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Do preconizado à prática: oito anos de desafios para a saúde da criança em serviços de atenção primária no interior de São Paulo, Brasil

Do preconizado à prática: oito anos de desafios para a saúde da criança em serviços de atenção primária no interior de São Paulo, Brasil

Autores:

Patricia Rodrigues Sanine,
Thais Fernanda Tortorelli Zarili,
Luceime Olivia Nunes,
Adriano Dias,
Elen Rose Lodeiro Castanheira

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.34 no.6 Rio de Janeiro 2018 Epub 21-Jun-2018

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00094417

ABSTRACT

This article aims to identify changes in indicators for the organization of children’s health services in primary care in the State of São Paulo, Brazil. An evaluative study was conducted with three series of cross-sectional evaluations with participation by 81 services, involving 32 municipalities (counties) in the central-west region of the state, who answered the Quali AB questionnaire in 2007, 2010, and 2014. The analysis used 74 children’s health indicators and 7 services indicators. Comparison of the indicators evidenced changes in the organization of children’s healthcare, with an improvement in the majority of the indicators in 2010 and maintenance or worsening in 2014, compared to 2007. In conclusion, children’s health policy recommendations have not been fully realized in the organization of the supply of comprehensive care, although relevant issues such as childhood obesity and violence have been addressed by a few services.

Keywords: Child Health; Primary Health Care; Health Evaluation; Health Services; Organization and Administration

RESUMEN

El objetivo del presente artículo es identificar cambios en los indicadores de organización de la atención a la salud infantil en los servicios de atención primaria del estado de São Paulo, Brasil. Se trata de una investigación evaluativa, desarrollada por tres series de evaluaciones transversales con la participación de 81 servicios, involucrando a 32 municipios del centro-oeste paulista, que respondieron al instrumento Quali AB durante los años de 2007, 2010 y 2014. El análisis utilizó 74 indicadores de salud infantil y 7 de caracterización de los servicios. La comparación de los indicadores evidenció cambios en la organización de acciones de salud infantil, con una mejora de la mayoría de los indicadores en 2010 y un mantenimiento, o empeoramiento, en 2014, comparándolo con 2007. Se concluye que los avances preconizados por las políticas de atención a la salud infantil no se han hecho efectivos plenamente en la organización de la oferta de atención integral, aunque algunos temas relevantes como la obesidad infantil y la violencia sean abordados en un pequeño número de servicios de atención primaria.

Palabras-clave: Salud del Niño; Atención Primária de Salud; Avaliación en Salud; Servicios de Salud; Organización y Administración

Introdução

A vulnerabilidade da criança, expressa nos coeficientes de mortalidade e nas taxas de agravos evitáveis, ainda elevados no Brasil, somados à responsabilidade do Estado em garantir o desenvolvimento saudável das novas gerações, acarreta que a saúde da criança se mantenha em destaque nas políticas públicas 1,2,3,4,5.

Com a preocupação em ampliar investimentos para redução da morbimortalidade infantil, o Brasil, no ano de 2002, se uniu às Nações Unidas nos esforços em conquistar “um mundo mais justo para as crianças”, comprometendo-se com medidas para a promoção e proteção de seus direitos. Entre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), destacam-se: educar e cuidar das crianças, protegê-las da violência e da exploração, além de ouvir e assegurar sua participação como cidadãs 6.

Na busca por alcançar esses objetivos, as políticas de saúde enfatizam, a partir de 2004, a necessidade de se intensificarem os incentivos ao aleitamento materno, além da melhor articulação entre os níveis de atenção, e a organização dos serviços em direção à promoção e monitoramento da saúde da criança. Tais propostas se evidenciam em publicações como o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, a Agenda de Compromissos com a Saúde Integral da Criança e a Redução da Mortalidade Infantil e o Manual Técnico de Atenção Qualificada e Humanizada ao Pré-natal e Puerpério1,7,8.

Nessa mesma direção, outros documentos sofreram atualizações e reedições ao longo dos anos, como os documentos de orientações alimentares e o Cartão da Criança, que se transformou na Caderneta de Saúde da Criança em 2005, com reformulações em 2007 e 2009 8,9,10.

Em 2010, o Plano Nacional da Primeira Infância (PNPI) reforça as iniciativas em busca da redução da mortalidade infantil, visando garantir até o ano de 2022 os direitos da criança até 6 anos, propondo ações amplas e articuladas de promoção e respeito aos seus direitos em todos os aspectos: biológico, afetivo, psíquico e social 8.

As políticas públicas intensificaram a valorização da criança como sujeito de direitos, priorizando as ações de promoção, prevenção e melhoria da qualidade da assistência. Em conjunto com outros setores, criam-se mecanismos que avançam em direção à integração da saúde, como uma ampla rede de atenção da qual também faz parte a assistência à gestante e a busca por maior detecção das vulnerabilidades e fatores de riscos associados à saúde da criança 1,3,4,8.

Apesar das mudanças observadas nas recomendações brasileiras e do significativo progresso alcançado, como a redução de 52,6% (1995-2014) da taxa de mortalidade de crianças menores de 5 anos no Estado de São Paulo, Brasil 11, muitas das metas dos ODM não foram alcançados até 2015, originando a nova agenda internacional de ações, representada pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que, com base nos ODM, amplia as propostas de atuação e estipula novas metas até 2030 6.

No esforço de unificar as muitas normatizações e portarias na área técnica da saúde da criança, até então fragmentadas e dispersas, foi instituída a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC) 2 que, unificando todos os pactos, decretos e leis, salienta o objetivo de “promover e proteger a saúde da criança e o aleitamento materno, mediante a atenção e cuidados integrais e integrados da gestação aos 9 (nove) anos de vida, com especial atenção à primeira infância e às populações de maior vulnerabilidade2.

As políticas públicas voltadas para a saúde da criança, desde as últimas décadas do século passado, vêm avançando de um patamar em que se destacava a articulação dos serviços e a prevenção das doenças para o desafio da promoção da saúde e ampliação do acesso a uma assistência qualificada no âmbito da atenção integral à saúde.

