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Do psíquico ao somático: notas sobre a reconfiguração do self contemporâneo

Do psíquico ao somático: notas sobre a reconfiguração do self contemporâneo

Autores:

Jane Russo

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.24 supl.1 Rio de Janeiro 2017

http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702017000400011

Oatual sucesso da visão biológica ou cerebral dos transtornos mentais (e, mesmo, do ser humano) coloca questões importantes para o estudo da produção e da difusão do que estamos chamando aqui de “culturas psi”. Estarão os neurotransmissores substituindo os desejos recalcados? E estaria o Prozac ocupando o lugar do divã?

Essas perguntas me levam à passagem, ocorrida entre os últimos vinte ou trinta anos do século XX e o início deste século, de uma concepção psicológica do sujeito para uma concepção somática.1

Para abordar essa passagem é necessário compreendermos como, em determinados países do chamado denominado “mundo ocidental”, constituiu-se o que estamos denominando “cultura psi”. Inicio minha discussão examinando o papel da psicanálise na produção e difusão de tal cultura, buscando compreender o sucesso da psicanálise como Weltanschauung no século passado, a partir da proposta de Luiz Fernando Dias Duarte acerca da “tensão inarredável” entre romantismo e iluminismo como marca do universo de valores ocidental.

À guisa de conclusão, discuto como o “self somático” contemporâneo pode ser compreendido como parte da reconfiguração de tal tensão.

A difusão da psicanálise: ascensão e queda de uma cultura psicanalítica

De fato, no Brasil, como em outros países do chamado “mundo ocidental”, uma cultura psi se desenvolveu basicamente em torno da difusão da psicanálise.

Como é de conhecimento geral, assistimos no decorrer do século XX a uma intensa disseminação da psicanálise, em especial nos países mais desenvolvidos da Europa e da América do Norte, mas também em países menos desenvolvidos da América do Sul. Esse fenômeno até hoje é um desafio para os estudiosos dos valores contemporâneos. Apesar do que o próprio Freud escreveu acerca das “resistências” do establishment científico à nova doutrina, a velocidade com que a psicanálise se propagou entre europeus e americanos foi impressionante.

Além de grande sucesso mundano, tendo como seus maiores exemplos os EUA e a França (com características diferentes e em momentos diferentes) – e, na América Latina, o Brasil e a Argentina –,2 a psicanálise penetrou nas diversas profissões de cuidado, sobretudo na psiquiatria e na psicologia.

O processo de difusão é, como sabemos, uma via de mão dupla. A psicanálise ofereceu certa cosmologia que penetrou com grande sucesso o meio social em que se implantava, o que reverberou de volta, produzindo um expressivo número de clientes para os divãs dos psicanalistas. Mas também acabou por esgarçar e alargar a prática psicanalítica para além do divã. A pedagogia popular que alimenta as colunas dos jornais e revistas com aconselhamentos os mais diversos (sobre a vida sexual e amorosa, a vida conjugal, a educação das crianças etc.) é parte desse alargamento da prática.3 Mas aí também se incluem assistentes sociais que assessoram a Justiça, psiquiatras que fundam comunidades terapêuticas, psicólogos que trabalham em escolas, entre outros.

A forte hegemonia da psicanálise, tanto como Weltanschauung moderna quanto como núcleo de sustentação da psicologia clínica, da psiquiatria e de outras profissões de cuidado, vai conhecer sérios revezes nas últimas décadas do século XX, a partir das transformações comportamentais e culturais que ganharam espaço no pós-guerra.

