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Doença de Moyamoya: impacto no desempenho da linguagem oral e escrita

Doença de Moyamoya: impacto no desempenho da linguagem oral e escrita

Autores:

Dionísia Aparecida Cusin Lamônica,
Camila da Costa Ribeiro,
Plínio Marcos Duarte Pinto Ferraz,
Maria de Lourdes Merighi Tabaquim

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.28 no.5 São Paulo set./out. 2016 Epub 24-Out-2016

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20162016010

INTRODUÇÃO

A Doença de Moyamoya (DMM) é uma forma incomum de doença cerebrovascular oclusiva crônica, que acomete artérias do sistema nervoso central, provocando tromboses, isquemias e hemorragias intraparenquimatosas. As obstruções provocam neoformações vasculares de fino calibre e pouco eficientes(1).

Trata-se de uma doença rara de aspectos etiológicos e mecanismos fisiopatológicos insuficientemente conhecidos(2,3), tendo principal prevalência no Japão, mas tem sido cada vez mais diagnosticada em todo o mundo, e representa uma importante causa de acidente vascular cerebral na infância. Esta condição é responsável por aproximadamente 6% dos acidentes vasculares cerebrais na infância nos países ocidentais(3). É relatada a ocorrência para o gênero feminino de aproximadamente 2:1(3,4).

O termo Moyamoya tem origem japonesa e significa “algo nebuloso”, como cortina de fumaça, devido aos achados angiográficos, critério usado, nestes casos, para confirmação do diagnóstico(3,4).

A taxa de incidência variável entre diferentes grupos étnicos e a recorrência familial apoiam o papel dos fatores genéticos na DMM(2). Foram identificados inúmeros genes candidatos na DMM, nos últimos anos, em diversas regiões cromossômicas (e.g. 3p24.2p26, 6q25, 8q23, 12p12 e 17q25)(2), o que justifica a variabilidade fenotípica.

Nesta doença, ocorre oclusão bilateral das artérias carótidas internas e, pelo fato de a oclusão ser lenta e progressiva, surgem anastomoses múltiplas que se formam entre as artérias carótidas internas e externas, compostas pelas colaterais das artérias coroidais anterior e posterior, artéria basilar, além de artérias meníngeas(3-5).

A etiologia ainda não é clara(2,6) e sua incidência é maior na primeira década de vida (50% na idade pré-escolar), mas pode ocorrer também na segunda ou terceira. A história natural da DMM envolve significativa morbidade e mortalidade(6). Os pacientes pediátricos podem apresentar ataques silentes, ataques isquêmicos transitórios ou permanentes e infartos cerebrais no território da artéria carótida interna, particularmente na região do lobo frontal(4). Lesões unilaterais podem progredir para lesões bilaterais(6). Os pacientes pediátricos podem apresentar dores de cabeça, crises convulsivas, movimentos involuntários e alterações cognitivas(1,6).

As manifestações clínicas das injúrias cerebrais são variáveis, dependentes das áreas afetadas, que podem causar disartrias, afasias, hemiparesias e/ou crises convulsivas(3-5). São relatados estudos que apontam para alterações neurocognitivas e neurolinguísticas trazendo prejuízos para a aprendizagem e qualidade de vida(1-7). A cirurgia de revascularização pode reduzir significantemente os riscos subsequentes dos eventos isquêmicos cerebrais(4,6) e resguardar as capacidades intelectuais da criança com DMM(7).

O objetivo deste estudo foi descrever as habilidades de linguagem oral/escrita e cognitivas de uma menina com diagnóstico de DMM de sete anos e sete meses.

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

A família assinou o termo de consentimento livre e esclarecido de acordo com o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Resolução 466/12).

Criança do gênero feminino, de sete anos e sete meses de idade cronológica, filha de pais não consanguíneos, com diagnóstico da DMM. Apresentou desenvolvimento neuropsicomotor, de acordo com os critérios normativos. Durante o primeiro ano de vida teve vários episódios de infecção crônica do ouvido. Os pais relataram que, por volta dos quatro anos, iniciaram-se as queixas de zumbido e dores de cabeça. A criança realizou avaliações audiológicas e oftalmológicas que indicaram normalidade. Por volta dos cinco anos manifestou “repuxamento” dos lábios e “formigamento das mãos”. Nessa época, em acompanhamento neurológico, realizou exames por imagem que indicou sinais de Acidente Vascular Encefálico isquêmico (AVE), tendo sido afetada a área temporoparietal esquerda. Aos seis anos e cinco meses apresentou o segundo AVE isquêmico na região temporoparietal direita e frontal esquerda, tendo sido submetida à cirurgia de revascularização e tratamento medicamentoso. A seguir, na Figura 1, são apresentados dados da Tomografia computadorizada, Ressonância Magnética com estudo perfusional e Angiorressonância de artérias e veias intracranianas após o processo de revascularização cerebral.