O Estado de São Paulo foi um dos pioneiros na implantação de serviços que incorporaram educação e cuidado dos sadios, já na década de 1920. Por diferentes políticas e perspectivas de atenção à saúde, mesmo que de modo descontínuo, mas estruturalmente cumulativo, observou-se no estado uma expansão dos serviços de atenção primária à saúde nos anos 1960, 1970 e 1980, sempre mantendo a criança como um dos principais grupos de atuação 1,12,13.

Tal processo histórico da atenção primária à saúde confere especificidades ao estado, como a baixa cobertura de serviços organizados segundo a Estratégia Saúde da Família (ESF) ao lado de uma extensa e heterogênea rede constituída por serviços de diferentes modelos organizacionais, cuja diversidade influencia as ações dirigidas à saúde da criança, como a existência de serviços de atenção básica com urgência, postos volantes e serviços com e sem especialistas, como o pediatra, ou médico de família 1,14,15.

Diante desse contexto, pode-se esperar que a larga tradição do estado em serviços de atenção primária à saúde, somada à expansão do acesso e aos incentivos políticos reorganizados na PNAISC, tenha incidência direta na qualidade da organização dos serviços em relação à saúde da criança 1,2,16.

Em que pese a permanência de uma grande heterogeneidade no modelo organizacional dos serviços de atenção primária à saúde, associado à inexistência de instrumentos avaliativos que contemplassem esta diversidade até o ano de 2007 14,17, cabe questionar em que medida as diretrizes políticas definidas para a saúde da criança vêm se traduzindo em modos concretos de organização das ações dirigidas a esse grupo.

Como forma de enfrentar essa questão, o presente trabalho propõe avaliar, por meio de um instrumento que contemple esta heterogeneidade organizacional, as mudanças ocorridas em indicadores de organização da atenção à saúde da criança em serviços de atenção primária à saúde do Estado de São Paulo em três diferentes momentos.

Métodos

Pesquisa avaliativa desenvolvida em três avaliações transversais em 81 serviços de atenção primária à saúde localizados em 32 municípios do centro-oeste paulista.

Para avaliar as mudanças da atenção à saúde da criança nos diferentes momentos, foram selecionados os serviços do Estado de São Paulo que participaram, por adesão voluntária, de todas as aplicações do questionário eletrônico Quali AB (Avaliação e Monitoramento de Serviços de Atenção Básica) 14,17.

Optou-se pela utilização desse questionário por se tratar de um instrumento construído por processo iterativo que incluiu consenso de especialistas, teste-piloto e validação de constructo e confiabilidade, dirigido ao conjunto dos serviços de atenção primária à saúde independentemente de seu arranjo organizacional, e aplicado no Estado de São Paulo em três diferentes anos (2007, 2010 e 2014) 14,17.

Do total de 86 serviços que responderam ao Quali AB em suas três aplicações, excluíram-se cinco serviços que afirmaram não atender à criança em pelo menos um dos anos.

A versão original do Quali AB, utilizada no presente trabalho, é formada por 85 questões que definem indicadores compostos com a finalidade de avaliar o conjunto das ações realizadas na atenção primária à saúde. Para analisar as mudanças na organização dos serviços em relação à saúde da criança, selecionou-se um conjunto de variáveis e se construiu um banco de respostas dicotômicas composto por 81 indicadores agrupados segundo seu potencial de caracterizar os serviços (n = 7) e de responder à organização das ações diretamente relacionados à criança (n = 74).

Os 74 indicadores de atenção à saúde da criança foram distribuídos em quatro domínios de análise: “recursos e insumos básicos” (n = 13), “promoção à saúde” (n = 18), “prevenção de agravos à saúde” (n = 30) e “assistência à saúde” (n = 13). Os 30 indicadores de “prevenção de agravos à saúde” foram agrupados em dois subdomínios: “vigilância em saúde” (n = 17) e “atenção à gestação” (n = 13). A relação de indicadores por domínio é discriminada nos resultados.

Os critérios e normas que alimentaram a construção dos domínios e a discussão dos resultados foram norteados pelas diretrizes da atenção primária à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e pelas políticas e publicações oficiais dirigidas à saúde da criança em serviços de atenção primária à saúde 2,3,4,6,8,10,18,19.

A análise estatística dos dados foi realizada no pacote IBM SPSS v. 21.0 (IBM Corp., Armonk, Estados Unidos), com nível de 5% de significância. Utilizaram-se: os testes do quiquadrado e teste Z com correção de Bonferroni para as comparações dos indicadores dentro de cada domínio e das características dos serviços entre os anos de 2007, 2010 e 2014; o teste ANOVA seguido do teste de Tukey para calcular a média e a comparação dos domínios entre os anos, atribuindo um ponto para cada indicador; e o teste de correlação de Pearson para identificar a existência de uma relação linear entre os quatro domínios, ou o apontamento de quais domínios apresentaram maior prática em cada um dos anos avaliados. Para garantir que a diferença no número de indicadores não interferisse no teste de correlação entre os domínios, antes de estimar as médias dos domínios, realizou-se a normalização dos valores de cada um deles.

Resultados

Os serviços de atenção primária em saúde avaliados se concentram em municípios com menos de 100 mil habitantes, sendo apenas um deles com aproximadamente 130 mil e outro com mais de 300 mil, o que espelha a realidade demográfica dessa região 20.

Dos 86 serviços, cinco não atendiam à criança, sendo três em 2010 e dois em 2014.

Entre os 81 serviços que compuseram a casuística final, encontrou-se o predomínio de unidades básicas de saúde (tradicionais) (UBS, 49%), localizadas em área urbano-periférica (54,7%), sem mudanças estatisticamente significativas entre os anos estudados. Entretanto, ressalta-se uma transição das antigas UBS para o tipo Estratégia de Saúde da Família, caracterizada pelo aumento de unidades de saúde da família (USF) e UBS com Programa de Agentes Comunitários de Saúde (UBS/PACS) (Tabela 1).

Tabela 1 Frequências dos sete indicadores de caracterização dos 81 serviços de atenção primária à saúde do interior do Estado de São Paulo, Brasil, segundo o ano de avaliação (2007, 2010, 2014). 

