versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.37 no.4 São Paulo out./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20150075
A síndrome nefrótica é uma das apresentações principais das doenças glomerulares e tal manifestação, quando persistente, associa-se com a progressão para doença renal crônica (DRC) em estágio 5 (DRC5).1 Diversas anormalidades histológicas podem levar ao desenvolvimento de síndrome nefrótica,2,3 entre as quais se destacam como causa de síndrome nefrótica idiopática a doença de lesões mínimas (LM) e a glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF). Nas crianças, a LM é a causa da síndrome nefrótica em 90% dos pacientes,4-11 enquanto nos adultos detectam-se em 30% dos casos doenças sistêmicas associadas (como diabetes, amiloidose ou lúpus eritematoso sistêmico, por exemplo)4, e os outros 70% são representados por doenças glomerulares primárias, como GESF, glomerulopatia membranosa ou mesmo LM.4,5,12
Quando se considera apenas a população adulta, a GESF é a principal causa de síndrome em vários países, inclusive no Brasil.4,5,13,14 É preciso ter em mente que a GESF pode ser a expressão morfológica de uma série de distúrbios caracterizados principalmente por lesão podocitária15 que podem ser devidos à presença de um fator de permeabilidade circulante, mutações genéticas que afetam proteínas da fenda diafragmática nos podócitos, infecções virais, agentes tóxicos, hiperfiltração, entre outras possíveis causas.16-18 A GESF foi reconhecida como uma doença primária na década de 195019 e tem sido considerada por alguns investigadores como parte de um espectro de doenças podocitárias cujos extremos são a LM e a própria GESF.20-22 Se de fato ocorre progressão da LM para a GESF é ainda motivo de controvérsias, mas certamente essas doenças compartilham várias características, como alguns fatores etiológicos, justificando que sejam vistas como um complexo de doenças glomerulares. Ainda assim, do ponto de vista terapêutico, existem diferenças nos esquemas medicamentosos por ocasião do diagnóstico, pelo menos no que se refere à duração da fase de ataque no caso da corticoterapia, assim como na taxa de resposta a tratamento e no prognóstico.
No presente estudo, avaliamos as características clínicas e resposta a tratamento com corticosteroide em pacientes adultos com proteinúria e diagnósticos histológicos de LM ou GESF. Consideramos essas entidades como doenças independentes, com o objetivo de avaliar as principais diferenças clínicas e prognósticas entre elas em uma população adulta.
Este é um estudo longitudinal e retrospectivo de uma coorte de pacientes com diagnósticos de LM ou GESF seguidos no Setor de Glomerulopatias da UNIFESP (Brasil) durante seis anos consecutivos. Nesse período, 192 pacientes foram incluídos no estudo. Deve-se esclarecer que crianças pequenas não são usualmente tratadas por nossa equipe, mas pacientes com 12 anos ou mais são acompanhados no serviço.
Em relação à avaliação histopatológica, pelo menos as análises por microscopia óptica e imunofluorescência foram realizadas em todas as biópsias renais. Além disso, os seguintes parâmetros clínicos e laboratoriais foram avaliados: idade, sexo, raça, hipertensão arterial sistêmica por ocasião do diagnóstico, níveis iniciais de proteinúria e creatinina sérica; os dois últimos testes foram também analisados no final do seguimento. Considerou-se como “progressão para insuficiência renal”: “dobrar a creatinina sérica inicial ou a detecção de níveis acima de 2,0 mg/dL”.
Todos os pacientes foram inicialmente tratados com corticosteroide de acordo com o protocolo do serviço. Foi definido como remissão parcial a redução de 50% na proteinúria inicial ou níveis inferiores a 2,0 g/24 horas. Considerou-se remissão total quando a proteinúria tornou-se negativa. Na ausência de resposta a corticosteroide após aproximadamente quatro a seis meses de tratamento com 1 mg/kg/dia de prednisona por via oral, os pacientes que foram resistentes ao tratamento com corticoide passavam a ser tratados com ciclofosfamida ou ciclosporina, conforme o tipo histológico e função renal na ocasião, mas as respostas a tais modalidades de tratamento não foram avaliadas no presente estudo.
