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Doar ou não doar, eis a questão: uma análise dos fatores críticos da doação de sangue

Doar ou não doar, eis a questão: uma análise dos fatores críticos da doação de sangue

Autores:

Jefferson Rodrigues Pereira,
Caissa Veloso e Sousa,
Eliane Bragança de Matos,
Leonardo Benedito Oliveira Rezende,
Natália Xavier Bueno,
Álvaro Machado Dias

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.8 Rio de Janeiro ago. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015218.24062015

Introdução

Na última década identifica-se um crescimento exponencial da demanda por doações sanguíneas em todo o mundo, inclusive no Brasil. Atualmente, aproximadamente 1,8% da população brasileira é doadora de sangue1, mas segundo recomendações, o índice ideal deve estar entre 3% a 5%2. De acordo com as proposições da legislação brasileira, o ato de doar sangue é inteiramente voluntário e anônimo, não sendo permitido qualquer tipo de remuneração1.

No país, entre os anos de 2012 e 2014, a média de coletas sanguíneas realizadas foi de 3.613.930 procedimentos anuais3. Se considerado o ano de 2014, 94,0% desses foram executados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e 6,0% por serviços exclusivamente privados. Atualmente, do total de serviços hemoterápicos realizados no país, 61,43% são realizados por centros públicos, 31,69% por postos credenciados ao SUS e 6,87% exclusivamente privados1.

Nesse contexto, o marketing social emerge como uma possibilidade de contribuir no processo de captação de novos doadores. O termo marketing social foi cunhado por Kotler e Zaltman4 para se referir a utilização de técnicas oriundas do marketing convencional em prol de questões sociais. A partir dessa proposição, destaca-se que o marketing social tem em sua gênese a tentativa de maximização do “bem estar” da sociedade4-11.

O marketing social pode ser compreendido como a utilização de técnicas do marketing comercial com a finalidade de influenciar determinado público a, de maneira voluntária, aceitar, modificar, rejeitar ou abandonar determinado comportamento em prol do bem estar social, que pode ser uma causa como a doação de sangue, por exemplo12,13. Salienta-se que esta alteração de padrões comportamentais se inicia em limites individuais e evolui para níveis coletivos14. Em suma, o marketing social induz a uma mudança comportamental nos indivíduos na tentativa de alcançar a mudança, que tem como foco de atuação os padrões de pensamentos da sociedade e sua respectiva evolução, com o intuito de atender às necessidades emergentes do grupo, mediante variações relacionais entre pessoas, grupos, organizações e sociedades15,16.

Nem sempre a mudança social ocorre de maneira planejada, podendo esse processo se iniciar à medida que os indivíduos percebem que algo está em inconformidade com as suas necessidades individuais ou coletivas17. Dado que o processo de mudança social inicia-se em níveis individuais, torna-se importante compreender os diversos fatores que são condicionantes à tomada de decisão do indivíduo, dentre estes, ressaltam-se os aspectos motivacionais e experienciais.

A motivação, segundo Ferguson18, tem uma complexa delimitação conceitual. Para o autor, é mais fácil identificar um indivíduo motivado do que conceituar a motivação em si. Por isso, os autores destacam que a motivação é um processo individual e intrínseco que está diretamente associado ao ‘por que’ da execução de determinada ação18-26.

Rogers et al.23 ressaltam que sempre que um indivíduo sente a necessidade de algo, seja ele físico ou não, identifica-se um estado de motivação. A necessidade, portanto, pode ser reconhecida como variável central do processo de motivação11,23,27-31.

Para os autores referenciados neste estudo32-35, os motivos que geram as necessidades são fenômenos psicossociais, compreendidos como relações estabelecidas entre o indivíduo e o ambiente que o envolve, ao passo que as necessidades podem ser compreendidas como impulsos fisiológicos que desencadeiam ações dos indivíduos.