Indicadores n (%) Valor de p *
2007 2010 2014
Tipo de serviço - USF 22 (27,2) 25 (30,9) 26 (32,1) 0,775
Tipo de serviço - UBS tradicional 46 (56,8) 41 (50,6) 32 (39,5) 0,083
Tipo de serviço - UBS com ESF/PACS 9 (11,1) 10 (12,3) 17 (21,0) 0,156
Tipo de serviço - Outro 4 (4,9) 10 (12,3) 6 (7,4) 0,217
Localização - Rural 7 (8,6) 7 (8,6) 7 (8,6) 1,000
Localização - Urbano-central 31 (38,3) 29 (35,8) 29 (35,8) 0,932
Localização - Urbano-periférica 43 (53,1) 45 (55,6) 45 (55,6) 0,936

ESF: Estratégia Saúde da Família; PACS: Programa de Agentes Comunitários de Saúde; UBS: unidade básica de saúde; USF: unidade de saúde da família.

Fonte: Quali AB, 2007; 2010; 2014.

* Referente ao teste qui-quadrado e teste Z com correção de Bonferroni.

Em relação aos indicadores, apresentaram mudanças significativas: seis indicadores pertencentes ao domínio “recursos e insumos básicos”, sete indicadores do domínio “promoção à saúde”, oito indicadores do domínio “prevenção de agravos à saúde” e três indicadores do domínio “assistência à saúde”. As mudanças desses indicadores, nos diferentes anos, são apresentadas separadamente por domínio na Tabela 2.

Tabela 2 Frequências dos 74 indicadores de organização da saúde da criança em 81 serviços de atenção primária à saúde do interior do Estado de São Paulo, Brasil, segundo o ano de avaliação (2007, 2010, 2014). 