Legenda: (A) Tomografia Computadorizada: mostrando área hipodensa em ambos os hemisferios, nas regiões parieto-occipital direita e esquerda, e a área frontal esquerda, compativel com AVC isquêmico; (B) T2 Ressonância Magnética apresenta infarto cortical antigo no território da artéria cerebral média esquerda e na artéria cerebral posterior direita; (C) O angiograma demonstra um exemplo clássico de Doença de Moyamoya; (D) A angiográfia é compatível com Doença de Moyamoya

Figura 1 Resultado da tomografia computadorizada, ressonância magnética e angioressonância 

Aos sete anos e sete meses de idade, cursava o segundo ano do ensino fundamental em escola particular e, mesmo com reforço pedagógico e intervenções terapêuticas nas áreas de Fonoaudiologia e Psicologia, era constante a queixa da escola de baixo rendimento nas atividades acadêmicas. Não havia queixas quanto a problemas de comportamento.

A avaliação fonoaudiológica e neuropsicológica constou de entrevista com os responsáveis e aplicação de instrumentos específicos de avaliação, de acordo com a faixa etária da criança. O protocolo constou dos seguintes instrumentos: Observação do Comportamento Comunicativo (OCC)(8); Teste de Vocabulário por Imagem Peabody (TVIP)(9); Teste de Desempenho Escolar (TDE)(10), Perfil de Habilidades Fonológicas (PHF)(11), Matrizes Progressivas Coloridas de Raven: Escala Especial (RAVEN)(12), Wechsler Intelligence Scale for Children – Third Edition (WISC-III)(13), Teste Gestáltico Visomotor Bender(14) e Wisconsin Card Sorting Test (WCST)(15).

Os resultados da avaliação fonoaudiológica encontram-se na Tabela 1. Foi solicitado o reconhecimento de grafemas isolados, e constatou-se dificuldade no reconhecimento.

Tabela 1 Habilidades, Desempenhos, Idade correspondente e Classificação obtida pelos instrumentos da avaliação fonoaudiológica 

Instrumentos Desempenho
OCC Intenção comunicativa; boa interação; inicia e mantém turnos comunicativos; produz palavras e frases simples sem alterações sintáticas. Apresenta as funções de linguagem de informar, protestar, solicitar e imitar. Compreendeu ordens simples. Tempo de atenção reduzido. Dificuldades para narrar fatos e realizar sequências lógico-temporais. Não apresenta processos fonológicos produtivos.
TVIP Obteve classificação baixa superior
TDE Habilidades Classificação
Leitura Inferior à 1ª série
Escrita Média inferior à 1ª série
Aritmética Média inferior à 1ª série
PHF Habilidades do processamento fonológico em nível pré-escolar

Legenda: OCC = Observação do Comportamento Comunicativo; TVIP = Teste de Vocabulário por Imagens; TDE = Teste de Desempenho Escolar; PHF = Perfil de Habilidades Fonológicas

A avaliação neuropsicológica (Tabela 2) indicou nível intelectual na média esperada à idade, porém os desempenhos cognitivos em tarefas verbais e de execução estiveram prejudicados, com limitações especialmente identificadas no gerenciamento do foco atencional, nas funções grafo-percepto-motoras, na organização sequencial lógica e na linguagem expressiva, prejuízos estes impactantes na aquisição e desenvolvimento de competências acadêmicas. O comportamento mostrou-se colaborativo na execução das provas.

Tabela 2 Desempenho, Quociente de Inteligência e Classificação obtida pelos instrumentos da avaliação neuropsicológica 