No que se refere à motivação para atos voluntários como, por exemplo, a doação sanguínea, apesar da existência do aspecto subjetivo que envolve o sujeito neles, é possível identificar um padrão geral no comportamento destes indivíduos, sendo que seus atos são condicionados, em primeira instância, pela possibilidade de se engajar na solução de problemas de terceiros34, agindo em busca de benefícios pessoais indiretos36. Em complemento, a ação voluntária se justifica, em nível individual, por possibilitar um desligamento temporário do indivíduo de tensões geradas em outras esferas de sua vida pessoal e social37.

Um comportamento motivado surge com o reconhecimento da necessidade existente e latente no indivíduo, sendo que neste espaço cognitivo, as motivações direcionam a ação no sentido de preenchê-lo38. Nesse sentido, “o homem é um animal desejante e raramente atinge um estado de completa satisfação, exceto por um curto período de tempo. Assim que um desejo é satisfeito, outro explode e assume o seu lugar”26, o que caracteriza o processo como cíclico.

Quando se considera os aspectos experienciais, segundo alguns autores, bens, serviços e ações são utilizados pelos indivíduos no sentido de se autodesvendarem, a fim de criarem imagens sociais, sentimentos de pertencimento a grupos de aspiração, e de dissociação de outros grupos, criação de identidades ou atribuições de outros significados às identidades vigentes39-41.

De acordo com essa abordagem, pode-se atribuir aos aspectos experienciais princípios e estruturas próprios, os quais abarcam experiências de naturezas distintas42. Dentre tais destacam-se as experiências sensoriais afetivas, físicas, cognitivas, criativas ou sociais. Portanto, os aspectos experienciais podem ser compreendidos como a resultante da convergência de vários fatores, se compondo de maneira holística e híbrida.

A partir do delineamento teórico exposto anteriormente, que demarca os aspectos motivacionais e experienciais envolvidos em ações voluntárias e ligadas a causas sociais, o presente estudo pretende responder ao seguinte problema de pesquisa: quais são os fatores críticos da decisão de doar, ou não, sangue?

Como objetivo geral almeja-se identificar e analisar os principais fatores críticos presentes no processo de doação de sangue, a partir de uma amostra de respondentes da cidade de Belo Horizonte, MG, considerando a percepção de doadores, potenciais doadores e não doadores de sangue.

Doação de sangue

Apenas 1,78% da população brasileira é doadora de sangue1, índice inferior ao ideal que é de 3% da população. Na composição desse percentual destaca-se que a região brasileira que percentualmente mais contribui para esse resultado é a Região Centro-Oeste (2,55%), seguida da Região Sul (2,28%) e da Região Sudeste (1,69%), conforme apresentado na Tabela 1.

Tabela 1  Taxa de doação de sangue por região brasileira (2012). 

Fonte: Ministério da Saúde2 (p. 19).

Nesse cenário, deve-se considerar que a situação dos bancos de sangue se torna mais crítica nos períodos de férias e finais de ano, uma vez que há crescimento na demanda por transfusões sanguíneas e redução de 20% a 25% no número das doações realizadas em todo o Brasil43.

O processo de doação de sangue é constituído por uma sistemática rigorosa, denominada ‘Ciclo do Sangue’, e dividida em nove etapas: captação do doador, conscientização, cadastro, triagem clínica, triagem hematológica, coleta, triagem laboratorial das amostras, distribuição e procedimentos transfusionais44.

O processo se inicia na fase de captação, que compreende um conjunto de ações para conscientizar e educar a sociedade para a doação voluntária e contínua. O segundo estágio é a conscientização, na qual os possíveis candidatos que nunca doaram sangue ou aqueles que estão há mais de dois anos sem doarem recebem informações e orientações sobre todo o processo. Em seguida, ocorre o cadastro, momento no qual é preenchida uma ficha com dados de identificação do possível doador45,46.

Avançando no processo inicia-se a etapa da triagem clínica. Nessa fase o médico realiza uma avaliação física do candidato e do questionário.

Na etapa de triagem hematológica ocorre a coleta de uma gota de sangue do candidato para verificar se o mesmo está anêmico. Caso o exame seja positivo a doação deverá ser adiada até que o indivíduo se cure47,48.