Indicadores Frequências (%) Valor de p *
2007 2010 2014
Recursos e insumos básicos (13 indicadores)
Presença de clínico geral ou médico de família fixo na equipe 78 (96,3) a 62 (76,5) b 66 (81,5) b 0,001
Presença de pediatra fixo na equipe 58 (71,6) a 37 (45,7) b 30 (37,0) b < 0,001
Presença de médico especialista fixo na equipe 51 (63,0) a 39 (48,1) a,b 27 (33,3) b 0,001
Disponibilidade de ACS 33 (40,7) 37 (45,7) 47 (58,0) 0,099
Existência de gerente 80 (98,8) 80 (98,8) 80 (98,8) 0,608
Disponibilidade de equipe de saúde bucal 75 (92,6) 76 (93,8) 73 (90,1) 0,671
Disponibilidade de vacinas 56 (69,1) 65 (80,2) 63 (77,8) 0,434
Disponibilidade de inalação 69 (85,2) 75 (92,6) 71 (87,7) 0,545
Disponibilidade de aplicação de tratamento intramuscular 43 (53,1) a 65 (80,2) b 70 (86,4) b < 0,001
Coleta na unidade de material para exames clínico-laboratoriais 55 (67,9) 48 (59,3) 49 (60,5) 0,334
Dispensação de medicamentos 77 (95,0) a 72 (88,9) a 57 (70,4) b < 0,001
Disponibilidade dos antibióticos mais utilizados 71 (87,7) 74 (91,4) 76 (93,8) 0,657
Disponibilidade de todos os medicamentos essenciais previstos na atenção primária à saúde 61 (75,3) a 54 (66,7) a,b 44 (54,3) b 0,009
Promoção à saúde da criança (18 indicadores)
Ações educativas em planejamento familiar na unidade 50 (61,7) a 51 (63,0) a 27 (33,3) b < 0,001
Ações educativas em aleitamento materno na unidade 54 (66,7) a,b 60 (74,1) b 44 (54,3) a 0,027
Ações educativas em atividades físicas na unidade 25 (31,3) 38 (46,9) 29 (35,8) 0,108
Ações educativas sobre alimentação (obesidade, desnutrição) na unidade 40 (49,4) 43 (53,1) 35 (43,2) 0,437
Ações educativas sobre situações de violência na unidade 4 (5,0) a 15 (18,5) b 16 (19,8) b 0,013
Ações educativas em saúde e meio ambiente na unidade 22 (27,5) 22 (27,2) 15 (18,5) 0,321
Ações educativas sobre posse responsável de cães e gatos na unidade 15 (18,8) 14 (17,3) 8 (9,9) 0,244
Ações educativas em planejamento familiar na comunidade 44 (54,3) a 46 (56,8) a 25 (30,9) b 0,001
Ações educativas em aleitamento materno na comunidade 54 (66,7) a 56 (69,1) a 40 (49,4) b 0,016
Ações educativas sobre alimentação (obesidade, desnutrição) na comunidade 39 (48,1) 38 (46,9) 34 (42,0) 0,671
Ações educativas em atividade física na comunidade 32 (40,0) 40 (49,4) 33 (40,7) 0,409
Ações educativas em saúde e meio ambiente na comunidade 29 (36,3) 23 (28,4) 19 (23,5) 0,199
Ações educativas sobre situações de violência na comunidade 3 (3,8) a 14 (17,3) b 15 (18,5) b 0,009
Ações educativas sobre posse responsável de cães e gatos na comunidade 24 (30,0) a 15 (18,5) a 6 (7,4) b 0,001
Ações educativas em saúde bucal na comunidade 61 (75,0) 62 (76,5) 57 (70,4) 0,648
Ações educativas em saúde bucal na unidade 46 (56,8) 45 (55,6) 54 (66,7) 0,287
Ações educativas em saúde bucal em escolas 45 (55,6) 49 (60,5) 49 (60,5) 0,762
Ações educativas em saúde bucal em creches 38 (46,9) 34 (42,0) 34 (42,0) 0,765
Prevenção de agravos à saúde da criança (30 indicadores)
Vigilância em saúde (17 indicadores)
Convocação de faltosos com resultado(s) de exame(s) alterado(s) 63 (77,8) 67 (82,7) 59 (72,8) 0,319
Convocação de recém-nascidos de risco faltosos 47 (58,0) 43 (53,1) 47 (58,0) 0,765
Convocação de crianças até dois anos ou em seguimento na puericultura faltosas 29 (35,8) 31 (38,3) 34 (42,0) 0,719
Convocação de crianças de risco (desnutrição e outros) faltosas 44 (54,3) 38 (46,9) 37 (45,7) 0,493
Convocação de vacinação faltosa 65 (80,2) 72 (88,9) 67 (82,7) 0,304
Cadastramento das famílias da área de abrangência pelo ACS 33 (40,7) 35 (43,2) 46 (56,8) 0,109
Visita domiciliar pelo ACS 31 (38,3) 37 (45,7) 47 (58,0) 0,053
Captação de crianças menores de um ano pelo ACS 27 (33,3) 33 (40,7) 37 (45,7) 0,331
Busca ativa para vacinação pelo ACS 27 (33,3) 35 (43,2) 41 (50,6) 0,109
Agendamento programado do primeiro atendimento ao recém-nascido 32 (39,5) 31 (38,3) 38 (46,9) 0,483
Agendamento do primeiro atendimento ao recém nascido por demanda espontânea da mãe 60 (74,1) 53 (65,4) 49 (60,5) 0,179
Primeiro atendimento ao recém nascido realizado por visita domiciliar, sem agendamento prévio 14 (17,3) 13 (16,0) 14 (17,3) 0,971
Ausência de casos de sífilis congênita 36 (44,4) 45 (55,6) 32 (39,5) 0,111
Não sabe informar a existência de casos de sífilis congênita 15 (18,5) 15 (18,5) 7 (8,6) 0,130
Vacinação em instituição para criança 55 (67,9) a 68 (84,0) b 68 (84,0) b 0,016
Avaliação de acuidade visual em instituições para criança 9 (11,1) a 15 (18,5) a 52 (64,2) b < 0,001
Coleta na unidade de material para o teste do pezinho 46 (56,8) 48 (59,3) 50 (61,7) 0,898
Atenção à gestação (13 indicadores)
Realização de teste de gravidez na urina na unidade 9 (11,4) a 44 (54,3) b 66 (81,5) c < 0,001
Captação de gestantes para inscrição no pré-natal pelo ACS 28 (34,5) 35 (43,2) 39 (48,1) 0,261
Convocação de gestantes faltosas 58 (71,6) 67 (82,7) 60 (74,1) 0,219
Solicita sorologia para sífilis 1 vez durante o pré-natal 14 (17,5) 12 (14,8) 15 (18,5) 0,810
Solicita sorologia para sífilis 2 vezes durante o pré-natal 55 (67,9) 55 (67,9) 43 (53,1) 0,067
Solicitação para as gestantes do exame de tipagem sanguínea 73 (90,1) a 68 (84,0) a,b 57 (70,4) b 0,002
Solicitação para as gestantes de sorologia para HIV 77 (95,1) a 69 (85,2) a,b 58 (71,6) b < 0,001
Solicitação para as gestantes de sorologia para rubéola 33 (40,7) 33 (40,7) 32 (39,5) 0,983
Solicitação para as gestantes de sorologia para toxoplasmose 70 (86,4) a 69 (85,2) a,b 57 (70,4) b 0,016
Solicitação para as gestantes de sorologia para hepatite B 62 (76,5) 69 (85,2) 58 (71,6) 0,109
Oferta na unidade de tratamento da sífilis para a gestante e seu parceiro 33 (40,7) 37 (45,7) 32 (39,5) 0,724
Encaminha gestante e parceiro para tratamento da sífilis em outro serviço ou trata apenas a gestante na unidade 39 (48,1) a 31 (38,3) a,b 26 (32,1) b 0,044
Ações educativas para gestante 51 (63,0) a 55 (67,9) a 33 (40,7) b 0,001
Assistência individual à saúde da criança (13 indicadores)
Assistência odontológica para bebês 20 (25,0) 29 (35,8) 30 (37,0) 0,201
Assistência odontológica para crianças com até 6 anos 31 (38,8) 44 (54,3) 36 (44,4) 0,133
Assistência odontológica para crianças em idade escolar 41 (50,6) 56 (69,1) 48 (59,3) 0,068
Assistência odontológica para queixas agudas 58 (71,6) 61 (75,3) 50 (61,7) 0,139
Assistência odontológica conforme demanda do paciente 67 (82,7) 65 (80,2) 63 (77,8) 0,629
Atendimento sobre aleitamento materno 69 (85,2) 64 (79,0) 73 (90,1) 0,143
Atendimento sobre alimentação (desnutrição e obesidade) 63 (77,8) 59 (72,9) 65 (80,2) 0,522
Diagnóstico e acompanhamento das infecções respiratórias na infância 36 (44,4) 41 (50,6) 47 (58,0) 0,223
Identificação e acompanhamento de situações de violência 5 (6,2) a 19 (23,5) b 30 (37,0) b < 0,001
Orientações e encaminhamento para inscrição em programas sociais 60 (74,1) 65 (80,2) 70 (86,4) 0,143
Atendimento individual só por consulta médica 81 (100,0) a 79 (97,5) a 17 (21,0) b < 0,001
Atendimento individual por consulta de enfermagem e/ou odontológica 57 (70,4) a 67 (82,7) a 33 (40,7) b < 0,001
Atendimento em grupo por consulta médica, de enfermagem e/ou odontológica 14 (17,3) 13 (16,0) 7 (8,6) 0,230

ACS: agente comunitário de saúde.

Fonte: Quali AB, 2007; 2010; 2014.

* Referente ao teste qui-quadrado e teste Z com correção de Bonferroni. Valores seguidos da mesma letra não diferem estatisticamente entre si;

** Considerado a variável resposta invertida.

A evolução das médias dos domínios evidenciou, no ano de 2014, pioras significativas no domínio “recursos e insumos básicos” em relação a 2007, e “promoção à saúde” e “assistência à saúde” em relação ao ano de 2010 (Tabela 3).