Atingindo comportamentos, crenças e valores ligados à família, à sexualidade e à vida subjetiva de um modo geral, tais transformações tanto impactaram quanto foram impactadas pela “cultura psicanalítica” que então se difundia. Por um lado, foram de algum modo influenciadas pela Weltanschauung psicanalítica no que diz respeito à denúncia da repressão sexual e da busca por autenticidade. Por outro, ao criticar todas as formas de assimetria, de poder e, portanto, de autoridade tradicional, colocaram em xeque a psicanálise como representante do establishment psi. Considerada excessivamente ortodoxa, conservadora e, mais que isso, “cerebral”, intelectualizada e elitista, a psicanálise cedeu lugar, no imaginário das novas vanguardas comportamentais, às terapias “alternativas”, que propunham um trabalho focado no corpo e na expressão direta das emoções. Apostando no abandono da contenção corporal e do ascetismo vinculado ao trabalho nas sociedades capitalistas, pregavam a “liberação” do corpo e da sexualidade. Tais terapias têm entre suas principais raízes a teoria reichiana e suas diversas releituras e reintepretações.4

Outra fonte de crítica veio do interior da psiquiatria, sobretudo a norte-americana. Os EUA (mas não apenas eles) foram o centro da chamada “psicanalização da psiquiatria”. No decorrer dos anos 1970 e 1980, o ataque à psicanálise veio tanto de psiquiatras mais social e politicamente engajados, que acusavam a psicanálise de “psicologizar” problemas sociais, quanto daqueles que estavam preocupados com a falta de “cientificidade” da psiquiatria calcada nos preceitos psicanalíticos.5 Esta última corrente, conhecida como psiquiatria biológica, acabou por dominar o cenário psiquiátrico após os anos 1980; inicialmente nos EUA e logo espalhando sua influência para a psiquiatria mundial. O marco de sua ascensão foi a publicação em 1980, pela American Psychiatric Association, da terceira edição do Diagnostic and statistical manual of mental disorders, mais conhecido como DSM-III, descrito como “ateórico”, e por isso objetivo, por descartar diagnósticos e interpretações psicanalíticos baseados em uma etiologia subjacente (como neurose ou psicose), calcados em conflitos psicológicos internos. O DSM-III, considerado um manual puramente descritivo e teoricamente neutro, implicou uma radical transformação terminológica na classificação dos transtornos mentais. O abandono da etiologia psicológica subjacente ocultava a afinidade com uma visão fisicalista da perturbação mental. A objetividade “empírica” dos sinais e sintomas – que deixam de se referir a processos subjacentes inferidos pelo clínico, passando a se basear em uma observação empírica rigorosa e quantificável – parece corresponder idealmente à objetividade empírica do substrato físico.6 Representando a hegemonia da vertente neokraepelinina7 na psiquiatria norte-americana, a publicação e a intensa difusão da nova versão do manual vão corresponder à paulatina adoção de uma visão predominantemente biológica das doenças psiquiátricas. Elas passam a ser vistas como doenças sobretudo somáticas, causadas por desequilíbrios neuroquímicos e tratáveis por meio de medicamentos. A aproximação com as descobertas das neurociências, cujo florescimento ocorreu no mesmo período, foi inevitável.

Surgidos como contraposição à hegemonia psicanalítica, esses dois movimentos – de um lado, as terapias alternativas que se misturaram a práticas esotéricas as mais variadas; de outro, a psiquiatria biológica aliada às neurociências, que busca o paradigma positivista das ciências “duras” para se legitimar – são, de fato, muito díspares. Parecem, porém, trilhar uma via semelhante, que é a via corporal em oposição à via psicológica. Nos dois casos, há a ênfase no corpo como núcleo sobre o qual deve incidir um “trabalho sobre si”. Evidentemente, esse “trabalho sobre si” possui fundamentos muito diferentes nos dois casos, e os resultados buscados são diversos. Voltarei a essa questão mais adiante.

Antes de abordar a passagem do psicológico para o corporal/somático considero necessário discutir brevemente os fundamentos cosmológicos ou culturais da produção e difusão de uma cultura psicanalítica.

A psicanálise como Weltanschauung romântica?

O tema dos fundamentos históricos e culturais da difusão da psicanálise nos remete ao processo de individualização/interiorização como marca própria da civilização ocidental.

