Diuréticos (n = 333) | Losartana (n = 322) | Diuréticos (n = 56) | Losartana (n = 54) | |
Sexo (masculino) | 167 (50,2) | 167 (51,9) | 34 (60,7) | 28 (51,9) |
Idade (anos) | 53,9 ± 8,4 | 54,7 ± 7,9 | 55,5 ± 7,6 | 54,1 ± 8,3 |
IMC (kg/m²) | 29,1 ± 5,0 | 28,8 ± 4,7 | 28,5 ± 4,4 | 28,5 ± 4,3 |
PAS (mmHg) | 142,6 ± 7,1 | 142,1 ± 6,5 | 142,2 ± 8,2 | 139,4 ± 6,0 |
PAD (mmHg) | 89,7 ± 6,3 | 89,4 ± 6,1 | 90,6 ± 5,9 | 90,2 ± 5,6 |
Diuréticos: clortalidona/amilorida; IMC: índice de massa corporal; PAS: pressão arterial sistólica; PAD: pressão arterial diastólica. Os dados são expressos como média ± SD ou número (%).
Como mostrado na Tabela 2, não houve diferença significativa entre os grupos de tratamento na PAS final. Houve uma proporção semelhante de pacientes que receberam dose total de amlodipina (10 mg por dia) após 18 meses de seguimento em ambos os grupos de tratamento (5,3% no grupo diuréticos, 9,2% no grupo losartana, p = 0,43).
Tabela 2 Variações ajustadas na pressão arterial e nos parâmetros ecocardiográficos entre os grupos de tratamento com diuréticos (clortalidona/amilorida) e losartana*
Variável | Medicamento | Basal | Seguimento 18 meses | Variação da Basal | p | Variação entre os grupos | p | Variação ajustada entre os grupos** | p |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
PAS (mmHg) | Diuréticos | 142,2 ± 8,2 | 129,8 ± 10,0 | -12,4 ± 11,1 | < 0,001 | 2,7 | 0,18 | 1,18 | 0,51 |
Losartana | 139,4 ± 6,0 | 129,7 ± 8,7 | -9,7 ± 9,4 | < 0,001 | |||||
PAD (mmHg) | Diuréticos | 90,6 ± 5,9 | 83,7 ± 7,0 | -6,8 ± 5,9 | < 0,001 | 1,2 | 0,33 | 0,77 | 0,49 |
Losartana | 90,2 ± 5,6 | 82,1 ± 6,8 | -8,0 ± 6,6 | < 0,001 | |||||
IMVE (g/m2) | Diuréticos | 84 ± 17 | 81 ± 19 | -3 ± 16 | 0,11 | 1,78 | 0,48 | 3,84 | 0,14 |
Losartana | 82 ± 17 | 77 ± 16 | -4 ± 14 | 0,02 | |||||
ESIV (mm) | Diuréticos | 10,0 ± 1,2 | 9,7 ± 1,3 | -0,3 ± 1,2 | 0,03 | 0,34 | 0,13 | 0,60 | 0,009 |
Losartana | 10,0 ± 1,1 | 9,4 ± 1,2 | -0,7 ± 1,1 | < 0,001 | |||||
EPP (mm) | Diuréticos | 10,1 ± 1,1 | 9,5 ± 1,1 | -0,6 ± 3,3 | < 0,001 | -0,13 | 0,47 | 0,16 | 0,38 |
Losartana | 9,8 ± 1,1 | 9,4 ± 1,0 | -0,46 ± 1,1 | 0,002 | |||||
ERP | Diuréticos | 0,45 ± 0,06 | 0,42 ± 0,05 | -0,04 ± 0,06 | < 0,001 | -0,009 | 0,47 | 0,007 | 0,53 |
Losartana | 0,44 ± 0,06 | 0,41 ± 0,05 | -0,03 ± 0,07 | 0,006 | |||||
VAEI (ml/m2) | Diuréticos | 25,4 ± 6,5 | 24,1 ± 6,9 | -1,4 ± 6,2 | 0,12 | 1,24 | 0,28 | 0,26 | 0,83 |
Losartana | 28,2 ± 7,8 | 25,7 ± 5,9 | -2,6 ± 5,2 | 0,001 | |||||
Relação E/e’ Medial | Diuréticos | 8,1 ± 2,1 | 8,5 ± 2,6 | 0,42 ± 2,52 | 0,23 | 0,61 | 0,21 | 0,22 | 0,65 |
Losartana | 8,8 ± 2,3 | 8,6 ± 2,3 | -0,19 ± 2,39 | 0,57 | |||||
TDE (ms) | Diuréticos | 229,2 ± 47,4 | 252,2 ± 67,2 | 23,0 ± 63,0 | 0,01 | 11,0 | 0,37 | 13,33 | 0,34 |
Losartana | 230,0 ± 45,4 | 243,8 ± 66,9 | 12,0 ± 64,2 | 0,19 |
*Diuréticos: n=56; Losartana: n = 54.
**Análise de covariância ajustada para variação da pressão arterial média, parâmetro ecocardiográfico basal correspondente e tempo entre a randomização e o exame ecocardiográfico. Diuréticos: clortalidona/amilorida; PAS: pressão arterial sistólica; PAD: pressão arterial diastólica; IMVE: índice de massa do ventrículo esquerdo; ESIV: espessura do septo interventricular; EPP: espessura da parede posterior; ERP: espessura relativa da parede; VAEI: volume do átrio esquerdo indexado; TDE: tempo de desaceleração da onda E. Os dados são expressos como média ± DP.