Tabela 3 Médias dos indicadores comparadas por ano de aplicação (2007-2010, 2007-2014, 2010-2014), segundo os quatro domínios de organização da saúde da criança em 81 serviços de atenção primária à saúde do interior do Estado de São Paulo, Brasil. 

Domínios Médias Valor de p *
2007 2010 2014
Recursos e insumos básicos 10,23 a 9,76 ab 9,29 b 0,003
Promoção à saúde 7,67 ab 8,19 a 6,58 b 0,044
Prevenção de agravos à saúde 16,01 15,88 15,70 -
Assistência à saúde 8,14 ab 8,76 a 7,64 b 0,008

Fonte: Quali AB, 2007; 2010; 2014.

* ANOVA. Letras diferentes representam valores estatisticamente distintos (Teste post-hoc de Tukey).

Comparadas as médias normalizadas referentes aos domínios dentro do mesmo ano, constatou-se que os serviços apresentaram melhores médias no domínio “recursos e insumos básicos” em todos os anos, seguido do “assistência à saúde”. O domínio “promoção à saúde” foi o que apresentou médias mais baixas em todos os anos (Tabela 4).

Tabela 4 Médias dos quatro domínios de organização da saúde da criança em 81 serviços de atenção primária à saúde do interior do Estado de São Paulo, Brasil, e sua correlação, segundo o ano de avaliação (2007, 2010 e 2014). 

Ano/Domínios (médias) Correlação Valor de p *
2007
Recurso (5711,75) * promoção (3093,025) 0,137 0,255
Recurso (5711,75) * prevenção (3747,20) 0,086 0,493
Recurso (5711,75) * assistência (4542,69) 0,451 < 0,001
Promoção (3093,025) * prevenção (3747,20) 0,542 < 0,001
Promoção (3093,025) * assistência (4542,69) 0,479 < 0,001
Prevenção (3747,20) * assistência (4542,69) 0,328 0,005
2010
Recurso (5400,88) * promoção (3303,60) 0,67 0,555
Recurso (5400,88) * prevenção (3718) 0,261 0,019
Recurso (5400,88) * assistência (4891,11) 0,099 0,381
Promoção (3303,60) * prevenção (3718) 0,500 < 0,001
Promoção (3303,60) * assistência (4891,11) 0,400 < 0,001
Prevenção (3718) * assistência (4891,11) 0,385 < 0,001
2014
Recurso (5187,33) * prevenção (3674,66) 0,374 0,001
Recurso (5187,33) * assistência (4264,22) 0,237 0,033
Promoção (2651,83) * prevenção (3674,66) 0,392 < 0,001
Promoção (2651,83) * assistência (4264,22) 0,455 < 0,001
Prevenção (3674,66) * assistência (4264,22) 0,480 < 0,001

Fonte: Quali AB, 2007; 2010; 2014.

* Teste de correlação de Pearson.

Evidencia-se, em todos os anos, correlação do domínio “promoção à saúde” com “prevenção de agravos à saúde” e “assistência à saúde”; e “prevenção de agravos à saúde” com “assistência à saúde”. Em 2014, o domínio “recursos e insumos básicos” apresentou correlação com todos os outros. As demais correlações entre os domínios são apresentadas na Tabela 4.

Discussão

Os resultados apresentados apontam mudanças na organização das práticas voltadas à saúde da criança nos serviços de atenção primária à saúde dos municípios estudados, especialmente em relação à oscilação na oferta de ações de atenção à saúde da criança, o que fica negativamente evidenciado pela exclusão de serviços que deixaram de atender à criança entre os anos de 2007 e 2014.

Essa oscilação pode estar ligada a diferentes fatores, como a dificuldade de fixação de médicos em pequenos municípios 21 e à centralização do atendimento à criança em uma única unidade 22, embora as políticas preconizem o acompanhamento das crianças como parte das ações de todos os serviços de atenção primária à saúde 1,2.

A migração das UBS para serviços do tipo USF e UBS/PACS é confirmada por outros estudos que apontam taxas próximas às encontradas 14,16,20. Tais mudanças podem ser justificadas pelos incentivos de expansão e qualificação dos serviços do tipo USF, ou UBS equivalentes (com PACS), sobretudo em regiões com piores resultados de saúde e maiores desigualdades socioeconômicas, como no caso da maioria dos municípios de pequeno porte 14,17,23,24. Vale destacar que, apesar do movimento de mudança evidenciado, ainda é baixa a cobertura de serviços organizados segundo tal modelo, tanto na região apresentada quanto no estado como um todo, que mantém uma das menores coberturas do país 14,16,20.

Estudo realizado durante os anos 2000 a 2009, concluiu “que ocorreu uma consistente melhora tanto na organização e operação da atenção primária à saúde no estado de São Paulo quanto no perfil de saúde da população16 (p. 924). Pesquisas ecológicas evidenciam melhorias nos níveis de saúde infantil, incluindo a redução da mortalidade infantil, mas apontam ao mesmo tempo uma piora dos serviços, destacando a existência de “problemas da estrutura física, da força de trabalho e dos processos organizacionais24 (p. 850).

Confirmando esses achados, os resultados entre os anos de 2007 e 2010 caminham em direção à uma melhora organizacional dos serviços referentes às ações voltadas para a saúde da criança que, no entanto, em 2014 sofrem estagnação ou retrocesso em várias práticas em relação aos padrões preconizados.

As médias normalizadas sugerem a existência de serviços que valorizam mais as ações curativas, de assistência individual, em detrimento das práticas de promoção à saúde e prevenção de agravos.

O número de mortes e internações infantis como reflexo da vulnerabilidade da criança associada à falta de ações de promoção e prevenção, o que ressalta a importância de se investir na qualificação profissional para que, por meio de ações como vacinação, estímulo ao aleitamento materno e alimentação saudável, os serviços de saúde sejam capazes de transformar as políticas públicas em práticas capazes de reduzir os fatores de risco, e potencializar os protetores, assegurando a atenção integral 7,25.

Em outras palavras, os serviços precisam estar organizados para realizar o acompanhamento rotineiro desde a gestação, e para identificar e abordar as vulnerabilidades específicas de cada fase do crescimento e desenvolvimento infantil, não só dentro da unidade de saúde, mas principalmente em ambientes comunitários, como o espaço escolar.