Segundo Gontijo45, a sexta etapa do processo é a coleta, na qual o candidato doa aproximadamente 450 ml de sangue, que em seguida passará pela triagem laboratorial.

O processo de doação de sangue possui uma série de exigências legais para que se concretize. Dentre elas, destaca-se que o doador potencial deve possuir peso superior a 50 quilos e idade entre 18 e 67 anos. Em alguns casos são aceitos candidatos à doação de sangue com idades entre 16 e 17 anos, com o consentimento formal do responsável legal43.

Recomenda-se que o candidato à doação faça um repouso de pelo menos 6 horas na noite anterior; não tenha realizado ingestão de bebidas alcoólicas nas últimas 12 horas; não faça uso de cigarro por, pelo menos, 2 horas antes da doação43.

Método

A presente pesquisa foi construída à luz de uma abordagem qualitativa descritiva. A escolha da abordagem se explica uma vez que os pesquisadores trabalharam com perspectivas subjetivas no universo de significados, crenças, motivações, experiências e fatores que possuem uma representação de um espaço do mundo das relações, que não pode ser operacionalizado quantitativamente49,50.

Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com vinte e quatro indivíduos que atendessem aos critérios de seleção, que para este estudo foram: doadores frequentes, não doadores (aqueles que deliberadamente afirmam que nunca doaram e não doarão sangue), potenciais doadores (ou seja, aqueles que já doaram, mas abandonaram o comportamento e aqueles que nunca doaram, mas podem vir a doar) e indivíduos que já realizaram transfusões sanguíneas.

Os entrevistados foram selecionados por meio da técnica metodológica snowball (bola de neve). Segundo Baldin e Munhoz51, trata-se de uma metodologia não probabilística, pela qual os indivíduos que participaram inicialmente da pesquisa indicam novos participantes e assim sucessivamente, até chegar ao ponto de saturação, que para este estudo foi de vinte e quatro indivíduos.

Todos os entrevistados apresentaram consentimento para a entrevista e o tratamento acadêmico das informações, o que ficou registrado nas gravações individuais. Para garantir o anonimato dos entrevistados ficou acordado que estes seriam identificados como E1, E2,..., E24. A caracterização dos entrevistados é apresentada no Quadro 1.

Quadro 1  Descrição dos sujeitos de pesquisa. 

Fonte: Dados da pesquisa (2015).

Posteriormente à coleta, os dados foram organizados e analisados por meio da técnica de análise de conteúdo à luz das proposições de Bardin52. Para tal, utilizaram-se as seguintes dimensões de análise: fatores críticos do processo de doação de sangue; as triagens clínica e hematológica; e, motivos da não doação.

Apresentação dos resultados

A análise dos dados levantados por meio das entrevistas apontou, inicialmente, falha em relação à eficácia das campanhas para motivação e captação de doadores. Segundo os entrevistados, as campanhas não esclarecem adequadamente os requisitos para doação e não desmitificam os “medos” relacionados à doação de sangue. Estes fatores foram mencionados por não doadores e doadores potenciais, o que evidencia a falta de elementos motivacionais que revertam a condição de não doar sangue.

Medo, medo de dor, medo de pegar doença, o medo assim, mas são “n” fatores que deixam a pessoa com medo, medo é um fator, e falta de informação seria outro (E4 Potencial).

Elas são, elas são... elas passam poucas informações porque igual eu te falei, muitas vezes as pessoas não doam por medo, né, por medo de risco, medo de doença, é... por saber, por não saber por onde que esse sangue vai, porque muitas eles doam sangue [...] As vezes a pessoa doa o sangue, eles não fazem os exames precisos antes (E5 Não doador)

Informações e esclarecimentos durante a fase de captação e motivação de doadores de sangue poderiam minimizar o receio em relação à segurança do processo, mas, além de ausentes nas campanhas, estas apresentam falta de sensibilidade para envolver e baixa frequência para sedimentar comportamentos iniciais de doação.

Ah, eu acho que falta sensibilidade. Quando eu vejo aquela campanha assim não me sensibiliza, acho que falta sensibilidade (E10 Não doador).