Analisamos os seguintes desfechos: resposta a corticosteroide (remissão parcial ou total), prevalência de remissão total, progressão para insuficiência renal e necessidade de terapia renal de substituição devido à DRC5.
As variáveis categóricas foram apresentadas como porcentagem e as variáveis numéricas como média e desvio-padrão, quando a distribuição era normal, ou mediana e intervalo interquatil [Q1;Q3], quando não era normal. A normalidade foi avaliada pelo teste de Shapiro-Wilk. As variáveis categóricas foram comparadas pelo teste exato de Fisher ou pelo teste do Qui quadrado. As variáveis numéricas foram comparadas pelo teste t de Student, quando a distribuição das variáveis era normal, ou pelo teste de Mann-Whitney, nos demais casos. A análise multivariada referente ao risco de desenvolver insuficiência renal foi realizada por regressão logística de Cox. Significância estatística foi definida por p < 0,05. Para a realização da análise estatística, utilizou-se o SPSS 17 for Windows.
Considerando-se os 192 pacientes inicialmente incluídos na presente análise, 50 tinham diagnóstico de LM e 142 de GESF. Posteriormente, 22 casos de GESF foram excluídos por serem classificados como GESF secundária. Os dados demográficos são apresentados na Tabela 1, distribuídos de acordo com os tipos histológicos das glomerulopatias.
Tabela 1 Dados demográficos dos pacientes com LM e GESF
Variáveis | LM | GESF | p-valor |
---|---|---|---|
Idade (anos) | 27 [21;37] | 32 [22;44] | 0,07* |
Raça - branca (%) | 68% | 40% | 0,32 |
Sexo - masculino (%) | 56% | 45% | 0,57 |
Hipertensão arterial (%) | 14% | 28% | 0,16 |
Creatinina sérica (mg/dL) | 1,17 ± 0,53 | 1,53 ± 0,96 | 0,016# |
Proteinúria (g/24 horas) | 701 [4,19;10,37] | 4,19 [2,18;6,56] | < 0,001* |
#t de Student;
*Mann-Whitney.
No grupo de GESF primária, a mediana de idade foi de 32 [22;44] anos, 45% dos pacientes eram do sexo masculino, 40% eram brancos e 15,7% eram negros. Os pacientes com LM eram mais jovens, no entanto, essa diferença não foi estatisticamente significante; a mediana de idade foi de 27 [21;37] anos (p = 0,07). Entre os pacientes com LM, 56% eram do sexo masculino, 68% eram brancos e 6,1%, negros. Assim, não foram observadas diferenças nas prevalências de sexo e raça em relação aos tipos histológicos das glomerulopatias. A prevalência de hipertensão arterial sistêmica no momento do diagnóstico foi duas vezes maior em pacientes com GESF: 28% vs. 14% (p = 0,16), ainda assim, tal diferença não alcançou significância estatística.
O nível sérico de creatinina, por ocasião do quadro inicial da doença, estava 24% mais elevado nos pacientes com GESF (Figura 1). A creatinina sérica inicial no grupo com LM era de 1,17 ± 0,53 mg/dL, enquanto no grupo com GESF era de 1,53 ± 0,96 mg/dL (p = 0,02). Todos os pacientes apresentaram síndrome nefrótica em algum momento no curso do seguimento e os níveis iniciais de proteinúria de 24 horas eram 36% mais altos entre os pacientes com LM: 7,01 [4,19;10,37] vs. 4,19 [2,18;6,56] gramas (p < 0,001).