Esse processo tem uma dualidade que muito lembra a dupla face da psicanálise a que já me referi em outro trabalho: a burocracia e o carisma.8 De um lado, a igualdade e a racionalidade da lei que submete todos ao mesmo regime; de outro, a singularidade absoluta que distingue o sujeito de todos que estão à sua volta, a qualidade única que o torna inigualável. No caso do indivíduo da singularidade, opõe-se ao triunfo da razão o domínio da experiência subjetiva e da emoção, enfatizando a incomparabilidade de cada indivíduo, sua uniqueness.9

Luiz Fernando Dias Duarte (2004, 2006, 2013) tem um conjunto de trabalhos em que discute justamente o contraponto, que seria a marca da cultura ocidental moderna, entre o racionalismo universalista (representado pelo Iluminismo) e o movimento romântico. Este último opõe ao racionalismo a ênfase na emoção, nos sentimentos, na experiência vivida, a busca de uma visão totalizante e vitalista que confronte o mecanicismo desvitalizante e atomizante da ciência moderna. O contraponto a que se refere Duarte esteve presente no nosso horizonte de valores desde pelo menos o final do século XVIII e é também tematizado por Charles Taylor em As fontes do self. Em seu livro, Taylor (1997, p.532) se refere a duas constelações de ideias formativas do universo de pensamento moderno, vinculando-as a percepções divergentes da natureza:

uma liga uma percepção intensa de nossas capacidades de razão desprendida a uma leitura instrumental da natureza; a outra concentra-se em nossas capacidades de imaginação criativa e conecta-as a uma percepção da natureza como fonte moral interior. Essas formas apresentam-se como rivais, e a tensão entre elas é um dos traços dominantes da cultura moderna.

A percepção da natureza como “fonte moral interior” esteve presente na Naturphilosophie alemã da passagem do século XVIII para o XIX, cujo maiores exemplos são a morfogênese botânica e a teoria das cores propostas por Goethe (Duarte, 2006, p.19). Já no século XX, durante os anos 1920, neurobiologistas e psicólogos de língua alemã rejeitaram a epistemologia positivista e a modernidade mecanicista, buscando uma alternativa no vitalismo biológico e na filosofia holista. Esta vertente de uma “biologia holista”, cujos expoentes foram Kurt Goldstein, Constatin von Monakow e Jakob von Uexküll, encontrou sua expressão mais bem sucedida na psicologia da Gestalt (Porter, 1993, p.258-259).

Seria a psicanálise um dos produtos – talvez o mais bem sucedido – desse contraponto, deixando entrever a face oculta do sujeito romântico?

De fato, mesmo nas suas vertentes mais “burocráticas”,10 a psicanálise está longe de representar um saber calcado unicamente no racionalismo universalizante. Ao contrário, sua vertente romântica está presente na sua prática focada na singularidade de cada paciente, na valorização das pulsões e da lógica inconsciente, que desafia justamente o sujeito da razão. Acredito ser possível ver nessa face romântica a explicação para o sucesso e a difusão da cosmologia psicanalítica.

É comum a afirmação de que o “descentramento do sujeito”, proposto pela teoria psicanalítica, teria produzido um fatal golpe narcísico no sujeito da razão. É possível, entretanto, afirmar que esse sujeito da razão há muito já não reinava impávido. Lembro que, na História da loucura, Foucault (1987) relata o surgimento, no início do século XIX, do diagnóstico de “monomania” na psiquiatria, fazendo surgir a noção de “loucura raciocinante”. A grande partilha do desatino que marcou a Idade Clássica até o final do século XVIII dá lugar a “uma proximidade, sempre perdida e sempre reencontrada, entre o homem e sua verdade” (p.521). Sobre a revolução pineliana na psiquiatria, afirma: “Se libertou o louco da desumanidade de suas correntes, acorrentou ao louco o homem e sua verdade. Com isso, o homem tem acesso a si mesmo como ser verdadeiro, mas esse ser verdadeiro só lhe é dado na forma da alienação” (p.522). A razão e a desrazão deixam pouco a pouco de constituir polos opostos e inconciliáveis, sustentando a ideia de um homem potencialmente alienado de si.