Os parâmetros ecocardiográficos basais foram semelhantes entre os grupos (Tabela 2), com exceção do volume do átrio esquerdo indexado (VAEI), que foi maior no grupo losartana (28,2 ± 7,8 mL/m² vs 25,4 ± 6,5 mL/m², p < 0,05). Após 18 meses de tratamento, houve uma redução significativa na espessura do septo interventricular (ESIV), espessura da parede posterior (EPP) e espessura relativa da parede (ERP), e um aumento significativo no tempo de desaceleração da onda E (TDE) no grupo diuréticos; no grupo losartana, houve uma redução significativa no volume do átrio esquerdo indexado (VAEI), no índice de massa do ventrículo esquerdo (IMVE), na ESIV, EPP e ERP (Tabela 2).
Após ajuste para variação da pressão arterial média, parâmetro ecocardiográfico basal e tempo entre a randomização e o exame ecocardiográfico, os indivíduos do grupo losartana apresentaram maior redução da espessura do septo interventricular (-0,7 ± 1,1 mm vs -0,3 ± 1,2 mm; diferença ajustada: 0,6 mm; p = 0,009). No entanto, essa redução não foi suficiente para se traduzir em diferenças nos padrões geométricos ou nos parâmetros da função diastólica entre os grupos de tratamento.
Este estudo mostra que, na hipertensão estágio I, a, a redução da massa do VE e do tamanho do AE e as alterações nos parâmetros da função diastólica foram semelhantes no tratamento com clortalidona/amilorida ou com losartana por 18 meses.
A detecção de lesão de órgãos-alvo é importante para uma estimativa adequada do prognóstico do paciente hipertenso. O aumento da massa e hipertrofia do VE predizem eventos cardiovasculares de maneira independente. Apesar das preocupações com a variabilidade ecocardiográfica,10 este é o estudo de imagem de primeira linha para avaliação da massa do VE. Em nosso estudo, para aumentar a reprodutibilidade das medidas, todos os estudos foram avaliados com cegamento para consulta e alocação de tratamento, e a análise pareada de dados permitiu medir a variação intrínseca de cada participante.
Dois grandes estudos compararam diretamente diferentes classes de medicamentos anti-hipertensivos. O estudo TOMHS, em uma época anterior aos bloqueadores de receptores da angiotensina (BRA), avaliou 844 pacientes com hipertensão estágio I, randomizados para tratamento não farmacológico e clortalidona, acebutolol, amlodipina, enalapril, doxazosina ou placebo.11 Apenas a clortalidona promoveu a regressão da hipertrofia do ventrículo esquerdo (HVE) em comparação com placebo em 12 meses (-4,8 g vs -18,2 g; p = 0,04), sem diferença observada em 48 meses. É importante notar que, durante o seguimento, 33% dos pacientes do grupo placebo receberam prescrição de medicamento ativo.
O subestudo LIFE avaliou 960 pacientes com PAS mais alta (160-200 mmHg), randomizados para losartana ou atenolol.12 Após 5 anos, a MVE apresentou maior redução com a losartana do que com o atenolol (-21,7 g vs -17,7 g; p = 0,01), embora a redução da PA tenha sido semelhante. Neste estudo, a redução da MVE também foi mais pronunciada durante os primeiros 12 meses de tratamento. Deve-se notar que mais pacientes no grupo losartana também estavam utilizando hidroclorotiazida.
Até onde sabemos, apenas um estudo comparou diretamente o uso de diurético (hidroclorotiazida) e BRA (telmisartana) em 69 pacientes com PAD de 90-114 mmHg, mostrando uma redução maior da MVE estimada pela ecocardiografia tridimensional com telmisartana (16 g vs 4 g em 12 meses).13 Vale ressaltar que o BRA foi utilizado na dose máxima e o diurético em dose baixa.
Os resultados do nosso estudo estão em acordo com os achados de uma meta-análise5 resumindo estudos comparativos randomizados de tratamento anti-hipertensivo na regressão da massa do VE em pacientes com hipertensão estágio II. Houve menor redução da massa do VE com betabloqueadores, enquanto diuréticos, bloqueadores dos canais de cálcio, inibidores da enzima conversora de angiotensina e BRA tiveram eficácia semelhante. Mostramos que não houve diferença na regressão de massa do VE após 18 meses entre um tratamento baseado em diuréticos versus um tratamento baseado em BRA de pacientes com hipertensão estágio I.
As limitações do estudo devem ser reconhecidas. A quebra antecipada na randomização provavelmente não terá impactado os resultados, uma vez que as características demográficas da amostra estudada e a magnitude da redução da PAS foram semelhantes às alcançadas em todo o estudo da amostra. Além disso, o poder do estudo poderia ser subestimado para encontrar diferenças estatisticamente significativas nos parâmetros ecocardiográficos entre os tratamentos randomizados, uma vez que o tamanho da amostra do estudo PREVER-Treatment foi estimado para o seu desfecho primário. Essas limitações potenciais, no entanto, reforçam os achados relatados, que são ainda mais visíveis se considerarmos a carga relativamente baixa da lesão de órgãos causada pela hipertensão e o seguimento de apenas 18 meses.
Em conclusão, na hipertensão estágio I a redução da pressão arterial está associada à melhora dos parâmetros ecocardiográficos de lesão de órgãos-alvo, com um remodelamento favorável do VE obtido com diuréticos ou losartana como estratégia de tratamento inicial.