Instrumentos Desempenhos
Nível Mental: Matrizes Progressivas Coloridas Raven Nível mental compatível à idade cronológica (Classif. III - Médio). Identifica similaridades, estabelece analogias e relações de causa e efeito.
Nível de Aprendizagem: WISC-III – Escala de Inteligência As habilidades cognitivas nas atividades verbais (QIV = 88) e de execução (QIE = 85) apresentaram níveis médio-inferiores, com classificação de desempenho global médio-inferior para a idade cronológica. Desempenhos satisfatórios foram identificados em provas relacionadas à discriminação viso-perceptual quanto à compreensão e adequação social. Apresentou nível mediano em provas que exigiam velocidade de processamento; porém, os índices fatoriais relacionados à compreensão verbal, organização perceptual e atencional demonstraram perfis inferiores à média para o desenvolvimento. Estes dados representam impacto nas competências fundamentais para a aprendizagem formal.
Nível Percepto-Motor: Bender Santucci/ Koppitz O desempenho gráfico percepto-motor mostrou-se altamente prejudicado, em níveis inferiores à idade e escolaridade (Md = 2a), com recursos limitados na integração do traçado e domínio de ângulos, o que representa prejuízos na construção formal da escrita. Apresentou 57% de sinais indicativos de imaturidade neurológica para a grafia.
Nível Executivo: WCST – Wisconsin Card Sorting Test O raciocínio executivo, empregado na resolução de situações conflitantes, de escolha e adaptação ao contexto (ensaios completos ausentes), mostrou-se abaixo da média esperada, o que representou falta de domínio em gerenciar o foco da atenção e dificuldades na memorização (memória de trabalho) durante as atividades relacionadas.

DISCUSSÃO

Alterações em habilidade do processamento de informações envolvendo memória de trabalho, consciência fonológica e acesso ao léxico mental, bem como, atraso cognitivo interferem no processo de alfabetização(5). Os desempenhos obtidos sugerem risco para ocorrência de prejuízos significantes nas competências acadêmicas para a progressão escolar.

As sequelas da DMM, provocadas por AVEs são variáveis e dependentes da especificidade das áreas cerebrais afetadas(1,3). Depois da lesão cerebral, os déficits neurológicos, invariavelmente permanentes, exigem acompanhamento terapêutico frequente, principalmente para lidar com as alterações decorrentes da lesão. Neste caso, as áreas afetadas são extremamente importantes para o funcionamento da linguagem e aprendizagem. Um estudo apresentou que, as funções cognitivas e o desempenho em linguagem são determinantes nos processos de aprendizagem e integração social, especialmente na idade escolar(5).

Uma das áreas afetadas com o AVE, no presente caso, foi o lobo parietal. O lobo parietal é dividido em duas regiões funcionais. Uma envolvida na sensação e na percepção e outra responsável pela integração do input sensorial, primariamente com o sistema visual. A primeira função integra informações sensoriais para formar uma única percepção (cognição). A segunda função constrói um sistema de coordenadas espaciais para representar o mundo que nos cerca. Indivíduos com danos nos lobos parietais podem demonstrar déficits de leves a profundos, relacionados a anormalidades na imagem corporal e nas relações espaciais(7). Danos no lobo parietal esquerdo podem causar confusão entre esquerda e direita, dificuldade de escrita (disgrafia) e dificuldades com o pensamento matemático (discalculia), desordens na linguagem (afasia), até a inabilidade para perceber objetos normalmente (disgnosia). Danos no lobo parietal direito podem resultar em inabilidades que abalam o cuidado com o próprio corpo, tais como vestir-se e banhar-se e que comprometem a independência nas atividades da vida diária (AVDs). O histórico clínico apresenta estes achados, ou seja, a criança demonstrava dificuldades para realizar, com independência, as AVDs.

As lesões bilaterais, interferem na integração da atenção visual e da eficiência motora(6), caracterizada por manifestações relacionadas à dispraxia, com prejuízos em atividades formais de desenho e escrita, na construção de ângulos e integração de traçados. Estas habilidades eram particularmente difíceis para a criança em questão.

Outra região afetada com o AVE foi o lobo temporal. Os lobos temporais estão relacionados à memória, à audição, ao processamento e percepção de informações sonoras, à capacidade de entender a linguagem e ao processamento visual de ordem superior. As alterações psicolinguísticas observadas são relatadas na literatura(7). Lee et al.(5) apresentaram que as lesões no hemisfério cerebral esquerdo resultam em redução das habilidades verbais, enquanto as lesões do lado direito resultaram em pontuações mais baixas nas funções neurocognitivas, como memória, habilidades visuais e relações espaciais.

Lesões no lobo frontal podem relacionar-se a dificuldades para manutenção de atenção sustentada, memória e planejamento, bem como distúrbios de humor. Este último não observado no caso estudado.

As crianças com DMM podem se beneficiar de revascularização cirúrgica, principalmente aquelas com sintomas neurológicos progressivos ou evidência de fluxo sanguíneo inadequado e/ou circulação colateral e nas quais a cirurgia não é contraindicada(4-5). A criança deste estudo realizou este procedimento cirúrgico.