Parece-me que a cosmologia psicanalítica veio ao encontro de um anseio de compreensão provocado pela sensação de possuir um eu fugidio e enigmático. A ela não coube destruir uma ilusão, mas sim emprestar uma lógica e uma sistematização ao que parecia ilógico e assistemático. Ao falar de um eu dilacerado e dividido, a psicanálise estaria traduzindo em palavras, ou seja, tornando inteligível, um mal-estar até então indizível. E por mais que não houvesse promessa de cura, a mera compreensão e a atribuição de uma racionalidade, de uma sistematização a esse mal-estar, poderiam torná-lo mais suportável. Lembro aqui Georg Simmel, um autor extremamente útil para lidar com o contraponto racionalismo/romantismo, quando se refere à dualidade entre cultura subjetiva e cultura objetiva, ou à oposição entre formas sociais e necessidades internas. Para Simmel (1971a, 1971b), o “fluxo da vida” é sempre aprisionado em formas sociais, perdendo aí toda a sua vitalidade, mas permanecendo como uma pressão constante sobre as formas estabelecidas, desafiando-as e rompendo-as de modo a estabelecer novas formas.

A psicanálise, nas suas versões mais claramente “adaptativas” ou pragmáticas e naquelas mais radicalmente românticas, parece estar dentro dessa alternância e do sutil equilíbrio de que fala Simmel entre as necessidades vitais e as formas sociais. Penso, portanto, que pode ser compreendida como compondo uma cosmovisão alternativa ao racionalismo universalizante tout court.

Seus limites, entretanto, revelam-se, segundo acredito, na sua ênfase no psiquismo (ou no mental) em detrimento do biológico (ou corporal). Ao se apresentar como uma ciência do espírito ou do mental, as diversas faces da psicanálise vão ser objeto de vigorosa crítica e oposição por parte tanto de modelos mais radicalmente neorromânticos, com sua insistência em uma visão totalizante do ser humano e da natureza, quanto de modelos fisicalistas de corte racionalista. Ambos negam, cada um a seu modo, o dualismo corpo/mente. No caso dos primeiros, devido a uma concepção totalizante de pessoa, no caso dos segundos, por conta de uma hierarquização em que o corporal engloba o que até então se considerava mental.

Parece-me que tanto a virada corporal das terapias alternativas quanto a virada biológica/cerebral da psiquiatria são produto de um rearranjo importante da “tensão inarredável” de que fala Duarte (2004, p.17).

Esse rearranjo é tematizado por diversos autores, entre eles Collin Campbel (1997), para quem, a partir de meados do século passado, assistimos no Ocidente a uma mudança de teodiceia. É como se, no contraponto a que se refere Duarte, o polo romântico tivesse abandonado sua posição habitualmente encoberta ou englobada pela face progressista e “iluminada” da ciência, para assumir a frente dos modos dominantes de ação e pensamento. Essa mudança, ainda segundo Campbel, torna-se aparente nos movimentos contraculturais dos anos 1960-1970, de caráter claramente neorromântico e neovitalista, que se acoplam a um reencantamento da natureza – e se evidencia no florescimento das terapias alternativas e de fenômenos correlatos, como a Nova Era e a ecologia mais radical.11 Todos se fundamentam em uma negação do dualismo corpo/mente que se combina a um anti-intelectualismo e a uma preferência acentuada pelas emoções e sua expressão (que é corporal passa pelas sensações, e não pelo intelecto). O trabalho sobre si, que com a psicanálise era psicológico, passa a ser corporal.

A virada somática

Acredito, então, que a tensão própria ao indivíduo moderno teria sido reconfigurada nessa passagem do século, com o surgimento de uma concepção de “self somático” ou “sujeito cerebral”.12

De fato, assistimos no mundo contemporâneo a uma ascensão do cérebro e de explicações fisicalistas (hormonais, por exemplo) para as mais variadas condições humanas – antes consideradas mentais – e também a uma intensa difusão leiga dessas explicações (por meio das mídias escrita e televisiva, de filmes e obras de literatura e da internet), semelhante à difusão da Weltanschauung psicanalítica.13 Alguns autores, como Nikolas Rose (2013), referem-se inclusive a uma “interioridade somática”.