Domínio “recursos e insumos básicos”

Considerando que o processo de cuidado em saúde sofre interferência dos condicionantes de estrutura 26, esse domínio de análise permite avaliar, por intermédio de indicadores das condições estruturais básicas dos serviços de atenção primária à saúde, o quanto estão preparados para ofertar ações voltadas à saúde da criança. Entre outros indicadores, aponta aspectos como: presença de uma infraestrutura adequada, disponibilidade de materiais e equipamentos, e número de profissionais fixos na equipe.

Estudo realizado no Paraná identificou falhas de acesso na atenção à saúde da criança relacionadas, por exemplo, aos horários de disponibilização das vacinas e ao número insuficiente de vagas para consulta, além da alta demanda espontânea e escassez de profissionais para compor a equipe 27.

Em 2014, quando comparado a 2007, houve piora em relação à presença de profissionais fixos na equipe (clínico geral ou médico de família, pediatra e outras especialidades). A carência de médicos, segundo Campos et al. 21, foi o problema mais relatado pelas famílias brasileiras em uma pesquisa domiciliar realizada no ano de 2011, indicando um importante aspecto a ser superado nos serviços de atenção primária à saúde não só na região estudada, como em todo o país.

Verificou-se, também, diminuição dos serviços que dispensam medicamentos, além da redução na disponibilidade de medicamentos inclusos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) como essenciais na atenção primária à saúde. A menor oferta de medicamentos, porém foi acompanhada de uma maior frequência na “disponibilidade de aplicação de tratamento intramuscular” e de “disponibilidade dos antibióticos mais utilizados”, representando uma ampliação das condições necessárias para disponibilizar tratamentos por essa via, como no caso da sífilis congênita.

A ampla cobertura vacinal se apresenta como uma importante estratégia na prevenção de agravos à saúde 3,7. O indicador “disponibilidade de vacinas” não sofreu alterações significativas durante os anos. Contudo, assim como identificado por outros autores, apesar da importância da sua oferta no serviço em que a criança é acompanhada - como garantia de sua realização imediata - desperta a atenção a existência de serviços que não ofertam essa ação 16,28.

Apesar da grande redução nos coeficientes de mortalidade infantil por infecção respiratória aguda (IRA), ela se mantém como uma das doenças de maior prevalência na infância, representando 15% das causas de mortes infantis no Brasil 5,7,25. O acesso à inalação representa um dos recursos necessários para uma adequada abordagem de episódios agudos de IRA. No entanto, identificaram-se serviços que não disponibilizavam inalação, mesmo sendo considerado um item essencial na atenção primária à saúde e previsto para o manejo qualificado de doenças 2.

Preocupa a piora desse domínio entre os anos de 2007 e 2014, particularmente diante dos achados de Turci et al. 29, que apontam a importância de investimentos financeiros com a comprovação da associação entre o bom desempenho dos serviços e a disponibilidade de insumos e equipamentos. Essa associação também pode ser verificada pela presença de correlação do domínio “recursos e insumos básicos” com todos os demais domínios analisados no ano de 2014, e com o domínio “prevenção à saúde” no ano de 2010 e com “assistência à saúde” em 2007.

Tais resultados, coerentes com os pressupostos de Donabedian 26, assinalam que limitações da qualidade organizacional contidas no domínio “recursos e insumos básicos” exercem influência negativa sobre indicadores de processo presentes em domínios como o da “prevenção de agravos à saúde”, no qual a falta ocasional de antibióticos e a não realização de tratamento intramuscular se correlacionam com a não realização de tratamento da sífilis, que tem como primeira escolha de tratamento a aplicação intramuscular de penicilina benzatina 22.

Domínio “promoção à saúde”

A inserção dos serviços de atenção primária à saúde no mesmo contexto social de seus usuários facilita a identificação de fatores de risco, além da construção de vínculo com a população, favorecendo o aumento da confiança da mãe em relação ao serviço e sua adesão nas atividades propostas 18,27,28,30,31.

Contemplado por um conjunto de indicadores de caráter educativo, esse domínio permite averiguar o quanto os serviços se encontram organizados para acolher e compartilhar experiências com familiares e instituições que atendem à criança sobre temas que promovam a saúde, ou seja, o quanto os serviços ofertam ações que proporcionem e ampliem a qualidade de vida, dentro e fora da própria unidade de saúde.

Comparando as médias dos domínios por ano, evidencia-se uma piora no ano de 2014 em relação ao ano de 2010, destacando aumento das frequências de dois indicadores, além da manutenção ou redução dos demais indicadores que se referem às atividades desenvolvidas dentro da unidade de saúde ou junto à comunidade. Apesar de esse domínio possuir as menores médias, é interessante notar que, em todos os anos, ele apresentou correlação com os demais domínios.

Em relação às mudanças nas frequências dos indicadores, chama a atenção que, desde 2010, os únicos que apresentaram aumento significativo no número de serviços que relataram abordar o tema tanto na unidade, quanto na comunidade, foram os dois indicadores de violência.

Um estudo de revisão integrativa sobre o tema violência na atenção primária à saúde, entre os anos de 2009 e 2013, evidenciou o início das publicações a partir do ano de 2010 30. Os resultados podem sugerir uma mudança induzida pelas iniciativas por parte do Ministério da Saúde que vem intensificando os investimentos sobre o tema, como na publicação do material Linha de Cuidado Para a Atenção Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes e Suas Famílias em Situação de Violências19 e na reiteração da importância de tal abordagem em todos os documentos, como no eixo VI da PNAISC 2.

Desperta o interesse a redução, em 2014, de indicadores como os de atividades de educação em saúde sobre o tema “planejamento familiar”, tendo em vista ser um conteúdo tratado por muitos anos como prioritário nas políticas públicas, e cada vez mais necessários na atualidade, como no caso das novas constituições familiares 2,3,9,10,15,18.