Oitenta por cento dos pacientes com LM foram considerados como sensíveis à corticoterapia instituída: 74% apresentaram remissão total e 6%, parcial. Por outro lado, apenas 58,4% daqueles com GESF foram responsivos a tal tratamento (p = 0,01): remissão total foi observada em 30,0% (p = 0,002) e parcial, em 28,4%. Ocorreram 13 recidivas após corticoterapia no grupo LM e 14 no grupo GESF. Seis pacientes com LM (12%) apresentaram insuficiência renal por ocasião do diagnóstico ou no seguimento, sendo todos esses casos atribuídos a hipovolemia, que levou a insuficiência renal aguda pré-renal e, eventualmente, a necrose tubular aguda (condição de que se suspeitou clinicamente, mas que usualmente não foi confirmada por biópsia renal, uma vez que tal procedimento não foi indicado com esse fim específico); em nenhum caso de LM a diálise foi necessária. Deve-se destacar que, em pacientes com GESF, a prevalência de insuficiência renal aguda foi de 39% (0,013), e 10% necessitaram de diálise (p < 0,001), como se pode ver na Figura 2. Não houve mortes no grupo com LM; mas, duas (1,6%) ocorreram no grupo com GESF, embora em nenhum dos casos a causa do óbito estivesse associada à doença renal ou ao tratamento imunossupressor.
Avaliamos as variáveis relacionadas ao risco de desenvolver insuficiência renal crônica nos pacientes com GESF (Tabela 2). Na análise multivariada, responder a corticoterapia reduziu em 83% o risco de insuficiência renal crônica (p < 0,001), e a remissão total, por sua vez, associou-se a uma redução no risco da ordem de 89% (p < 0,001).
Tabela 2 Risco relativo dos pacientes com LM e GESF desenvolverem insuficiência renal
Variáveis | Risco relativo | Intervalo de confiança 95% | p-valor |
---|---|---|---|
Remissão total | 0,21 | 0,08-0,56 | < 0,001 |
Resposta a corticosteroide | 0,27 | 0,11-0,65 | < 0,001 |
Em muitos países, inclusive no Brasil, a GESF é a principal causa de síndrome nefrótica em adultos quando são considerados apenas os diagnósticos histológicos.14 Alguns autores relatam que GESF e LM são juntas as causas mais frequentes de síndrome nefrótica tanto em adultos como em crianças.4-8 Em estudo desenvolvido em nosso serviço, que envolveu a análise de 9.617 biópsias de rins nativos, Polito et al.14 observaram que a GESF correspondeu a 24,6% das glomerulopatias primárias, ocupando o primeiro lugar nesse grupo, assim como entre as doenças glomerulares que se apresentaram como síndrome nefrótica. A predominância da GESF como causa de síndrome nefrótica também foi demonstrada por nós na avaliação histológica de adolescentes com glomerulopatias.11 De fato, a frequência crescente de GESF tem sido documentada ultimamente em vários registros de biópsia renal.5-8,14 É importante lembrar que anteriormente a glomerulopatia membranosa era a principal causa de síndrome nefrótica em adultos,23 mas agora, embora predomine em alguns registros, é mais reconhecida no mundo todo como principal causa de síndrome nefrótica apenas na população idosa.24,25
No presente estudo, avaliamos retrospectivamente as características clínicas e resposta a corticoterapia de pacientes com diagnóstico histológico de GESF (N = 120) e LM (N = 50) primárias, seguidos durante mais de uma década. Como nosso serviço atende predominantemente à população adulta, crianças não foram incluídas na presente análise.