Esse florescimento de uma concepção cerebral ou fisicalista de si coincide com a mudança de teodiceia tal como exposta no texto de Campbell (1997). No caso do “eu somático”, é possível falar que o polo romântico do contraponto iluminismo/romantismo tenha abandonado sua posição habitualmente encoberta ou englobada para assumir a frente dos modos dominantes de ação e pensamento, como afirmamos em um parágrafo precedente? O que significa o surgimento, o florescimento e a difusão da concepção de um sujeito cerebral e de uma interioridade somática do ponto de vista da “tensão inarredável” proposta por Duarte?

No caso das chamadas terapias alternativas e do conjunto de estilos de vida a elas associado, a dominância do polo romântico é muito clara, e a ênfase na experiência corporal convive com formas “espirituais” de compreensão do mundo e da realidade. Essa espécie de “somatismo” alternativo, cujo teor espiritual pode ser importante, parece se distanciar fortemente do “somatismo” biotecnológico ou cerebral das neurociências e/ou da psiquiatria biológica.

Gostaria, entretanto, de propor possibilidades e arranjos por meio dos quais os dois modos de dominância somática se comunicam e, muitas vezes, articulam-se.

Em um artigo escrito há alguns anos com Edna Ponciano (Russo, Ponciano, 2002), tomamos como objeto de análise uma vertente das neurociências representada pelos trabalhos de Francisco Varela, Humberto Maturana e Gerald Edelman. Deparamo-nos, então, com uma neurociência “alternativa”, cuja proximidade com a psicologia budista era patente – e abertamente assumida por Varela. No caso que estudamos, a concepção hipernaturalizante do humano e de seu cérebro e corpo não implicava um fisicalismo reducionista – acusação comum às neurociências de um modo geral. A recusa dos dualismos levava a uma concepção totalizante do ser humano, na qual se desfazia não apenas a tensão sujeito/objeto – uma vez que o “mundo lá fora” e o organismo se coproduzem mutuamente –, também a separação homem/natureza (ou natureza/cultura) deixava de operar, na medida em que a referência era a qualquer organismo vivo. O abandono da separação tradicional entre o ser humano (como ser dotado de razão e consciência) e o resto do reino animal produz uma espécie de reencantamento da natureza, própria da visão romântica do mundo. No artigo de 2002, referimo-nos a uma “Lebensphilosophie materialista” (Russo, Ponciano, 2002, p.366).14

Observação semelhante pode ser extraída do livro de Nikolas Rose (2013)A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI, no qual, entre outras discussões, o autor trata do surgimento de um “self somático”. A partir da leitura de Rose, podemos concluir que a incerteza, antes provocada por um eu fugidio e desconhecido, tende cada vez mais a se caracterizar como uma incerteza biológica: nossa saúde e nosso corpo estão sempre em risco e devem ser objeto de constante atenção e controle. Ao mesmo tempo, a ideia de um risco biológico (ou uma incerteza somática) constante não pode ser separada do valor fundamental dado à vida. Dentro do que Rose (2013, p.46) define como “preocupações etopolíticas” (uma ética somática), encontramos uma espécie de vitalismo em que florescem disputas em torno do valor atribuído à vida: “qualidade de vida”, “direito à vida” e “direito à escolha” (aborto, eutanásia) e, em última instância, direito de modificar a vida (terapia genética, clonagem humana) etc.15

Falar em “vitalismo” quando nos referimos à biotecnologia não é simples. Seu surgimento e em aprimoramento pressupõem o uso de teorias científicas e práticas tecnológicas cujo fundamento positivista e mecanicista – oposto, portanto, às concepções vitalistas – é inegável. Entretanto, como afirmei mais acima, e como ficou demonstrado no caso da “neurociência alternativa”, comunicações e articulações são possíveis.16

Se levarmos em conta essa possibilidade, as intervenções biotecnológicas citadas por Rose, como a terapia genética ou a clonagem humana, normalmente compreendidas sob uma perspectiva mecanicista como intervenção sobre um corpo “objetificado”, podem ser vistas, pelos sujeitos que a elas se submetem, como parte da vitalidade corporal e da experiência encarnada. Poderíamos, nesse sentido, usar o termo “vitalismo” (entre aspas) para indicar a valorização contemporânea da categoria “vida”, entendida como algo que, embora ancorado na materialidade biológica, de algum modo a ultrapassa, articulando-se a categorias fluidas e pouco objetiváveis como felicidade e bem-estar ou a sentimentos e emoções também pouco passíveis de uma definição objetiva.