Eu acho que quem é doador, quem gosta de doar, acho que mesmo quando ele vê, se não está lembrando, ele lembra e vai doar. Depois passa e você não vê mais a campanha com tanta frequência nos meios de comunicação, então eu acho que as campanhas tinham que ser mais frequentes (E16 Não doador).

Outro ponto de criticidade relacionado às campanhas é a deficiência de informações que possibilitariam a doação. De um lado, no momento de captação, as campanhas de doação de sangue transmitem a informação de que para ser um doador de sangue basta possuir a maior idade, boa saúde e peso acima de cinquenta quilos. No momento em que se inicia o cadastramento do doador potencial se identificam outros fatores impeditivos à doação, que não foram anteriormente esclarecidos. Este fator ficou evidenciado como desmotivador, alimentando um julgamento negativo de todo o processo.

Eu tive relatos de amigos meus que ficaram ‘super’ decepcionados. Um era usuário de drogas, aí chegou lá na triagem e descobriu que não podia. Então como isso não é divulgado? As pessoas ficam constrangidas, por exemplo, ele mesmo que não seja mais usuário, tenha passado um tempo, será que ele vai ter motivação para voltar lá? (E7 Potencial).

É fraca essa questão das campanhas, as propagandas. Geralmente, elas te informam superficial, ai você tira um dia, vai lá e não pode doar e você volta pra casa, ai você pensa, não vou mais lá naquele lugar não uai... (E12 Doadora).

Mentirosa [se referindo as campanhas governamentais]. A pessoa não tem a mínima noção do que deve ter para doar, eles falam três ou quatro coisas na televisão e quando chega lá pra doar, você não pode doar. É enganar o cidadão. É mentir para o cidadão. É um absurdo isso (E24 Não doador).

Eu doava sangue porque eu sempre achei que era um negócio bacana, uma atitude solidaria, as pessoas precisam doar sangue. Eu parei devido à burocracia do próprio sistema, eu já era um doador. Fui impedido umas quatro vezes seguidas, por que tinha ido ao dentista, depois tomado remédio, depois tinha ficado gripado, aí eu fui doar e não podia. O problema é que isso nunca é informado, e como aconteceu, assim de algumas vezes seguidas de eu ser impedido, aí aquele hábito que eu tinha, eu acabei perdendo (E4 Potencial).

Por outro lado, o que se identifica é que parte significativa dos impedimentos no processo de doação está relacionada às etapas das triagens clínica e hematológica. Este processo de triagem é identificado como uma etapa importante e válida pelos entrevistados, uma vez que permite a identificação e a seleção de doadores aptos.

A gente faz a doação e depois que eles vão avaliar, até pra evitar um retrabalho. Porque se eu for lá fazer a avaliação e depois voltar para fazer a doação seria um retrocesso, então, com isso, corre o risco de fazer todo um trabalho e o sangue não ser utilizado (E23 Doadora).

Destaca-se, ainda, que alguns entrevistados apontam que a estratégia de ampla divulgação da necessidade de doar sangue e posterior filtragem daqueles doadores aptos a doar gera um resultado contrário, uma vez que desmotiva doadores potenciais que temporariamente não se encontram aptos a doar impedindo sua doação futura.

Para mim, isso é uma simplificação de informação. Eles tentam chamar muita gente para doar e depois a triagem barra todo mundo. Será que eles não percebem que isso é um tiro no pé? (E1 Doadora).

Acho também que eles deveriam ser mais claros para explicar o porquê as pessoas barradas não podem doar, por que, às vezes, a coisa tão boba que pode ser evitado em uma futura doação. Então acho que tinha que melhorar esse processo, essa triagem (E9 Potencial).

A falta de informação identificada quanto à capacitação para a doação é evidenciada por um dos entrevistados como um fator justificador para a triagem, vista como positiva e importante.

Acho ‘super’ importante, tem gente que não tem conhecimento de si nem da sua saúde. Eu acho que tem que ter a triagem mesmo para verificar, o sangue precisa ser verificado mesmo, senão a gente passa as coisas para as pessoas e pode agravar mais ainda a saúde dela (E6 Doador).