Observou-se que os pacientes com GESF eram mais velhos que aqueles com LM. Não se constatou qualquer diferença em sexo ou raça em ambas as glomerulopatias. De fato, descreve-se que a LM na infância é mais comum no sexo masculino, mas aparentemente não há diferença de sexo em adultos.12 É notório que nos Estados Unidos é descrita uma alta prevalência de afrodescendentes entre pacientes com GESF;26-28 porém este perfil étnico não foi observado no grupo aqui avaliado, nem em outros estudos brasileiros.8,14 No entanto, é preciso deixar claro que é difícil separar grupos raciais em nosso país, já que a maior parte da população é miscigenada.29
Vale ressaltar que, ao longo do seguimento, todos os pacientes incluídos no estudo apresentaram síndrome nefrótica, e menos de 10% em cada grupo foi submetido à biópsia renal quando o nível de proteinúria ainda era inferior a 3,5 g/24 h. Sabe-se que menos de 10% dos pacientes com LM têm proteinúria não nefrótica quando do quadro de apresentação da doença, enquanto tal porcentagem pode atingir os 30% em pacientes com GESF.30,31
Em nosso estudo, os níveis iniciais de proteinúria em pacientes com LM (média 8,2 g/24 h) foram mais elevados do que os daqueles com GESF (média 5,3 g/24 h). Waldman et al.,32 em avaliação de 95 pacientes com LM, observaram níveis médios de proteinúria de 10 g/24 h e creatinina sérica de 1,4 mg/dL, similares aos níveis detectados por nós (8,2 g/24 h e 1,2 mg/dL, respectivamente). Descreve-se uma incidência de hipertensão arterial em adultos com LM que chega a 45% (32). No presente estudo, 14% dos pacientes tinham hipertensão arterial por ocasião do diagnóstico de LM. Essa porcentagem é mais elevada em casos de GESF33,34 e correspondeu a 28% na nossa população.
Atualmente, é indubitável que todos os pacientes com síndrome nefrótica por LM ou GESF primárias devem ser tratados com corticosteroide ou outras medicações imunossupressoras, conforme o caso, uma vez que remissão espontânea é incomum em ambas as glomerulopatias21,35,36 e existe, na pior das hipóteses, uma chance razoável de remissão com o tratamento. Sem o tratamento específico, LM associa-se com risco aumentado de mortalidade por doenças infecciosas e eventos trombóticos e a GESF, com progressão para DRC5.35,36 Tal progressão é rara em pacientes com LM e, quando relatada, em sua maioria, foram casos que não responderam a corticosteroide ou relacionados ao diagnóstico de GESF em biópsias realizadas em estágio posterior na evolução da doença.37,38 Com se poderia esperar, em nenhum de nossos pacientes com LM observou-se progressão para DRC5, ainda que 10% deles tenham desenvolvido insuficiência renal aguda na apresentação ou no seguimento. A insuficiência renal aguda em LM está relacionada à diminuição do volume arterial efetivo ou à necrose tubular aguda, e uma incidência de até 18% já foi descrita.32
É consenso, nos dias atuais, que os corticosteroides são as medicações de primeira escolha para iniciar o tratamento de ambas as glomerulopatias, LM e GESF, e está indicado um curso mais prolongado de corticoterapia no caso da GESF.35,36 Os pacientes incluídos na presente análise foram inicialmente tratados com prednisona 1 mg/kg/dia por via oral. Oitenta por cento dos casos de LM atingiram remissão (74% de remissão completa), assim como 58% daqueles de GESF. As taxas de resposta a corticosteroide aqui observadas foram similares às de outros estudos, ou seja, 80 a 95% em LM e 15 a 60% em GESF.21,32,37-44
É muito expressiva a influência da resposta à corticoterapia no curso da LM e da GESF, como aqui demonstrado. Responder a corticosteroide representou uma redução de risco de 83% quando se avaliou a tendência à progressão para DRC5 e essa redução atingiu os 89% quando havia remissão total da síndrome nefrótica, confirmando a importância desse tipo de tratamento em tal grupo de pacientes para evitar a perda de função renal. Vários estudos em outros grupos populacionais têm confirmado que a resposta à corticoterapia é o principal fator prognóstico no curso da GESF,37-44 como reforçado por nós agora.
Por fim, no presente estudo, descrevemos o perfil clínico de pacientes brasileiros com LM e GESF, cuja doença se apresentou como síndrome nefrótica na idade adulta e que foram submetidos a tratamento com corticosteroide, demonstrando o acentuado papel protetor dessa terapia ao longo do seguimento, que se estendeu por mais de uma década, com uma taxa de sucesso similar à observada mundialmente.