Alguns exemplos relacionados à biotecnologia aplicada à reprodução podem ser instrutivos. O trabalho de Lilian Chazan (2007) sobre a ultrassonografia fetal em clínicas de imagem do Rio de Janeiro mostra o modo como um aparato tecnológico (e seus operadores) produzem o “neném” na barriga da futura mãe, o qual passa a ter sentimentos, intenções e a ser uma pessoa com a qual os pais se relacionam muito antes de sua existência “externa” e social. A ultrassonografia em 3D inicia o álbum do bebê como sua “primeira fotografia”, e o vídeo do exame de ultrassom é mostrado aos amigos e parentes como um “vídeo do bebê”. Ao mesmo tempo, a existência de um bebê proporcionada pela tecnologia alimenta os movimentos “pró-vida” contra o aborto.

Ainda no campo das técnicas em torno da reprodução, o trabalho de Naara Luna (2007) mostra outro aspecto do possível emaranhamento entre biotecnologia e “vitalismo”. Tratase das tecnologias de reprodução assistida por meio das quais, a partir da manipulação altamente tecnologizada de corpos e partes de corpos, se produz uma experiência corporal única e intensamente investida de afeto: a gravidez. Percebe-se aí a valorização tanto da experiência corporal da gravidez em si quanto do “filho biológico” correndo paralela ao intenso investimento no desenvolvimento tecnológico, que desemboca em fertilizações in vitro cada vez mais sofisticadas e no fenômeno do útero de aluguel. Essa insistência no filho biológico e/ou na experiência de concebê-lo e gestá-lo demonstra, do nosso ponto de vista, tanto a encarnação e a biologização da “vida” quanto o modo como o vínculo afetivo entre pais e filhos deve necessariamente ser duplicado e espelhado pelo vínculo propriamente material, biológico. Materialidade e biotecnologia, de um lado, afeto e experiência encarnada, de outro, parecem se articular na vivência dos sujeitos envolvidos.

Após o nascimento do bebê, a intensa valorização do aleitamento materno – que deve ser exclusivo até os seis meses, podendo se prolongar mais ou menos indefinidamente – também mostra o emaranhamento de argumentos biológicos “reducionistas” (constituição de anticorpos, da flora intestinal, maior resistência a infecções, dentição correta etc.) e afetivo-vitalistas – a importância do vínculo mãe/bebê para a futura felicidade, bem-estar e saúde mental de ambos, o vínculo produzindo-se por meio do contato “encorporado” do aleitamento.17

Não por acaso os exemplos referem-se a maternidade, gestação e parto, fenômenos particularmente sensíveis a um investimento afetivo e naturalmente propensos a uma articulação entre o físico e o moral. No caso específico do parto e da amamentação, o hormônio ocitocina, tradicionalmente utilizado no parto “medicalizado” para acelerar as contrações, aparece como agente fundamental no estabelecimento de um vínculo amoroso entre a mãe e seu filho. Pesquisas realizadas dentro do mais tradicional (e desvitalizado) padrão científico são citadas como prova inquestionável (porque científica) de que se trata aí do “hormônio do amor”.18 Deste modo, acredita-se que a ocitocina, assim como outras substâncias presentes no (ou ausentes do) organismo (como a testosterona, o estrogênio, a serotonina, a adrenalina), tem o poder de produzir os mais diversos tipos de sentimentos, afetos e formas de ser. Por mais que tais substâncias tenham (ou devam ter) uma existência material concreta, e possam ser definidas por essa via, parecem ser portadoras de alguma coisa que ultrapassa essa definição estrita. São substâncias que carregam consigo o poder de provocar emoções, ligações amorosas, sensações prazerosas, de promover potência e vitalidade.19 Essa espécie de “vitalismo” molecular seria outro exemplo do emaranhamento a que me referi mais acima, a partir do qual se percebe como a experiência somática/corporal tem sido investida de alto valor moral e afetivo, e, o que é mais importante, como cada vez mais se produz vida (ou mais vida) por meio da biotecnologia.