Considerando a plasticidade do desenvolvimento no cérebro infantil, espera-se que influências extrínsecas, como a participação em processos de intervenção fonoaudiológica e psicológica, somadas às influências intrínsecas possam alterar a organização cortical e regenerar conexões danificadas, melhorando o desempenho da criança nas habilidades que estão comprometidas.

Embora a incidência de DMM não seja alta é uma causa importante de AVE em crianças, que necessita ser melhor compreendida, principalmente quanto ao desenvolvimento destas crianças, pelo impacto provocado no funcionamento cerebral, com reflexos na vida destes indivíduos(6).

DMM é um distúrbio complexo e heterogêneo, com diferentes fenótipos e genótipos, que tem aumentado rapidamente em todo o mundo(1,2). Assim, há a necessidade de conhecimentos mais aprofundados sobre a doença para desenvolver sistemas de estratificação de risco mais específicos e eficientes, incluindo profunda fenotipagem clínica e radiológica e a identificação de biomarcadores que possam melhorar a capacidade de predizer o prognóstico para desenvolver procedimentos de intervenções adaptados às necessidades individuais(2).

A gestão do tratamento das sequelas do DMM requer uma abordagem multidisciplinar, principalmente na infância, com o intuito de minimizar os efeitos deletérios provocados pelo(s) insulto(s) cerebral(is), que trarão reflexos para a vida escolar e social destas crianças e suas famílias.

COMENTÁRIOS FINAIS

A DMM é uma condição que se mostrou interferente nos processos de linguagem e nas funções neurocognitivas, com prejuízos nos processos de aprendizagem devido às especificidades das áreas afetadas, nas habilidades de análise, integração e interpretação de informações auditivas e visuais, fundamentais nos processos de aprendizagem.

REFERÊNCIAS

1 Takanashi J. Moyamoya disease in children. Brain Dev. 2011;33(3):229-34. PMid:20932697. .
2 Bersano A, Guey S, Bedini G, Naca S, Hervé D, Vajkoczy P, et al. Research progresses in understanding the pathophysiology of Moyamoya disease. Cerebrovasc Dis. 2016;41(3-4):105-18. PMid:26756907. .
3 Currie S, Raghavan A, Batty R, Connolly DJA, Griffiths PD. Childhood Moyamoya disease and Moyamoya syndrome: a pictorial review. Pediatr Neurol. 2011;44(6):401-13. PMid:21555050. .
4 Kuroda S, Houkin K. Moyamoya disease: current concepts and future perspectives. Lancet Neurol. 2008;7(11):1056-66. PMid:18940695. .
5 Lee JY, Phi JH, Wang KC, Cho BK, Shin MS, Kim SK. Neurocognitive profiles of children with Moyamoya disease before and after surgical intervention. Cerebrovasc Dis. 2011;31(3):230-7. PMid:21178347. .
6 Amlie-Lefond C, Zaidat OO, Lew SM. Moyamoya disease in early infancy: case report and literature review. Pediatr Neurol. 2011;44(4):299-302. PMid:21397174. .
7 Hayashi T, Shirane R, Fujimura M, Tominaga T. Postoperative neurological deterioration in pediatric Moyamoya disease: watershed shift and hyperperfusion. J Neurosurg Pediatr. 2010;6(1):73-81. PMid:20593991. .
8 Ferreira AT. Vocabulário receptivo e expressivo de crianças com síndrome de Down [dissertação]. Bauru: Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo; 2010. Observação do Comportamento Comunicativo; 129 p.
9 Dunn LM, Dunn LM. Peabody Picture Vocabulary Test-revised [adaptação Hispano-americana]. Circle Pines: American Guidance Service; 1986.
10 Stein LM. Teste de desempenho escolar: manual para aplicação e interpretação. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1994.
11 Alvarez AMMA, Carvalho IAM, Caetano AL. Perfil de habilidades fonológicas. 2. ed. São Paulo: Via Lettera; 2004.
12 Angelini AL, Alves ICB, Custódio EM, Duarte WF, Duarte JLM. Matrizes progressivas coloridas de Raven: escala especial: manual. São Paulo: CETEPP; 1999.
13 Wechsler D. WISC-III: escala de inteligência Wechsler para crianças: manual. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2002. 309 p.
14 Cunha JA. Bender na criança e no adolescente. In: Cunha JA, Péres-Ramos ALMQ, Jacquemim A, Amaral AEV, Werlang BG, Camargo CHP et al. Psicodiagnóstico. 5. ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000. p. 295-316.
15 Heaton RK, Chelune GJ, Talley JL, Kay G, Curtiss G. Wisconsin Card Sorting Test (WCST): manual. Odessa: Psychological Assessment Resources; 1993.