Uma das ações mais tradicionalmente difundidas, integrada em todos os documentos direcionados à saúde da criança, o estímulo ao aleitamento materno é apontado como um dos eixos prioritários na PNAISC 2,25,32. Estudos indicam melhora na prevalência do aleitamento materno exclusivo tanto no Brasil, quanto no interior do Estado de São Paulo, especialmente após adesão dos serviços à política de incentivo - Rede Amamenta Brasil 3,5,7. Todavia, os indicadores sobre o tema em ações desenvolvidas nas unidades e fora delas apontou redução, em 2014, em relação ao número de serviços que realizavam essa abordagem nos anos anteriores, sugerindo que os serviços avaliados não foram influenciados pela Rede Amamenta Brasil, ou pelas campanhas de incentivo ao aleitamento materno promovidas pelo Ministério da Saúde.

Domínio “prevenção de agravos à saúde”

Pina et al. 25 (p. 517) destacam a importância de se aproveitar todas as oportunidades para “promover saúde, prevenir doenças e identificar precocemente sinais e sintomas das doenças mais prevalentes na infância”. Dessa forma, a garantia da precocidade na identificação de condições de risco, e o compromisso e responsabilização com as crianças em seguimento, podem ser encontrados nas atividades programadas como rotina nos serviços 31.

Apresentando indicadores que permitem mensurar o poder dos serviços em relação às ações de vigilância em saúde, como a realização de convocação de faltosos e captação ou busca ativa de grupos mais vulneráveis, esse domínio é capaz de caracterizar o quanto os serviços estão organizados para diagnosticar precocemente as alterações da criança ou da gestante, além do reconhecimento das vulnerabilidades e das demandas não identificadas dentro do serviço, assim como sua capacidade de planejamento e acompanhamento dos usuários.

Os resultados das médias desse domínio, quando comparado nos três anos, não apontou mudança, mas, quando comparado com outros domínios, observou-se que as ações de prevenção foram uma das que menos os serviços executaram.

Analisando-se o conjunto de indicadores com mudanças entre os anos avaliados, cumpre notar o aumento das ações dirigidas diretamente à criança, como no caso da realização de avaliação da acuidade visual em instituições, que apresentou aumento na frequência em 2014.

A imunização em instituições para crianças expressou crescimento no ano de 2010, mantendo-se sem alteração em 2014. Ainda em relação aos indicadores da vigilância da vacinação, coerentemente, notou-se que os resultados foram semelhantes ao número de serviços que referiram disponibilizar tal ação, sugerindo que os serviços que não aplicam vacina também não realizam busca ativa ou convocações de faltosos.

Todavia, apesar da existência de serviços que não disponibilizam vacinas na unidade e/ou não realizaram vacinação em instituições para criança, as taxas vacinais apresentam uma cobertura praticamente universal em todo o Estado de São Paulo, assim como na região estudada 20, comprovando que as demais estratégias, como, por exemplo, as campanhas anuais de imunização ou a abordagem do tema durante as consultas individuais, assim como sua centralização em unidades com mais recursos estão suprindo a necessidade.

Pode-se supor que esse fato ocorra por ser essa uma das políticas mais antigas relacionada à saúde da criança 1,8 e que seu longo período de divulgação favoreceu sua incorporação pelos serviços e seu reconhecimento legitimado pelas mães.

O primeiro atendimento ao recém-nascido deve ser garantido o mais precocemente possível - logo na primeira semana de vida da criança. Apesar de não apresentar significância estatística, preocupa a permanência de serviços que garantem o primeiro atendimento apenas por demanda espontânea - quando a mãe procura os serviços de saúde, aumentando o risco de essa consulta ocorrer tardiamente e, consequentemente, adiar a identificação de possíveis condições de risco 2,3.

Já para a maioria dos indicadores que tem como objeto de intervenção a gestante, chama a atenção o aumento gradativo dos serviços que se organizam para identificar precocemente o início da gravidez, como na realização de testes de urina na própria unidade. Porém, os demais indicadores confirmam estudos que apontam a baixa qualidade do acompanhamento pré-natal no Estado de São Paulo 16,22, evidenciados pela redução de serviços que acompanham a gestação e o aumento do não cumprimento dos protocolos de solicitação de exames para gestantes, como nos de tipagem sanguínea e sorologias para agravos considerados importantes na prevenção de óbitos e morbidades infantis, como para a toxoplasmose e HIV.

Tais resultados condizem com o estudo de Prezotto et al. 32 que descrevem o aumento das internações de crianças menores de um ano como reflexo, na maioria das vezes, de pré-natal de má qualidade.

No caso específico da sífilis congênita, que se apresenta como um dos principais desfechos adversos da atenção primária à saúde e que vem se manifestando como um dos mais importantes desafios a serem superados pelos serviços de saúde de todo país, incluindo no Estado de São Paulo 5,22,33, evidencia-se o aumento de serviços que relataram a existência de casos entre gestantes acompanhadas nos últimos três anos pelo serviço, alcançando uma proporção de aproximadamente 60% dos serviços avaliados no ano de 2014 (Tabela 2).

O aumento sugere, como justificativa, algumas limitações encontradas, como o baixo número de serviços que solicitam exames para detecção da sífilis na gestação e o aumento daqueles que não realizam tratamento da sífilis para gestante e parceiro na própria unidade de saúde, retratando um grande afastamento das recomendações preconizadas pelas políticas públicas, especialmente da PNAISC que especifica em seu Art. 7º “a prevenção da transmissão vertical do HIV e da sífilis”, e em vários outros eixos prioriza a gestação e as doenças prevalentes, em especial aquelas responsáveis por óbitos 2,3,8.

Falhas no tratamento de gestantes com sífilis também foram detectadas em maternidades públicas do Distrito Federal, no qual apenas 41,8% das gestantes estudadas haviam recebido tratamento adequado 33.

Domínio “assistência à saúde”

Composto por indicadores que refletem a organização de práticas como a assistência odontológica ofertada para o público infantil e a diversidade das orientações abordadas em consultas, esse domínio se apresenta capaz de avaliar o quanto os serviços se encontram organizados para promover o acompanhamento da saúde da criança por meio de intervenções e orientações para a manutenção da saúde e/ou melhora dos agravos.