Meu argumento é que o “sujeito somático”, que sustenta o atual florescimento da psiquiatria biológica e das neurociências, não necessariamente é fruto do triunfo de um fisicalismo reducionista estrito, embora a ele esteja evidentemente associado, podendo também ser articulado à voga neorromântica que sustenta as terapias e práticas “alternativas” de um modo geral.

No caso do sujeito cerebral, acredito que a atual ênfase na concepção de “plasticidade cerebral”, de um cérebro que é parte integrante do corpo e está em constante transformação e comunicação com o meio, tende a se afastar de um fisicalismo estrito e se aproximar de uma experiência mais totalizante. A visão tradicional do cérebro como um órgão fechado em seu próprio funcionamento está sendo substituída pela de um conjunto de redes neuronais em processo de contínua mutação a partir da interação com o meio e, portanto, das experiências do sujeito. No lugar de um cérebro que comanda o sujeito e seu corpo, o cérebro plástico está necessariamente encarnado em uma totalidade, o sujeito e seu meio, só podendo ser compreendido a partir desse englobamento.

Considerações finais

Meu objetivo aqui foi, como explicitei no início do texto, examinar a passagem de uma compreensão psicológica da pessoa para uma compreensão somática/cerebral. Minha discussão centrou-se na dualidade que, segundo alguns autores, marca a cultura ocidental moderna, entre a visão iluminista e racionalista do mundo e uma outra visão, normalmente subordinada (ou englobada, de acordo com Duarte), que costuma marcar determinadas searas do nosso universo cultural, como o mundo das artes ou das ciências humanas, vistos como mais contaminados pela subjetividade e, portanto, menos afeitos à objetivação racionalista e cientificizante (daí sua subordinação). Tentamos compreender como a “tensão inarredável entre essas duas ideias-força de nossa cultura que as caracteriza desde sua instauração”, nas palavras de Duarte (2004, p.17), teria sido reconfigurada nas últimas décadas do século XX, levando a uma “reencarnação” do espírito, e ao concomitante afastamento da dualidade corpo/mente que foi a marca da produção de uma cultura psi no século XX.

Argumentei que o que hoje em dia se chama de “interioridade somática”, cuja expressão mais conhecida é a do “sujeito cerebral”, pode ser visto como produto dessa reconfiguração – buscando demonstrar que o materialismo que marca tais fenômenos é uma espécie de “materialismo reencantado”, em que o valor “vida” tem um papel crucial. A partir de exemplos nos quais intervenções biotecnológicas se articulam a um forte investimento afetivo e emocional de experiências corporais e que estas, apesar de calcadas numa manipulação objetificante e mecanicista do corpo, produzem uma vivência totalizante nos sujeitos a elas submetidos, procurei argumentar que o fisicalismo e o cientificismo exacerbados que hoje marcam a produção biotecnológica não podem ser compreendidos sem que se leve em conta a articulação com a experiência dos sujeitos. E isso está, parece-me, bastante distante do atomismo mecanicista que marca o fisicalismo radical. Ao contrário, os trabalhos de Chazan e Luna, entre outros, trazem à tona experiências totalizantes (o bebê na barriga, a gravidez “biológica”) sustentadas, segundo meu ponto de vista, na vertente romântica como contraponto constitutivo do nosso universo cultural.

Parece-me, portanto, que o materialismo ou o fisicalismo que tendem a marcar a concepção de pessoa no universo contemporâneo estão baseados em uma reconfiguração da “tensão inarredável” referida por Duarte que, em momento anterior, sustentou a produção e o florescimento de uma cultura psi. Isso nos leva a uma questão fundamental: será ainda possível falar em “cultura psi”? A reconfiguração a que me refiro acima implica seu esgotamento? Ou também sua reconfiguração? São indagações cujas respostas não são simples e que este trabalho buscou tão somente fomentar.

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