Portanto, acredita-se que o processo de triagem feito em duas etapas, por meio de questionários, com um atendente na primeira fase e com um médico na segunda, é visto de maneira burocrática e que poderia ser unificado na fase de atendimento e avaliação médica.

Eu acho que o que de cara mata muito é aquele questionário que eles dão para a gente lá. O questionário tem umas sessenta perguntas, eu passei por dois, eu passei por um e depois passei por outro, que é com o médico. Eu acho que tinha que ser só com o médico (E9 Potencial).

Outro ponto importante a ser ressaltado se refere às questões relacionadas à percepção de segurança, tanto do doador como do receptor do sangue. Tais questões podem ser observadas, principalmente, durante os processos de triagem que, apesar da consciência generalizada de sua importância, ainda geram dúvidas acerca de seu nível de segurança.A percepção de insegurança é apontada tanto por não doadores quanto por doadores potenciais, que já doaram, mas abandonaram este comportamento.

Eu acho muito importante e fundamental a triagem, mas mesmo assim, o doador consegue enganar o profissional. [Então você acha que não é um processo seguro?] 100% seguro não, de forma alguma (E24 Não doador).

Eu achei o processo falho, porque eu lembro que uma perguntinha do sim ou não que você tem que responder no final. Você passa por uma triagem com um número enorme de perguntas, no final, depois da doação, você ainda tem que confirmar se você acha que sua bolsa está apta ou não para ser repassada para quem está precisando. Nesse sim ou não, sendo que você já passou pela triagem, já coletou o sangue, você tem que responder de novo, gerou dúvida aí. Eu vim perguntar para funcionária e a justificativa dela me deu a entender que o processo não é muito garantido não, principalmente, para quem vai receber o sangue. Achei falho, totalmente falho. [Em que sentido?] É que deu a entender que o paciente pode ser contaminado ao receber o sangue e isso me gerou muitas dúvidas quanto à segurança do processo, principalmente, da triagem (E11 Potencial).

Uma questão que pareceu pertinente na avaliação do processo de doação de sangue, mas que não se relaciona diretamente à avaliação do mesmo é a percepção de valorização e destaque social atribuída aos doadores. De maneira geral, independentemente do status de doador, não doador e doador potencial, o que se identifica é a falta de valorização social do doador de sangue. O ato de doar sangue, para os entrevistados, só é valorizado por aqueles que recebem o sangue e pelo círculo de amigos e familiares diretamente envolvidos com os que recebem o sangue.

Na propaganda sim, mas na vida real não. Você falar com as pessoas, ah...eu fui ali doar sangue, pra muita gente é um bem que você fez, mas não dá valor. Não é que não é valorizado, mas não tem muito, é morno, é meio amorfo (E6 Doador).

Não. Não acho que é socialmente valorizado, só tem valor para a pessoa que recebe. Porque ‘no mais’ a pessoa que está ali é muito indiferente, então eu não acho que seja valorizado de alguma forma, é mais quem ‘tá’ ali, os familiares, a pessoa que ‘tá’ recebendo ali no momento que ‘tá’ precisando, porque ela põe valor nas coisas, põe valor em quem doa (E9 Potencial).

Para alguns entrevistados, a não valorização do doador de sangue, além de ser um comportamento social, é também um ato individual, sob o qual a motivação para a doação não se baseia.

Não. Mas eu acho que quem doa também não quer ser reconhecido não, ele doa porque quer ir lá e fazer esse ato, porque ele é bom, porque ele quer fazer o bem ou porque ele quer doar sangue pra alguém que ele conhece. Ninguém faz porque quer ser reconhecido não, “Ah, eu sou doador de sangue”, não (E3 Não doador).

Identificar fatores críticos da não doação de sangue implica, também, em entender os fatores que motivam aqueles que doam. Para os doadores declarados e os potenciais que já doaram e atualmente não doam mais sangue, o principal fator motivacional foi a necessidade de doação para conhecidos ou o pedido de conhecidos para um parente ou amigo próximo que necessitava da doação. Por outro lado, a satisfação intrínseca e individual do doador é ativada, reforçando o ganho social de fazer bem a alguém próximo. Mesmo o processo de doação sendo indireto, isto é, o sangue doado não é alocado diretamente para a pessoa que motivou a doação, o incentivo feito por conhecidos desperta a motivação altruística e, conjuntamente, proporciona o ato de doação.