A comparação das médias obtidas nesse domínio durante os anos de análise retratou mudanças significativas expressas pela diminuição da média entre os anos de 2010 e 2014. Tal resultado seria esperado com o aumento na oferta de ações referentes à promoção e prevenção, sugerindo que as ações reduziriam parte das demandas relacionadas à assistência individual, no entanto tal fato não pode ser comprovado, uma vez que esse domínio permanece com as maiores médias normalizadas em todos os anos, indicando um maior comprometimento com as ações curativas direcionadas à saúde da criança, em relação aos outros domínios, reproduzindo a valorização do modelo curativo herdado de épocas passadas 1,7.

Para além dessa priorização das ações curativas, por parte da população e do próprio serviço 21, chama a atenção, nesse resultado, a significativa redução do número de serviços que realizam tanto consulta somente por médico, quanto com a equipe.

A vulnerabilidade da região, expressa no Índice Paulista da Primeira Infância (IPPI) que mostra uma alta concentração da população infantil (41,7%) no grupo considerado “médio baixo” em relação ao acesso aos serviços de saúde e educação 34, agrava-se com a constatação da falta de ações que abordem a integralidade do cuidado e a articulação com outros setores, conforme previsto nas políticas 2,3,9.

Essas limitações são exemplificadas pelos serviços que não ofertam rotineiramente assistência odontológica (que apesar das variações dependendo da faixa etária encontram-se em torno de 53,9%) e a abordagem do aleitamento materno nas consultas (15,2%), conforme dados da Tabela 2.

O caráter resolutivo da abordagem às IRA, cuja internação e agravos podem ser evitados na atenção primária à saúde, estabelece seu atendimento como um importante indicador de qualidade dos serviços 25,32. Tendo em vista a relevância das IRA para a saúde da criança 5,7, assim como as tradicionais recomendações sobre como os serviços devem atender a essa demanda 8, preocupa constatar que metade dos serviços não realiza seu diagnóstico e acompanhamento em consultas de rotinas.

Já em relação às situações de violência, apesar de ainda baixo, a casuística expressou, a partir de 2010, aumento dos serviços que abordam regularmente o tema em suas atividades programadas. Semelhantemente, estudos revelam a preocupação e comprometimento dos profissionais de saúde diante do assunto 30, sugerindo um reflexo da priorização do tema por parte das políticas públicas - evidenciada pela intensificação das publicações governamentais, a partir de 2010 2,3,8,19.

Araújo et al. 7 destacam que a saúde da criança se encontra em um processo de construção caracterizado pelo movimento de mudança em busca do rompimento com o antigo modelo - centrado no atendimento às doenças agudas e às demandas espontâneas.

O programa São Paulo pela Primeiríssima Infância (SPPI) exemplifica esse movimento, e reconhece as limitações dos serviços. Mediante reestruturações nos setores da saúde, busca educação e desenvolvimento social, além de superar as falhas encontradas desde a atenção à gestação até a assistência à criança. Cabe enfatizar que tal proposta de adesão prevê sua implantação para alguns dos municípios abordados no presente estudo 34.

Considerações finais

A separação dos indicadores em grandes domínios de análise possibilitou a exploração das séries transversais como mecanismo de avaliação e monitoramento da organização dos serviços, que, pela sua comparação entre os anos, evidenciou importantes mudanças nos indicadores de saúde da criança nos serviços de atenção primária à saúde.

Em que pesem algumas exceções, o fato de os municípios pertencentes à região de saúde estudada apresentarem semelhanças em relação aos indicadores de saúde, porte populacional e condições socioeconômicas, além de resultados condizentes com os abordados em outros estudos, permite, apesar da sua pequena representatividade em relação ao universo de municípios e, consequentemente, de serviços de atenção primária à saúde, que seus resultados se revistam de importante relevância.

Similar a outros estudos, a casuística apresentada identificou melhora em grande parte dos indicadores no ano de 2010, e, manutenção ou piora em relação ao ano de 2014, demonstrando que, mesmo diante de vários documentos que orientam a atenção à saúde da criança, o modo como sua oferta vem sendo praticada nos serviços de atenção primária à saúde da região estudada, muitas vezes, ainda não correspondem ao modelo preconizado pelas políticas públicas, particularmente quando se pensa na atenção integral que deveria articular e integrar as ações de promoção, prevenção e assistência, sobressaindo a necessidade de mais esforços em relação à integralidade da saúde da criança.

A manutenção dos indicadores entre os anos de 2010 e 2014 pode ser compreendida como um intervalo para a organização dos serviços em direção ao preconizado nas políticas. Todavia, esse fator não justifica as reduções nas práticas de algumas ações há tempo reconhecidas como essenciais na atenção à saúde da criança, remetendo à ideia de que para além da diferença natural de tempo entre a assimilação e a legitimação dessas práticas há a influência de outros fatores, como o próprio contexto político-organizacional, uma vez que no ano de 2012 ocorreram mudanças na administração de grande parte desses municípios, sugerindo interferências políticas na gestão municipal de saúde e, possivelmente, na organização dos serviços.

Deve-se reconhecer os limites de uma avaliação de adesão voluntária, sem incentivo financeiro ou governamental, e com uso de um instrumento estruturado de autorresposta, como o número de serviços participantes, a “autosseleção” daqueles mais comprometidos, a obtenção de respostas em direção ao “socialmente desejável”, ou a ocorrência de variações nas respostas em função do grau de exigência ou de conhecimento das políticas por parte dos respondentes.

Ainda assim, os resultados permitem identificar fragilidades organizacionais que podem ser superadas e que representam mudanças que qualificam a atenção realizada pelos serviços estudados. Reforçam a importância da manutenção periódica de avaliações dos serviços de atenção primária à saúde, que, mesmo quando realizadas com os limites apontados, atuam como mecanismo de identificação crítica da realidade local e contribuem com a qualidade dos serviços, orientando-os em como transformar políticas públicas em práticas diárias, além de favorecer a realização de estudos que apontem a influência dos novos documentos, como no caso da PNAISC e do SPPI, em relação à construção de mudanças para a melhoria da qualidade na atenção à saúde da criança.

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