A primeira vez que eu doei foi um amigo que precisava, ai ele pediu para gente ir e eu achei ‘super’ interessante e fui. Eu acho que é uma sensação assim de ajuda, né? De contribuir com o próximo. [A segunda vez foi como?] A segunda vez foi o pai de um cunhado que foi fazer uma cirurgia, aí eu fui. As duas vezes foram quando me pediram para doar (E15 Potencial).

É uma experiência de você fazer uma oferta, de você ser útil, de você poder contribuir com alguém, então é uma experiência prazerosa, de você poder oferecer o que você tem para alguém que está numa necessidade, seja ela temporária, você poder contribuir, você poder doar, então é muito digno isso (E6 Doador).

Olha, eu acho que a principal questão é perceber a necessidade, quando está próximo, quando com algum familiar já aconteceu, eu acho que param para pensar mais sobre isso. Eu também acho que a influência de amigos, os doadores influenciam muito o meio onde elas estão inseridas, eu acho que é mais por essas vertentes mesmo (E7 Potencial).

Outros entrevistados apontam razões diferenciadas que motivam a doação. Entre estas pode-se identificar as motivações de cunho racionais, como ganho de uma ausência justificada ao serviço, e de motivações baseadas em crenças religiosas e humanitárias, apontando para a multiplicidade de motivos relacionados à doação. Estes fatores, entretanto, aparecem mais como fatores adicionais ao motivo principal da doação, o pedido ou a solicitação de algum conhecido.

Oh, tem motivações múltiplas, você tem as questões religiosas, tem gente que doa pelas questões religiosas, tem gente que doa para ganhar um dia de serviço, a gente não pode desconsiderar isso, porque alguns amigos meus doavam porque ganhavam um dia de serviço. Porque tinha isso, eu sempre doei e às vezes ia trabalhar normal. Doa porque às vezes precisa, tem um ente querido, porque alguma pessoa pediu e também a pessoa doa por livre e espontânea vontade, então são múltiplos motivos (E4 Potencial).

Discussão

Os depoimentos dos entrevistados nesta pesquisa apontam para uma série de fatores críticos relacionados à doação de sangue, que impedem, desmotivam e/ou afastam os doadores potenciais e não doadores de efetivarem a doação do sangue e permanecerem ativos para doações futuras.

A ausência e a assimetria de informações relativas às diversas etapas do processo de doação de sangue se mostram como os fatores mais críticos do processo. Se por um lado não são tratadas as informações que motivariam as pessoas, de forma mais efetiva, para a doação de sangue, como a importância e o valor social relacionados ao ato da doação, por outro, complementando e evidenciando a criticidade deste fator, não são veiculadas informações suficientes e de maneira ampla sobre os critérios que habilitam um doador.

A motivação inicial para a doação contempla aspectos intrínsecos, como o altruísmo e o desejo de ajudar o próximo, além de aspectos sociais, como a experiência de pertencimento a um grupo e o consequente desejo de ajudar as pessoas pertencentes a este grupo. Da mesma maneira, a não doação, apesar de possuir origem intrínseca ao indivíduo, como o medo e a religiosidade, é estimulada por variáveis socioculturais35,37, reforçando os achados de Oswalt53e Rezende et al.54.

A deficiência no processo informacional, principal fator crítico identificado na pesquisa, permeia todas as etapas do processo, alimentando de forma crescente a desconfiança em relação ao sistema e, circularmente, reativando a falta de motivação para a doação. A falta de confiança em relação ao sistema, entre outras variáveis de atitude, foi também identificada nos estudos de Rezende et al.54 e Andaleeb e Basu55. Se, inicialmente, faltam no processo de divulgação propagandas e informações relativas à capacitação do doador, quando no processo de triagem este doador é barrado, sedimenta-se um comportamento negativo para a não doação. De forma complementar, este mesmo sujeito tende a descredenciar o processo, multiplicando esta opinião em relação ao grupo. Consequentemente, a avaliação final do processo torna-se negativa. Somando-se a estes fatos, a ausência de valorização social do doador, o que ocorre somente pelo grupo social beneficiado pela doação, os amigos e o familiares que a requisitaram, faz com que o doador tenda a se distanciar do processo, não desenvolvendo uma consciência e um comportamento comprometido com causas sociais.

A etapa da triagem, neste sentido, torna-se relevante para a manutenção dos doadores potencialmente atraídos pelas campanhas, uma vez que se informados adequadamente sobre os motivos de sua rejeição poderão vir a se tornar um no futuro. E, no caso de capacitação, informações sobre todo o procedimento posterior servirá para qualificar a percepção de segurança e, consequentemente, incentivar novos doadores.

Uma campanha que deve ser também priorizada é a valorização social do doador. Como pontuado por Ludwig56, a capacidade de converter a experiência de doação em algo de valor reconhecido socialmente pode converter o doador anônimo em fonte de referência social e de multiplicação da prática de doação.

Conclusão

Tendo em vista que no Brasil o índice de doação de sangue está abaixo do recomendado pela OMS2, o presente estudo remonta sua importância ao identificar e analisar os fatores críticos desse processo, explicitado, por meio de uma amostra de respondentes de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, uma das três maiores cidades do país.

Os resultados encontrados apontam para a falta de informação como o fator de maior criticidade no processo de doação de sangue. Esta deficiência reflete a necessidade de ações de marketing social diferenciadas para cada uma das etapas do processo. A captação de doadores, por exemplo, deve ser desenvolvida de forma diferenciada, tanto em relação aos seus públicos, quanto em relação à abordagem. Em relação aos doadores deve-se enfatizar a necessidade da continuidade de seu comportamento, facilitando a marcação e o próprio processo de coleta. Já em relação aos doadores potenciais, faz-se necessária a mobilização por meio de ações de grupos de referência, fundamentalmente aqueles que têm parentes e amigos em situação de necessidade de doações de sangue. Por outro lado, é importante a divulgação e o esclarecimento das condições básicas e necessárias para a efetivação da doação, o que poderia ser feito por meio das redes sociais, sites e blogs informativos, evitando que o doador potencial não apto chegue até o centro coletor.

Dentre os resultados alcançados destaca-se, como fator crítico relevante, a disfunção burocrática do sistema de doação de sangue. Sob as lentes dos entrevistados, este pode ser visto como um fator dificultador nas etapas de captação, conscientização e cadastro do ciclo do sangue44, uma vez que as informações fornecidas oficialmente pelo sistema são compreendidas de forma insuficiente, incompleta e/ou distorcida pelos receptores.

Os resultados da pesquisa indicaram as fases de triagens clínica e hematológica como as de maior repulsão de potenciais doadores, salientando-se que, apesar da conscientização da maioria dos entrevistados quanto à importância das etapas nas quais são realizadas as triagens, a baixa percepção de segurança emergiu como ponto crítico.

Os resultados deste estudo ressaltam, como proposto inicialmente, os fatores de impedimento à mudança de comportamento incremental ou radical proposta pelo marketing social12, configurando assim uma falha no primeiro estágio do modelo de mudança comportamental proposto por Kotler e Armstrong11. O conjunto de resultados encontrados aponta para claras deficiências em todo o processo de doação de sangue, analisados, como proposto, sob a ótica do marketing social, evidenciando, desta maneira, a ineficácia das políticas e ações atuais voltadas à doação de sangue.

Para futuros estudos sugere-se a aplicação da metodologia adotada por esta pesquisa em mais capitais brasileiras, bem como outras de abordagens quantitativas acerca dos fatores críticos da doação de sangue, de maneira a possibilitar generalizações acerca deste fenômeno social e a identificação de diferenciações regionais, demográficas ou mesmo geracionais mais abrangentes, de maneira a suportar políticas públicas diferenciadas e adequadas a diferentes caracterizações.

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